sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A solução está na escuta

 
O modelo da discussão ou do enfrentamento, aquele que os modernos têm no espirito, não é evangélico. As grandes questões relativas à fé, as nossas relações com Deus e com o próximo, na Igreja, resolvem-se pela escuta.
Dom Samuel

Ilustração: Concha da pia de água benta da igreja de São Domingos do Rossio.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A compreensão que procuramos

 
Ao escutar o Evangelho e ao tentar vivê-lo, compreendemos que não estamos uns face aos outros, em relações de discussão ou de enfrentamento, mas todos juntos, face à Palavra de Deus para a acolher, para a tornar viva e para a difundir, de modo que se torne vida e salvação para todos.
Dom Samuel

Ilustração: Cais das Colunas na Praça do Terreiro do Paço em Lisboa.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O sal da vida

 
Os pais, os irmãos que vivem comigo, os membros da minha família, aqueles que amo, têm por vocação colocar sal na minha existência e de se deixarem salgar por mim. Evidentemente, isto não acontecerá, algumas vezes, sem resistência nem incompreensão.
Dom Samuel

Ilustração: Cores de outono na romãzeira do jardim do convento.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Viver bem com Deus

 
Vivamos plenamente a nova ocasião de viver bem, com Deus, no minuto novo que nasce. Que Deus me guarde de alguma vez limitar a abundância das suas graças pelas definições à minha medida.
Carta de Louis Massignon a Paul Claudel

Ilustração: Tramo da galeria do Páteo da Galé, Lisboa.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Sobre o fim do homem

 
 
O número é caracterizado pelo seu limite, pelo seu fim. É pelo seu fim, pela sua finalidade que todos os seres se distinguem: uns encontram o seu fim em seres homogéneos, os outros como o homem ou o anjo apenas em Deus. Ou para empregar um outra imagem, todo o ser é um motivo sonoro, possuindo o seu “tempo” próprio.
Carta de Paul Claudel a Louis Massignon

Ilustração: “Figuras de crianças nas fontes do Rossio em Lisboa.

domingo, 25 de novembro de 2012

Domingo de Cristo Rei


Passei este Domingo de Cristo Rei em Genebra com a família do meu irmão.

O fim do mundo

 
O mundo termina lá onde termina a vontade de Deus que lhe deu forma e figura, e que, tendo feito todas as coisas muito boas, não as pôde deixar inacabadas, sem terminar.
Carta de Paul Claudel a Louis Massignon

Ilustração: Reflexo do sol sobre o Tejo em dia de inverno.

sábado, 24 de novembro de 2012

Vigilância sobre o essencial

 
O essencial é nada preferir ao amor de Cristo. É sobre este ponto que uma vigilância se deve exercer. Feita esta escolha, todo o defeito que humilha pode ser levado como um tesouro.
Dom Samuel

Ilustração: Mochilas junto à janela do Albergue de Padrón. Caminho Português de Santiago, 5 de Julho de 2012.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Os milionários de Deus

 
Chamo santos àqueles que receberam mais que os outros em graça: os ricos. Um milionário vai à falência, e eis que se juntam milhares de pessoas na manifestação. Podemos imaginar o que se passa no mundo invisível e sobrenatural quando vacila, ou falta por infidelidade, um desses ricos de que falo: é que ele é administrador das graças de Deus para os outros.
Georges Bernanos

Ilustração: Flores de Orquídea.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A santidade e o mundo

 
Se tivesse aceitado o dom da santidade que me foi oferecido em Novembro de 1938, o que teria acontecido ao mundo? Não fazemos ideia do que pode fazer um só santo, uma vez que a santidade é mais forte que todo o inferno reunido.
Thomas Merton

Ilustração: Nuvens de tempestade anunciada.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A experiência é pessoal

 
Na vida cristã não há pequenos espertalhões que tenham descoberto as boas receitas ou alcançado a lua. Ninguém tem lições a dar a ninguém. Cada um luta, magoa-se nas contradições e nas indigências, levanta-se e recomeça. Mas é verdade que há pequenas notas, fundadas na experiência daqueles que conseguiram, e que podem iluminar o caminho e orientar as boas vontades.
Dom Samuel

Ilustração: Alexandre ao terminar o Caminho a Santiago. Caminho Português de Santiago 6 de Julho de 2012.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

A graça de ver

 
Naturalmente o homem vê os actos que realiza e frequentemente os seus efeitos. Mas é uma graça perceber, nos nossos actos, o pedaço de mal que eles contêm e a sua dimensão deformada.
Dom Samuel

Ilustração: Caminho de Santiago sob as ramadas das videiras. Caminho Português de Santiago, 4 de Julho de 2012.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A alquimia cristã

 
Felicidade e infelicidade enredadas é o tema do primeiro Salmo e de todo o Saltério. A vida cristã permite concluir com perfeição esta alquimia. Ela exige uma atenção em cada instante a Deus e aos outros.
Dom Samuel

Ilustração: Rosas do jardim da casa dos meus pais.

domingo, 18 de novembro de 2012

Celebração dos 190 anos do Colégio do Bom Sucesso em Lisboa

Ocorreu no dia de hoje uma celebração muito especial para as irmãs dominicanas do Convento do Bom Sucesso, pois celebraram os cento e noventa anos de acolhimento de alunas naquela casa e os oitenta anos de reconhecimento oficial por parte do Estado da formação ali ministrada.
Quando em 1823, depois do governo liberal ter dado início às reformas que iriam conduzir à expulsão das Ordens Religiosas, as irmãs de clausura receberam as primeiras pupilas não imaginariam certamente que seria essa nova actividade e apostolado que iria garantir o futuro daquele convento.
Nestes cento e noventa anos várias gerações passaram por ali, primeiro exclusivamente femininas e nos últimos anos também masculinas, pois o colégio passou de um regime interno e feminino a um regime externo e misto.
Este aniversário foi o momento para o encontro de toda a comunidade à volta da mesa do Senhor, do qual as fotografias são um pequeno testemunho.
 
Grupos dos sacerdotes concelebrantes da Eucaristia e os acólitos que auxiliaram.
 
Aspecto de uma parte da assistência na igreja à celebração da Eucaristia.
Momento da celebração da Eucaristia.
 
Grupo de alunos no claustro do convento num momento de animação musical.

Homilia do XXXIII Domingo do Tempo Comum


O ano litúrgico está a chegar ao fim e preparamo-nos para deixar o Evangelho de São Marcos que nos acompanhou durante este ano. E fazemo-lo com um texto carregado de esperança, de promessa de vitória e glória, ainda que a roupagem seja apocalíptica e portanto um pouco assustadora para incautos.
Ao mesmo tempo que se nos revela esta esperança e esta vitória, por parte de Jesus, é-nos igualmente chamada a atenção para a necessidade da vigilância, da atenção, pois não são tempos para o homem descansar nem se deixar dormir, mas bem pelo contrário para construir e caminhar diligentemente para a promessa da vitória.
Neste sentido, e face ao discurso que Jesus profere não podemos deixar de o contextualizar e situar, pois estamos em Jerusalém e nos dias seguintes à entrada vitoriosa e aclamada de Jesus na cidade.
Desde esse momento Jesus já se confrontou com os vendedores do templo, já foi contestado sobre a sua autoridade para tal atitude, já teve que discutir as razões do tributo a César e também a polémica questão da ressurreição dos mortos.
Nos intervalos destas questões, Jesus foi avisando os discípulos para o que os esperava, não só o seu fim trágico, do qual tinha consciência pelas circunstâncias dos últimos acontecimentos, mas também para as perseguições que lhes seriam movidas por acreditarem nele.
E é nesta preparação psicológica e espiritual dos discípulos que Jesus manifesta uma grande humildade e um profundo sentido de abandono à vontade de Deus Pai. Assim, nas vésperas da sua paixão, da sua entrega da vida por amor ao Pai, Jesus assume e reconhece face aos discípulos o desconhecimento do que se vai passar no fim dos tempos.
Jesus assume no vocabulário apocalíptico, retirado dos profetas como Daniel, Isaías, Ezequiel e Joel, uma descrição extraordinária dos tempos, uma descrição conhecida dos seus ouvintes, mas que manifesta um desconhecimento exacto da realidade de que se fala.
São imagens, cósmicas, imagens terríveis que não podem ser tomadas à letra, mas que evocam a vitória de que Jesus tem a certeza, a certeza absoluta, pois tais imagens estão intimamente ligadas na linguagem profética à vinda do Filho do Homem, à sua vitória e glória.
Não se trata portanto de uma descrição física, detalhada, jornalística, do fim do mundo ou do fim dos tempos, porque como Jesus assume, desconhece, mas indícios para os seus ouvintes entenderem a realidade em desenvolvimento, a actualidade do prometido pelos profetas. É ali e agora que se cumprem as promessas envoltas em drama.
E neste sentido, a dor e o sofrimento da perda do mestre e posteriormente das perseguições que lhes vão ser movidas não podem ser vistas como uma derrota ou uma fraqueza, porque é nessa aparente derrota e fraqueza que se manifesta o poder de Deus, a sua vitória. Deus não abandona os seus filhos, não abandona aqueles que se lhe confiam e lhe obedecem com amor.
O desconhecimento de Jesus face ao fim dos tempos é inevitavelmente uma pedrada no charco face aos adivinhos e videntes do futuro, de que a história sempre sofreu e hoje parece que ainda mais, pois se o Filho de Deus na sua condição humana desconhece o futuro da história, nenhum homem ou mulher o poderá conhecer e revelar aos outros.
Pelo contrário, este humilde desconhecimento de Jesus coloca-nos face a face com o presente, com o tempo presente e único para viver. A parábola da figueira e do que revela o seu brotar é neste aspecto significativa.
Como bom pedagogo que sempre se mostrou, Jesus apresenta a parábola da figueira para que os seus ouvintes, os seus discípulos, percebessem a necessidade da atenção e de como em cada tempo há a possibilidade de um ressurgir, uma nova oportunidade.
Se ao chegar a primavera os brotes da figueira representam um renascimento, uma nova oportunidade de vida depois da morte do inverno, também os discípulos deveriam saber interpretar os sinais da nova oportunidade, os brotes que surgiriam com a ressurreição, e portanto viver essa nova vida e essa nova oportunidade.
Para nós, cristãos do século vinte e um, coloca-se o mesmo desafio, ou possivelmente um desafio mais acutilante, pois temos que discernir e equilibrar esta necessidade de viver o tempo presente, de o fazer frutificar, rentabilizar, face aos apelos do imediatismo do consumo e da satisfação a toda a prova.
Jesus convida-nos a viver o tempo presente com esperança, no sentido de um crescimento, e com alegria pelo que nos é oferecido viver; mas na nossa sociedade vivemos este tempo presente com ansiedade, de uma forma trágica como se não houvesse mais nada senão este mesmo tempo e o prazer que ele nos pode proporcionar.
Creio que poderíamos dizer que vivemos apocalipticamente, esquecendo que o tempo que Jesus nos convida a viver presentemente é o tempo do caminho em direcção a Deus, é o tempo da alegria e do esforço por alcançar a meta, conscientes de que temos alguém à nossa espera para nos entregar a coroa da vitória.
 
Ilustração: “Juízo Final”, de Leandro Bassano, Museu de Arte de Birmingham.


 

 

Respeito pela vocação

 
Quando Deus coloca no coração de um jovem homem uma atracção, mesmo que discreta, pelo seu serviço, quer seja na vida monástica ou na vida sacerdotal, esta atracção sobrenatural deve ser considerada com um grande respeito.
Dom Samuel

Ilustração: Quadro de São Jacinto da Polónia na igreja de São Domingos do Rossio.

sábado, 17 de novembro de 2012

Como um mendigo paciente

 
São Francisco de Sales compara a oração à atitude de um mendigo que espera pacientemente a sua moeda. É preciso permanecer ali, bastante tempo, para que alguém generoso passando pare e abra a sua bolsa. Se o mendigo é cego não verá o seu benfeitor, mas perceberá perfeitamente a moeda a cair na escarcela. Dirá então, obrigado.
Dom Samuel

Ilustração: Rosário do Hábito Dominicano.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Amar é sustentar

 
Para amar é necessário saber fazer face às dificuldades da existência. Amar não é agarrar um outro, é sustentá-lo.
Dom Samuel

Ilustração: Figuras da base das fontes do Rossio em Lisboa.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

D. João Xavier de Sousa e Trindade, Dominicano da India

Uma das questões que habitualmente se coloca quando nos debruçamos sobre a exclaustração das Ordens Religiosas é o que aconteceu aos frades e religiosos que de um dia para o outro se viram obrigados a abandonar os seus conventos.
Muitos passaram ao anonimato, desapareceram quase sem deixar história, outros no entanto envolveram-se na história e hoje podemos fazer um pequeno retracto das suas vidas. Nestas circunstâncias encontra-se frei João Xavier de Sousa e Trindade, certamente desconhecido de muitos de nós, mas que por mero acaso me veio parar às mãos.
Segundo o que se encontra na grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira João Xavier de Sousa e Trindade nasceu em 1801 em Assagão de Bardez, India. Bramane de nascimento foi educado na fé católica e ainda bastante jovem entrou no convento de São Domingos de Goa.
Ali e no Colégio de São Tomás teria realizado a sua formação e começado a sua carreira, pois como diz num discurso parlamentar em 1840 estudou e ensinou filosofia e teologia, tendo alcançado os graus de Mestre e Doutor
Em 1825 e 1827 assina como Prior os termos de abertura dos Livros de Rendas e Receitas do Colégio de São Tomás de Goa, o que a fazer fé na data de nascimento teria ocupado os lugares de governo muito jovem.
Em 1836 encontra-se em Macau há já alguns anos, e por uma refutação que faz devido a críticas da sua administração do Convento de São Domingos de Goa e do Colégio publicadas no jornal Crónica de Macau, percebemos que teria ocupado também aquele lugar de governo.
Com a extinção das Ordens e encerramento dos conventos frei João Xavier regressa a Goa, onde em Abril de 1839 é eleito deputado às Cortes pelo Estado da India. No ano seguinte está em Lisboa e a 25 de Março ocupa o seu lugar na bancada parlamentar do partido do governo ao lado do advogado António Caetano Pacheco, enquanto os outros representantes do estado da India se sentavam na bancada da oposição.
A sua participação na Assembleia Legislativa teve alguma importância na medida em que não só defendeu o envio da informação legislativa para todas as câmaras das colónias, mas também a constituição de Códigos legislativos que tivessem em conta as particularidades de cada colónia e seus habitantes.
Nesta passagem por Lisboa frei João Xavier é apresentado para bispo e assim quando D. Maria II o nomeia Conselheiro Real em 1843 é já tratado por D. João Xavier na Carta de Mercê. Em 1844 a mesma rainha apresenta-o para Bispo de Malaca.
Com a conclusão dos trabalhos do Parlamento D. frei João Xavier regressa a Goa onde novamente se envolve na política através do partido do Conde de Tomar, o que o traz pela segunda vez a Lisboa como representante do Estado da India às Cortes.
Em 1848 não é reeleito como deputado, apesar das suas expectativas e da Comenda da Ordem de Cristo entregue pela rainha. Contudo, não regressa a Goa e mantém-se em Lisboa onde publica um pequeno opúsculo em 1849 intitulando-se bispo de Malaca, Solor e Timor.
Em 1856 é nomeado prelado para Moçambique, mas não parte de Lisboa, pois encontra-se a residir na Travessa da Pereira à Graça em 1861 de acordo com o Almanaque do Clero do Patriarcado desse mesmo ano.
Até à sua morte, ocorrida a 22 de Janeiro de 1864, pouco mais sabemos da sua vida, mas deve certamente ter continuado a frequentar os círculos políticos pois é sócio da Associação Marítima e Colonial de Lisboa, onde publica alguns artigos no Boletim da Associação.
Fica assim um pouco mais conhecida a história dos egressos dominicanos portugueses e da India.    

Ilustração: Capela de Nossa Senhora do Monte em Goa.  

Para escolher o bem

 
Conhecer o verdadeiro não é suficiente para ser capaz de escolher o bem. É necessário ainda um temperamento que se adquire pela formação do carácter e sobretudo pela graça, que se obtêm e se conserva numa vida espiritual equilibrada.
Dom Samuel

Ilustração: Galerias do Páteo da Galé, Lisboa.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O que está errado no mundo?

 
A uma entrevista de um jornal que lhe perguntou: “What is wrong in the world?” (O que está errado no mundo?), Chesterton respondeu com esta reflexão de um laconismo extraordinário: “Dear Sir, I am. Sincerely yours.” (Caro Senhor, eu mesmo. Ao seu dispor). De quem é a culpa? Minha, unicamente minha.
Dom Samuel

Ilustração: Velas na igreja de São Domingos ao Rossio.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Fizemos o que devíamos fazer (Lc 17,10)

Já todos fizemos essa experiência de acabar uma conversa, uma obra ou uma acção com estas palavras do Evangelho de São Lucas: “fizemos o que devíamos fazer”.
Mas se algumas vezes estas palavras aparecem como uma conclusão, como uma aprovação do realizado, muitas outras vezes aparece como interrogação, como dúvida que se nos coloca. Fizemos o que devíamos fazer?
Questão pertinente porque nos coloca face ao realizado, às suas motivações, à forma e meios utilizados e também aos resultados, bastantes vezes díspares ou distantes do que tínhamos planeado, ou desejado.
Contudo, quer como afirmação quer como interrogação, estas palavras não deixam de manifestar o que humanamente é legítimo, ou seja, o desejo de ter feito bem, de ser reconhecido e autorizado pelo praticado ou dito como bom.
A proposta de Jesus vai no entanto num sentido contrário, arrepia caminho face à necessidade de reconhecimento e valorização, prescinde de qualquer recompensa ou contrapartida.
De facto, com Jesus o que está em causa é o fundamento do que se faz e diz, é a felicidade de se saber conforme às exigências da situação e à verdade. Fizemos o que devíamos fazer porque o fizemos com o coração, o fizemos por amor, o fizemos por serviço ao próximo e à sua felicidade.
Fizemos o que devíamos fazer porque o fizemos na pureza da doutrina, o fizemos com dignidade, com linguagem sã e irrepreensível, com ponderação e bondade, com prudência e justiça, tal como São Paulo recomenda a Tito.
Fizemos o que devíamos fazer porque confiámos na graça de Deus, actuando em nós e actuando nos outros, porque esperamos que ela seja a verdadeira agente de transformação ou construção do que nos aventurámos a fazer.  
Muitos dos nossos irmãos e irmãs que no anonimato estão nas missões e no voluntariado confirmam-nos que diante destes princípios apontados por Jesus a consciência não coloca qualquer interrogação, mas se lança a novos desafios com a confiança de que há mais alegria em dar do que em receber e de que o Senhor não deixa de servir aqueles que o servem no próximo necessitado.
Possamos nós também arriscar o serviço, as diversas possibilidades de serviço ao próximo, e sentir essa alegria indizível de nos sabermos igualmente servidos no amor com que Deus nos ama.
 
Ilustração: “Tudo está no passado”, de Vassily Maximov, Galeria Tretyakov, Moscovo.

A felicidade nos que amo

 
A secura é para mim, que a mereço, e sou feliz que a água desbordante seja para aqueles que amo, porque Ele mos deu!
Louis Massignon a Paul Claudel

Ilustração: Sereia das Fontes do Rossio em Lisboa.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Se tivésseis fé como um grão de mostarda (Lc 17,6)

Diante do mandamento do perdão, face às faltas do outro ao longo do dia, os discípulos pediram a Jesus que lhes aumentasse a fé, conscientes que não é fácil perdoar o outro, passar uma borracha sobre os erros dos outros.
A resposta de Jesus ao pedido dos discípulos é no mínimo desconcertante, pois contrariamente ao pedido do aumento de fé parece diminuí-la, desvalorizá-la, relativizá-la, na medida em que apela à fé como um pequeno grão de mostarda. Não há necessidade de ter uma grande fé.
Quando muitas vezes nos colocamos a questão da fé, e da nossa fé na sua fragilidade, e pedimos a Deus que aumente a nossa fé, a resposta de Jesus aos discípulos colide inevitavelmente com esse pedido. Assim sendo, o que necessitamos face à fragilidade da nossa fé?
O grão de mostarda é neste sentido exemplar porque não sendo uma grande semente é capaz de dar origem a um grande arbusto, no qual os pássaros se podem abrigar. Afinal a questão não se coloca em termos de tamanho, de grandeza, mas de fecundidade e fertilidade.
A nossa fé, a nossa pequena e frágil fé, é já enorme, porque antes de mais é dom de Deus, é já uma realidade divina e portanto inevitavelmente destinada à fertilidade, ao crescimento e à multiplicação. Ainda que pequena, a nossa fé está de esperanças, pronta a dar à luz como as estrelas na noite escura.
Não nos devemos portanto assustar com a nossa pouca fé, com a sua fragilidade e pequenez, mas bem pelo contrário alegrar-nos com ela e por ela, procurando alimentá-la, fortalecê-la para que possa alcançar toda a plenitude e todo o fruto de que é portadora em potência.
Como todos os dons que nos vai oferecendo, que o Senhor nos conceda a fé e o desejo de a ir alimentando, fortalecendo, iluminando, de modo a que possa ser o nosso abrigo, a nossa fortaleza, a nossa ancora nos momentos de desanimo e sofrimento.
 
Ilustração: “Triunfo da fé sobre os sentidos”, de Juan António de Frias y Escalante, Museu do Prado, Madrid.
 

Sobre a glória de Deus

 
Porquê falar de uma “misteriosa nostalgia” num coração que conhece o amor Pré Eterno, Actual e Pós Eterno, aquele que tanto nos amou… E esta “glória de Deus” é ela outra coisa que a transfiguração das formas criadas por este Amor?
Louis Massignon a Paul Claudel

Ilustração: Cristo Rei e Ponte sobre o Tejo no dia 3 de Novembro de 2012.

domingo, 11 de novembro de 2012

Homilia do XXXII Domingo do Tempo Comum

As leituras que escutámos na Liturgia da Palavra deste domingo colocam-nos uma questão da qual não podemos escapar. Poderão os nossos olhos enganar-nos? Poderá o nosso sentido da visão conduzir-nos a um equívoco? Possivelmente sim e talvez por essa razão diz a sabedoria popular que temos dois olhos e dois ouvidos e apenas uma boca, porque necessitamos ver duas vezes e ouvir duas vezes para falar apenas uma vez a verdade.  
No Evangelho de São Marcos, Jesus chama a atenção para este equívoco, para esta possibilidade de engano e por isso manda acautelar-nos, pois há pessoas que fazem as coisas para receber elogios, para serem cumprimentadas nas praças, para serem louvadas pelos outros, reconhecidas e distinguidas.
E não é porque o que elas fazem seja mau, no caso concreto do Evangelho trata-se dos escribas e portanto do estudo da Palavra de Deus, da busca do seu conhecimento, mas porque o fazem por segundos interesses, por outro fim para além daquele que é o normal de tal exercício ou obra, com o objectivo de obterem imediatamente uma recompensa por parte da consideração dos outros.
Esta farsa torna-se mais grave na medida em que se vive no âmbito da fé e da relação com Deus, uma vez que os actos praticados, o culto não se destina verdadeiramente Deus mas à visão dos outros, aos olhos dos outros e ao seu elogio. Por esta razão e por várias vezes Jesus chama a atenção para o facto de tais comportamentos, tais atitudes, já terem a sua paga, a sua recompensa, que é o reconhecimento dos outros.
Da parte de Deus não há nada a retribuir, porque nada lhe foi destinado, e por consequência apenas uma sentença mais severa, uma vez que Deus não foi servido mas serviu, Deus foi o meio e não o fim das obras e actos praticados.
Assumindo o papel de observador das obras dos outros e do qual tinha falado, Jesus coloca-se no templo a observar as ofertas e esmolas que são entregues pelos fiéis e assim tem a possibilidade de ver como alguns deitam grandes ofertas para que os outros os possam elogiar, enquanto outros oferecem do pouco que têm, envergonhadamente, e quase com receio de serem vistos.
Perante tais ocorrências Jesus chama a atenção dos discípulos para a verdade da doação, para a verdadeira oferta, pois não são aqueles que dão muito que verdadeiramente dão, uma vez que entregam o que lhes sobra, mas aqueles que dão do pouco que têm ou até do que lhes pode fazer falta. O dom da oferta, a valorização da oferta, não pode portanto partir do que é dado mas do que é despendido, do que a pessoa verdadeiramente prescinde, deixa de ter para si para que outro possa ter ou usufruir.
Neste sentido é paradigmático o caso da viúva de Sarepta que encontramos no Primeiro Livro dos Reis, pois tendo apenas um punhado de farinha ela partilha-o com o profeta, correndo desse modo o risco de uma morte antecipada.
Temos assim que assumir que a verdadeira oferta é uma experiência de morte e portanto deve acontecer no recato da intimidade, no desconhecido e no invisível aos outros, longe de qualquer possibilidade de reconhecimento ou elogio.
No Evangelho, ao apontar a oferta da pobre viúva, Jesus coloca em evidência esta mesma fragilidade e experiência de morte, pois não só chama a atenção para a viúva, símbolo da fragilidade e precaridade, como diz que ela entregou tudo o que tinha para viver.
Face a esta chamada de atenção de Jesus não podemos querer que a nossa solidariedade e a nossa caridade sejam algo fácil, que as nossas ofertas não impliquem uma dimensão de sofrimento e de morte, de fragilização da nossa própria situação e segurança. Por outro lado não podemos deixar de ter em conta que a nossa fragilidade não é impeditivo de partilha, que apesar da nossa pobreza, em qualquer dos sentidos, podemos sempre dar alguma coisa, partilhar a fragilidade e a pobreza do outro.
E tal como aconteceu com a viúva de Sarepta o risco da morte conduz à vida, pois foi a sua generosidade que serviu posteriormente ao profeta de justificação para alcançar de Deus a ressurreição do seu único filho, prefiguração da ressurreição de Jesus, também ela consequência da doação total mas invisível aos olhos dos homens.
Procuremos pois viver as nossas possibilidades de partilha e de oferta com espirito generoso, subtraídas à vaidade e ao orgulho, à visibilidade, confiantes que apesar da dor do desprendimento que acarretam não deixarão de ser retribuídas por Deus, se por Ele foram realizadas.
 
Ilustração: “Profeta Elias e a viúva de Sarepta”, de Bernardo Strozzi, Kunsthistorisches Museum, Viena de Áustria.

A nostalgia da voz de Deus

 
Aquele que ouviu o chamamento irrecusável de Deus, como eu o ouvi e como também vós mesmo o ouvistes, guardará dele uma incurável nostalgia. Quem sabe mesmo se não é esta misteriosa nostalgia que constitui o fundo de todo o homem vivo?
Paul Claudel a Louis Massignon

Ilustração: Gaivota sobre a coluna do Cais das Colunas em Lisboa.

sábado, 10 de novembro de 2012

Deus permaneceu comigo

 
Deus deu-me muito nesta semana bendita, uma vez que apesar de todos os meus desvios, ele manteve-me constantemente junto dele, o coração quente, ardente dele, a voz falando dele, tocando por ele.
Louis Massignon a Paul Claudel

Ilustração: Azáleas Brancas do jardim da casa dos meus pais.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Jesus fez um chicote de cordas e expulsou-os. (Jo 2,15)

Os Evangelhos contam-nos que Jesus falava com autoridade, quer quando expulsava os demónios, quer quando ensinava, e por isso era admirado pela multidão.
São João conta-nos que um dia, estando já próxima a Páscoa, Jesus subiu a Jerusalém e, sem que nada o previsse, usou dessa autoridade que lhe era natural no templo expulsando aqueles que vendiam os animais para os sacrifícios e trocavam o dinheiro para as ofertas.
Aquele que se apresenta como o doce e humilde, que convida à paz e à fraternidade, que convoca a viver o mandamento do amor, assume uma atitude violenta diante dos vendedores do templo, toma-se de cólera face ao negócio que vê.
Tal atitude desconcerta os que o conhecem, deixa-os perplexos, pois não estão habituados, e inevitavelmente desconcerta-nos também a nós, pois também não estamos habituados.
Contudo, face a esta atitude de Jesus podemos e devemos interrogar-nos sobre a violência, podemos questionar-nos se a antropóloga Françoise Héritier tem razão quando afirma que “as religiões do Livro são o berço da intolerância”, e consequentemente da violência.
Seja a nossa resposta positiva, ou nem tanto, a verdade é que ser cristão acarreta obrigatoriamente uma dimensão de violência, à qual Jesus não fugiu e nem deixou de alertar. Podemos pensar na oposição que gera o seu seguimento na família, quando encontramos dois contra três, na Bem-Aventurança que profetiza a perseguição, na violência para a conquista do Reino do Céu.
Ser cristão não significa que está tudo bem, que tudo nos convém e tudo aceitamos, não significa fugir ou evitar os conflitos, não significa passar despercebido, mas pelo contrário enfrentar os desafios e as realidades adversas como um processo de aprendizagem e de passagem, uma nova realidade em construção ou gestação.
O doce e humilde Jesus não fugiu dos desafios, dos combates, não se evadiu face às injustiças e ao mal, não se deixou vergar às circunstâncias, mas revestido da armadura de Deus, da fé e da esperança em Deus Pai, enfrentou-as até ao derramamento do sangue e à entrega da vida. A sua doçura e humildade são as mesmas forças que são capazes de combater o mal e o levar de vencida.
André Frossard, filho de um dos fundadores do partido comunista francês e educado no ateísmo militante converteu-se ao catolicismo por volta dos vinte anos de idade. Do seu encontro pessoal com Jesus escreveu: “Ele é doce, duma doçura sem comparação, que não tem a qualidade de passividade que por vezes designamos com este nome, mas uma doçura activa, esmagadora, capaz de fazer rachar a pedra mais dura, e mais duro que a pedra, o coração humano.”
É esta violência cristã que somos convidados a viver, a violência da humildade e da doçura, a violência que quebra o gelo dos corações e pode fazer despertar o amor comum.
 
Ilustração: “Cristo expulsando os vendedores do templo”, de Antoine Jean-BaptisteThomas, Igreja de Saint-Roch, Paris.

A nossa missão


 
Um só fim é digno de nós, fazer amar a Deus antes de tudo, incendiar as almas que podem arder por Ele.
Louis Massignon a Paul Claudel

Ilustração: Céu em fogo de ouro, Vila Nova de Tazem, 27 de outubro de 2012.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Procura cuidadosamente até encontrar. (Lc 15,8)

Face à crítica dos fariseus e escribas por aceitar comer com os pecadores e os publicanos, Jesus conta a parábola da ovelha e da dracma perdida. Duas parábolas sobre a misericórdia de Deus, o amor de Deus, e o seu desejo de salvar todos os homens.
E se a parábola da ovelha perdida nos coloca diante da loucura do amor de Deus, da desproporção desse amor, pois deixa as noventa e nove ovelhas para procurar apenas uma, a parábola da dracma perdida coloca-nos diante da exigência dessa mesma busca, da sua amplitude.
Tal como a mulher que acende a candeia, que ilumina a casa, que varre e busca cuidadosamente, também Deus vem ao encontro do homem da mesma forma solícita exigente.
E para grande surpresa nossa é nos lugares mais inusitados que Deus se deixa encontrar, ou nos faz encontrar com ele, nos faz descobrir a nossa distância e perdição e o amor que nos tem apesar disso.
Necessitamos descobrir este amor de Deus e dispor-nos a acolhê-lo, necessitamos reconhecer que tal como um bom investidor Deus não está interessado em ter qualquer prejuízo, não está interessado em perder um por cento do seu rendimento.
O rendimento de Deus é o homem vivo, a glória de Deus é o homem vivo, e por isso Deus vem ao nosso encontro, vem em nossa busca, para que não apenas a sua glória seja diminuída mas para que participemos também dela.
Que o nosso coração se disponha a deixar-se encontrar e a partilhar a alegria do encontro com Deus.
 
Ilustração: “Parábola da dracma perdida”, de Domenico Fetti, Gemaldegalerie Alte Meister, Dresden.

Um convite ao amor

 
O nosso fim é o Amor Eterno sob a forma que ele tomou ao assumir esta vida que nos prende ainda, o corpo carregado de misérias e o espirito pesado de contradições, o Amor Sofredor, ardente, incendiado! E este papel convida-nos a todos com bastante persuasão.
Louis Massignon a Paul Claudel

Ilustração: Sagrada Familia do Presépio da casa dos meus pais.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Se alguém não me preferir (Lc 14,25)

Não podemos deixar de assumir que gostamos de ser preferidos, que não gostamos de ficar em segundo lugar ou num papel secundário. Em muitas situações da nossa vida os conflitos, as mágoas, os ressentimentos derivam dessa sensação de termos sido preteridos, de ter havido alguém que foi preferido mais que nós.
Em muitas histórias esta situação, este complexo, acompanha-nos desde a infância como uma cicatriz de um acidente em que nos confrontámos com a realidade de não ser amados, de não ser plenamente amados, ou amados como esperávamos. E quantas vezes essas feridas não são apenas marcas e memórias do nosso egoísmo ou egocentrismo?
No amor humano o simples facto de não ser preferido, de ter sido dada mais atenção a um outro que a nós, quantas vezes não representa uma exclusão, uma sensação de abandono que fere esse nosso gosto de ser o centro de todas as atenções.
Jesus diz aos seus discípulos e à multidão que se alguém não o preferir mais que o pai, a mãe ou os irmãos não pode ser seu discípulo. Jesus parece que pede a radicalidade e a exclusividade, como se fosse uma criança mimada.
Contudo, face ao mandamento do amor que nos deixou como podemos entender este pedido, esta exclusividade? Como compreender a necessidade de deixar tudo e todos por Jesus, para ser seu discípulo? Como compaginar o convite ao amor do próximo, e os mais próximos são ainda a nossa família, como esta preferência por Jesus?
Não podemos deixar de responder que o pedido de Jesus segue na linha da radicalidade do amor, da compreensão de todos os afectos, de todo o carinho, como fundamentados e alicerçados no amor divino. Deus é a fonte do amor e todo o amor deve dela partir.
Desta forma o meu amor, o meu carinho, a minha amizade deixarão de estar centrados em mim, deixará de ser egoísta e apropriante, para ser uma manifestação do verdadeiro amor que nos precede e nos vivifica. A partir da preferência por Jesus e à luz da sua vida e do seu amor, o meu amor será iluminado, terá outro brilho e outra dimensão.
Que o Espirito Santo nos ajude a descobrir como a preferência por Jesus nos liberta e nos faz viver de uma forma mais plena e verdadeira o amor por que todos aspiramos.
 
Ilustração: “A jarra partida”, de Gustava Igler, Dorotheum, Viena.   

Como é doce amar

 
Que Deus seja louvado por nos ter amado! Como é doce tentar amá-lo um pouco, mas em recompensa, como é mais doce ainda de o fazer amado. Oh se eu pudesse que os corações mais largos que o meu, que foi sempre estreito, fossem conquistados para ele, aqueles que desconhecem ainda o segredo do amor.
Louis Massignon a Paul Claudel

Ilustração: Brincos de Princesa do jardim de casa dos meus pais.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Assumir com determinação

 
Deus salvou-te, por um milagre singular, da morte do corpo e da morte da alma. É necessário assumir a determinação, tu és já propriedade sua e não tua. Faz pelo menos da tua parte algum esforço magnânimo. Há se pudesses chegar a ser um desses santos de que a terra está sedenta!
Paul Claudel a Louis Massignon

Ilustração: Sacrário da igreja de Cristo Rei, no Porto, no dia 6 de Outubro de 2012.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Interdição ao desespero

 
Não quero atenuar o sentimento de penitência que partilho fraternalmente consigo. Mas Deus interdita-nos antes de mais todo o desespero. O maior dos crimes, o de Adão, foi a causa do maior dos bens.
Paul Claudel a Louis Massignon

Ilustração: Nuvens de tempestade com luz cheia a revelar-se.

domingo, 4 de novembro de 2012

Homilia do XXXI Domingo do Tempo Comum

A imagem que frequentemente nos é transmitida pelos Evangelhos sobre os escribas e os doutores da Lei é que as suas aproximações a Jesus têm sempre como objectivo apanhá-lo em algo de errado, são armadilhas estendidas à boa vontade de Jesus.
O encontro que o Evangelho de São Marcos nos relata na leitura deste domingo poderia também ser entendido nesse sentido, mas tal não corresponde exactamente à verdade, porque afinal o escriba apresenta a Jesus uma questão que tem por objectivo obter uma resposta esclarecedora para a sua situação pessoal.
A questão que o escriba coloca a Jesus era uma questão que perpassava pela consciência e pela vivência da fé de todo o judeu, uma vez que face a seiscentos e treze mandamentos inscritos na lei mosaica era certamente difícil discernir qual o mais importante, o que prevalecia sobre os outros.
Havia certamente conflitos entre os diversos mandamentos, como podemos constatar quando Jesus confronta a obrigação do repouso no sábado com a necessidade da ajuda ao próximo; pelo que a necessidade de estabelecer prioridades sobre o cumprimento dos mandamentos era importante e é isso que preocupa o escriba que se dirige a Jesus. Afinal ele quer saber qual é o primeiro mandamento.
Jesus não vacila um segundo na resposta a dar a este homem sedento de fidelidade e por isso em vez de enumerar um mandamento, de colocar a primazia sobre um mandamento, enuncia dois que coloca em situação de igualdade, em complementaridade, o mandamento do amor a Deus e o mandamento do amor ao próximo.
Certamente para nossa grande surpresa, Jesus não inova em nada, não arrisca algo diferente do que era conhecido e património da fé comum, e por isso imediatamente obtém a concordância do escriba. De facto a formulação apresentada por Jesus, a união do amor a Deus com o amor ao próximo fazia já parte da herança espiritual, da doutrina profética e da Lei de Moisés.
Neste sentido, não podemos deixar de ter presente que Jesus começa a responder ao escriba apresentando a oração que todo o judeu devia rezar pelo menos três vezes ao dia e que tinha adquirido um significado tal que havia pequenos objectos para a fazerem presente no dia-a-dia. Era a oração do livro do Deuteronómio que a primeira leitura deste domingo nos apresenta e se encontrava à entrada de casa ou se trazia amarrada ao braço.
Uma oração, um texto, que tinha tal significado que mesmo na sua visibilidade textual tinha características próprias. O alfabeto hebraico não tem letras maiúsculas, mas neste texto tanto a última letra da primeira palavra como a última letra da última palavra são traçadas em tamanho superior, em maiúscula, evidenciando assim a radicalidade do texto escrito e lido.
Por outro lado as duas letras que enquadram o texto formam uma palavra que significa testemunho, dar testemunho, o que obrigava inevitavelmente a perceber o mandamento do amor a Deus como algo a testemunhar, como um dever sagrado que necessariamente devia ser transmitido ao mundo e vivido de forma concreta.
Estamos assim neste encontro, e nesta resposta de Jesus ao escriba, diante de uma bela acção pedagógica, de uma forma de evangelização e transmissão da fé que nos desafia verdadeiramente, que nos deixa algumas pistas para a nossa própria situação e acção.
O que Jesus fez com o escriba e o que somos também convidados a fazer na transmissão da fé, na descoberta de Jesus, é o confronto das mesmas realidades pessoais, sociais, históricas, com o projecto de Deus e com o mandamento do amor.
Neste sentido, não podemos deixar de partir do humano, da vida concreta, dos valores que ainda norteiam os nossos irmãos, como a justiça, a liberdade, a fraternidade, o serviço ao próximo, entre outros, e que necessitam ser iluminadas pelo amor de Deus para serem percebidos e vividos à luz desse mesmo amor.
Uma vez mais voltamos à necessidade de perceber que as diversas realidades da nossa vida são alertas, oportunidades, para a nossa realização, para a nossa plenitude, e que só a alcançamos verdadeiramente quando cunhamos essas diversas realidades com o Espirito de Deus. Deus fez-nos para ele e o nosso coração não tem repouso enquanto não descansa nele, não se satisfaz nele.
Os homens e mulheres do nosso tempo carregam consigo muitas dúvidas, muitas questões, procuram um sentido para as suas vidas e muitas vezes necessitam de nós cristãos não um enunciado de fórmulas ou um discurso moral, mas a iluminação da presença de Deus nas mesmas realidades que vivem e que os angustiam. Como um cristal bonito necessitam de um raio de luz que os faça brilhar.
Procuremos pois, com o auxílio do Espirito Santo, encontrar em nós e desvelar nos nossos irmãos e irmãs a presença do amor de Deus que tudo toca e tudo retorna ao seu verdadeiro valor e dimensão divina.
 
Ilustração: “Nicodemos e Jesus num terraço”, de Henry Ossawa Tanner, Academia de Belas Artes da Pensilvânia.