segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Um desastre de porcos (Mc 5,1-20)

Jesus atravessa para a outra margem do lago e logo que põe o pé em terra vem ao seu encontro um possesso, um homem atormentado por uma Legião e que ninguém podia segurar ou prender.
São Marcos faz-nos uma descrição quase grotesca do ambiente, com os túmulos e a noite pelos quais o homem divagava, as feridas que se infligia, o medo que provocava. É um ambiente de morte, de um mundo de mortos ao qual o Senhor chega para libertar os que estão presos nesse mesmo mundo.
Perante a ameaça do fim do seu reino, o espírito impuro que habitava aquele homem dirige-se a Jesus para lhe fazer um pedido surpreendente, o pedido de não ser atormentado. É algo extremamente significativo porque demonstra uma consciência de finitude, da libertação que Jesus vai operar, mas também uma inversão do sentido da libertação, uma mentira face à forma dessa libertação.
Ao pedir a Jesus que não seja atormentado o espírito impuro evoca o sofrimento a que Jesus se entregará para a libertação de toda a humanidade, evoca um processo libertador eivado de uma violência e de um sofrimento pelo qual Jesus passará e que ele maliciosamente aponta e assume como destino e forma de todos os processos de libertação. Ele acusa Jesus de promover o sofrimento para alcançar a libertação.
E é assim, que perante esta mentira e esta acusação, Jesus manifesta a verdadeira dimensão da libertação que vem trazer e operar, condescendo com o pedido do espírito e não o expulsando tormentosamente mas permitindo-lhe que se transfira para a vara de porcos que depois se joga no precipício.
Mesmo perante os espíritos impuros, perante os demónios, Jesus manifesta a sua misericórdia, a liberdade de opção que adjudica a cada um, a salvação que realiza sem custos para nada nem para ninguém senão para ele próprio. Jesus liberta pelo amor e não pelo sofrimento, pela sua entrega de vida e não por qualquer imposição castradora ou opressora.
E se os porcos se precipitam no abismo e se afogam nas águas não é por vontade de Jesus, não é por castigo ou maldição, mas apenas porque os espíritos impuros tinham sido objecto de um acto misericordioso de libertação que pela mentira que tinham criado e pelo egoísmo não eram passíveis de suportar.
Este episódio deve portanto levar-nos a olhar para a nossa relação com Jesus com outros olhos, para a libertação que Jesus opera na nossa vida sem qualquer desejo de sofrimento ou violência. Ele sofreu por nós, carregou com os nossos pecados e enfermidades, para que pudéssemos caminhar para a casa do Pai de uma forma mais livre e ligeira.
Não O podemos culpar pelas consequências dolorosas dos nossos actos irreflectidos e egoístas, dos sofrimentos que nos infligimos por nos escusarmos a viver na luz e na verdade. Pelo contrário devemos pedir-lhe que nos liberte deles e das fontes que em nós os provocam.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Homilia do IV Domingo do Tempo Comum

Quando nos aproximarmos do momento da comunhão, depois da fracção do pão, esse mesmo pão, corpo e sangue do Senhor, ser-nos-á apresentado e ser-nos-á dito “felizes os convidados para a ceia do Senhor, eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. De tantas vezes termos escutado esta Bem-Aventurança e de lhe respondermos que não somos dignos, já nem nos damos conta do que nos é anunciado e de como nos consideramos perante tal anúncio.
Esta Bem-Aventurança Eucarística, e a resposta da nossa indignidade e miséria perante tão grande dom, é uma verdade que justaposta às Bem-Aventuranças que escutámos no Evangelho nos ajuda a compreender e a viver estas mesmas Bem-Aventuranças, pois é à luz da paixão de Jesus, comemorada na Eucaristia, que descobrimos o último e verdadeiro sentido das propostas que o Senhor nos faz nesta Magna Carta do ser cristão.
É na paixão e na cruz de Jesus que se revela a verdadeira pobreza, no que ela tem de despojamento, de nudez, e partilha da condição mortal da humanidade. É na paixão e na cruz que se revela a verdadeira humildade, no que ela tem de aceitação da vontade do Pai, de entrega do espírito nas mãos de Deus. É na cruz que se revela o verdadeiro sentido das lágrimas dos que choram, porque permitem uma nova maternidade, uma mãe entregue a um filho convidado a consolar a perda.
É na paixão e na cruz que se revela a verdadeira fome e sede de justiça quando se aceita padecer e entregar a vida por aqueles que não o merecem e tão pouco se preocupam com essa justiça. É na cruz que se revela a verdadeira misericórdia quando aquele que padece pede perdão ao Pai porque os carrascos e todos os presentes não sabem o que fazem. É na cruz de Jesus que se revela a verdadeira pureza de coração quando um condenado é capaz de defender o inocente e apesar da sua imagem desprezível é capaz de reconhecer nele o filho de Deus e pedir a sua visão na glória.
É na cruz de Jesus que se revela a verdadeira promoção da paz quando pela entrega amorosa e solícita é estabelecida a paz entre Deus e os homens, se rasga o véu do templo e a porta do paraíso é de novo aberta.
Assim, a cada Bem-Aventurança enunciada por Jesus no alto do monte de Cafarnaum podíamos verdadeiramente acrescentar “eis o cordeiro de Deus que tira o pecado mundo”, eis aquele que viveu na sua carne e na sua história estes mesmos enunciados e propostas, e portanto não nos deixa como que um programa politico ou ideológico, mas um mapa para o caminho, uma proposta de vida.
Neste sentido, e à luz da paixão e da cruz, as Bem-Aventuranças não são um elogio ou uma proposta de tranquilidade, de uma passividade beata, de uma aceitação resignada das realidades pelos pobres e fracos como Nietzsche as viu, mas bem pelo contrário, elas apelam a uma atitude concreta, radical, empenhada, a um trabalho árduo e a uma busca de felicidade neste mundo e num sentido contra corrente do que é comum.
Ainda nesta linha, não podemos também falar das Bem-Aventuranças como uma linguagem poética, um belo texto de princípios que necessitam ser inculturados, que necessitam de uma interpretação à luz do dia para poderem ser vividos, talvez um texto moral que devemos louvar mas que não nos afecta muito mais para além do sublime da sua mensagem.
São Paulo, na Carta aos Coríntios e no trecho que também lemos tira-nos qualquer ilusão que possamos ter face a esta concepção e a esta leitura. A Igreja, hoje como no tempo de Corinto, é uma comunidade sem grandes sábios, sem gente influente, sem gente bem-nascida, um povo de pobres e de loucos, um resto como o resto de Israel que vive nas malhas da misericórdia de Deus e O busca nas margens do incompreensível.
Alguém esboçará um sorriso, e pensará no seu coração, que não estou a ver muito bem, que estou desfasado da realidade, que me estou a esquecer do poder da Igreja, das suas influências, das redes de interesses e de toda a máquina institucional em que nos movemos e tantas vezes nos sentimos limitados na nossa expressão e liberdade.
Essa é uma realidade da Igreja, e certamente a necessitar conversão, porque outra é aquela que vive no silêncio contemplativo dos claustros, que vive inserida nos bairros mais pobres, que todos os dias se entrega em caridade a doentes leprosos ou a crianças abandonadas, que vive como sinal de paz em zonas de conflito.
Outra é também a Igreja que se encontra em situação de pobreza, de humilhação e perseguição, realidades que nos aparecem distantes e que rejeitamos pelo incómodo e desconforto que nos provocaria. Outra é a Igreja que se apresenta pura de coração, misericordiosa, casta, que eleva a mãos agradecida para Deus e que a sociedade rejeita porque nos questiona nos valores da vida e no uso que fazemos do outro e do nosso próprio corpo, na nossa auto-suficiência. Outra é a Igreja que tem sede e fome de justiça, que se compromete na construção da paz, que se apresenta como inimiga e ameaça às nossas instalações e esquecimento de todas as formas de exclusão e por isso eliminamos sem apelo.
Nesta Igreja, ou nestas realidades da Igreja que podemos considerar um resto, manifesta-se a cruz de Jesus e vive-se as Bem-Aventuranças, que não são apenas para uns poucos, para uns desgraçados privilegiados, mas que são para todos nós enquanto homens e mulheres que se consideram indignos do dom bem aventurado que Deus lhes oferece de partilha do banquete celeste no Reino de Deus.
Quando Jesus apresenta as Bem-Aventuranças no monte de Cafarnaum o seu auditório não é muito significativo, ele não fala para uma elite, mas para pecadores como Maria Madalena, para rejeitados e cobradores de impostos como Mateus, para pescadores que aspiram à satisfação das suas expectativas de poder, para cegos, coxos e doentes, uma plateia que tem muito pouco de dignificante.
Contudo, se Jesus o faz e lhes apresenta as Bem-Aventuranças é porque quer que nas nossas existências banais, simples e pecadoras estas propostas se façam vida, se façam presentes e transformadoras da realidade, que na nossa vida a santidade possa ser possível. Neste sentido cada um de nós pode viver as Bem-Aventuranças na medida em que vive alguma forma de pobreza, alguma exclusão, alguma injustiça, alguma luta pela verdade, a humildade e a misericórdia, não de uma forma fatalista, revoltada, auto glorificante, mas como oportunidade de encontro com Deus e com o outro, como oportunidade para a experiência humana e finita do banquete infinito da glória divina.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Ainda não tendes fé? (Mc 4,40)

A questão que Jesus coloca aos discípulos, “ainda não tendes fé”, é de todo pertinente, porque apesar de tudo eles ainda não acreditam verdadeiramente nele; mas é simultaneamente contraditória, pois se eles o acordam do seu sono para que faça alguma coisa é porque tinham fé. No mínimo acreditavam que Jesus podia salvá-los daquele perigo.
Esta não era no entanto a fé que Jesus esperava deles, a fé que devia resultar da intimidade que viviam com ele e do que tinham aprendido nos seus ensinamentos. Essa fé possibilitava uma confiança que eles não manifestaram quando acordaram Jesus.
Ao acordar Jesus e ao perguntar se não se importava que perecessem à fúria das ondas e do vento, os discípulos estão a evidenciar uma falta de intimidade, a falta de um conhecimento mais perfeito e profundo daquele que traziam consigo no barco.
Como era possível que duvidassem da preocupação de Jesus por eles, do seu interesse e do seu amor, ainda que adormecido? Não os tinha ele escolhido? Não lhes ensinava em particular o que ao povo ensinava por parábolas?
Neste sentido Jesus tem toda a razão e pode realmente questioná-los na confiança que depositam nele, na fé que fazem nele, nessa dúvida de ele se preocupar com eles e com a sua sorte. Tendo-os amado e tendo-os escolhido, o seu amor era pleno, a sua preocupação era permanente, ainda que dormisse e parecesse não se preocupar.
Esta é também a realidade que se coloca à nossa fé em Jesus e em Deus, quando nos questionamos e questionamos Deus sobre o seu silêncio, sobre a sua inactividade na nossa vida e na resolução dos nossos problemas.
Ainda que pareça surdo aos nossos pedidos, às nossas orações, que pareça que vai a dormir na barca da nossa vida, Jesus está lá, está presente, e no seu amor não deixará que o mal se apodere de nós, que pereçamos às mãos dos nossos inimigos. Assim nos mandou pedir-lhe na oração que nos ensinou. Pelo que, certamente, o que nos falta muitas vezes é essa confiança que nasce da intimidade da relação e do conhecimento mais profundo.
Se quando amamos ou somos amados por alguém nunca nos passa pela cabeça o esquecimento como podemos pensar o contrário daquele que nos ama acima de tudo, que entregou a sua vida por amor de nós?
Peçamos assim a Jesus, antes de qualquer outra coisa, que nos aumente a fé, que nos fortaleça na confiança e na esperança que colocamos nele e no seu amor por cada um de nós.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

São Tomás de Aquino, um retrato

Celebramos hoje a festa de São Tomás de Aquino e face ao peso histórico, à sua importância teológica, gostaríamos de ter um retrato dele, qualquer representação que nos deixasse vislumbrar um pouco da figura humana deste santo dedicado à descoberta de Deus.
Mas a história e os homens do seu tempo não nos legaram nenhum retrato de São Tomás enquanto vivo, apenas podemos ter uma ideia pelas pinturas de frei João de Fiesole, o beato Angélico, por um ou outro quadro mais tardio e por algumas letras capitulares iluminadas, nas quais aparece habitualmente representado a pregar num púlpito.
Contudo, as testemunhas do seu processo de beatificação deixaram-nos algumas informações preciosas para hoje se poder esboçar uma imagem física de São Tomás. Corporalmente era uma figura robusta, alguns dizem que era mesmo um bocadinho gordo, e assim o representam algumas pinturas posteriores. Era alto, de mais ou menos um metro e oitenta, com uma cabeça grande e uns olhos penetrantes.
Conta uma das testemunhas do processo de beatificação que a sua mãe tinha muito orgulho na formosura dos filhos e assim costumava dizer que se alguém quisesse ver dois homens formosos deveria olhar para os seus dois filhos, Tomás e Reginaldo. Amor de mãe…
Para além da grandeza física, Tomás era também um ser excepcional em termos cognitivos e intelectuais. Com uma memória prodigiosa, gravava imediatamente e para sempre o que lia, servindo-se posteriormente dessa memória para argumentar nos debates teológicos. Tinha uma capacidade enorme de abarcar e relacionar os dados do conhecimento que possuía e com que se debatia.
Estes dotes intelectuais vão ser postos ao serviço de um único objectivo, conhecer Deus e dar Deus a conhecer aos outros. O contemplar e o dar o contemplado aos demais. Para isso tudo serve, desde a natureza às produções filosóficas e artísticas, ao mais leve sussurrar do pensamento racional.
Tomás desde bem cedo se dá conta que a graça, a força de Deus, não destrói a natureza do homem nem lhe retira a liberdade, bem pelo contrário, leva-a à perfeição, ao desenvolvimento perfeito e total. Neste sentido luta pela verdade, pela busca da verdade no homem, na natureza, em Deus.
Desde os estudos em Nápoles, ainda adolescente, que se lhe cravou na alma e no espírito inquisidor a sentença da Metafísica de Aristóteles “todos os homens por natureza desejam saber”, ou seja, a verdade é afinal o destino último do homem. E é por ela que Tomás estuda, investiga, caminha ao encontro dos homens que pedem a sua resposta.
Tomás assume o desafio da busca da verdade colocado por Deus, e assim na Suma contra os Gentios afirma “confiando na misericórdia divina assumi o ofício de sábio, ainda que tenha clara consciência que ultrapassa as minhas forças; por isso decidi dedicar-me ao estudo e ao ensino da verdade que professa a fé católica, na medida das minhas possibilidades”. A consciência dos limites leva Tomás a entregar-se ainda mais ao projecto que acreditava que era o de Deus para si.
Mas se o faz com toda a confiança, e voluntarismo, não deixa de o fazer em comunidade; ou seja, a conquista da verdade não se faz isoladamente mas em dimensão comunitária. O homem é um ser natural mas é também um ser social, um ser cultural.
Neste aspecto Tomás assumiu muito claramente a ideia de Santo Alberto Magno, seu mestre, que convidava os seus alunos a trabalhar em grupo, nas tão actuais parcerias, em que todos colaboram para a prossecução do fim pretendido.
É interessante a forma latina usada por São Tomás, forma que se pode aplicar a qualquer trabalho de investigação, a qualquer parceria: “in dulcedine societatis quaerere veritatem”, em agradável companhia buscar a verdade.
Que São Tomás seja nossa companhia e juntos possamos buscar a Verdade porque tanto estudou, leu, pregou, trabalhou, em suma deu a vida.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Uma lâmpada para o candelabro (Mc 4,21)

Há palavras e realidades tão quotidianas, tão comuns, que já nos são banais, que nos passam ao lado e já nem damos por elas. A luz, a iluminação, é já tão intrínseca ao nosso modo de vida que só damos por ela, pela sua presença e serviço, quando a perdemos e ficamos na escuridão.
E então, nessa imensidão do escuro e da noite descobrimos a beleza e o valor de uma pequena centelha, de uma vela acesa, do brilho das estrelas cintilantes no firmamento. Quando não havia mapas, nem satélites, nem GPS’s, era pelas estrelas que os homens se guiavam, por esses pequenos pontos brilhantes no céu nocturno, e no caminhar caseiro uma candeia levada um pouco adiante ou acima dos olhos impedia os tropeços e as quedas.
Jesus tem presentes estas realidades quando nos diz que não se acende uma lâmpada para a colocar debaixo da cama, mas para a colocar no candelabro; não se esconde a luz destinada a iluminar, mas eleva-se para que nos ilumine com maior intensidade.
Ora cada um de nós recebeu uma centelha da luz divina e assim na sua imagem e semelhança com Deus está também destinado a brilhar e a iluminar, a elevar a sua pequena chama para que ela brilhe com mais intensidade, fortalecida pela altura divina e pela amplitude do mundo à volta.
Muitas vezes e por razões sem sentido escusamo-nos a elevar a nossa luz, fechamo-la nos alqueires da nossa solidão, debaixo das camas da nossa indiferença e preguiça. É tão mais fácil e tranquilo ter a luz ali, sossegada, fechada, sem incendiar qualquer outra realidade combustível. E por vezes é tudo tão combustível, está tudo tão ressequido e possível de incêndio em nós e à nossa volta.
Mas como a Palavra divina também a ciência nos ensina, a luz necessita de oxigénio para viver, precisa de espaço e ar, precisa de ser elevada, porque encerrada morre na sua isolada combustão. O encerramento da nossa luz pequenina condena-a à morte inevitável.
Necessitamos por isso, cada um de nós, de elevar a sua luz, pequena ou grande, mais fraca ou mais intensa. E então, que alegria descobrir que ela brilha com mais intensidade, e também, que a nossa pequena luz é mais uma entre milhares que buscam elevar-se, que brilham na noite escura. Descobrimos então que não estamos sós, que a nossa luz pequenina não é única, e em conjunto conseguimos incendiar a escuridão que nos rodeia.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Pedi ao dono da seara que mande trabalhadores!

Jesus designa setenta e dois discípulos e envia-os dois a dois a todas as cidades onde ele mesmo devia ir. É um número simbólico que se prende com as setenta e duas nações que são referenciadas no capítulo onze do livro dos Génesis e portanto significa toda a humanidade. Afinal todos estamos designados por Deus a ir à sua frente, anunciando o seu reino.
Antes de partirem Jesus apresenta-lhes as condições para a missão, para uma verdadeira realização dos objectivos, e habitualmente ficamos tão fixados naquelas que mais nos custam que quase sempre passa despercebida entre as condições e exigências a primeira recomendação de Jesus. “Pedi ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara”.
Esta é afinal a primeira tarefa da missão, a primeira condição, pedir ao Senhor que mande trabalhadores. E se tal acontece é para nos mostrar a necessidade de outros na missão, a necessidade da complementaridade, bem como a nossa fraca eficácia se contamos apenas connosco.
Podemos assumir esta recomendação como um desafio à humildade, à nossa humildade no sentido de reconhecermos que fazemos muito pouco, podemos muito pouco, contudo em conjunto e com outros podemos chegar onde nunca suspeitámos chegar. É um desafio a descobrir e a assumir que não podemos tudo, que não chegamos a tudo e portanto no trabalho do Senhor necessitamos uns dos outros. O outro pode fazer o que eu não faço, pode chegar onde eu não chego, pode saber o que eu não sei.
É também um desafio na descoberta consciente de que a obra afinal não é nossa, não somos seus donos, nem pode ser moldada ao nosso desejo e vontade. É uma obra de Deus e portanto somos meros servos, por vezes inúteis, que fazemos alguma coisa de jeito na medida em que estamos atentos à palavra do Senhor.
Ao dispormo-nos para seguir o Senhor, para a missão a que nos designa, não esqueçamos de pedir, antes de traçar os planos e as metas, que nos sejam facultados os companheiros necessários. Só dessa forma a missão poderá ser verdadeiramente divina porque deixará de ser pessoal para ser partilhada por um e outro, entre nós e Ele.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A conversão de São Paulo

Paulo parte de Jerusalém munido de cartas de recomendação e poderes para prender todos os convertidos à nova religião e trazê-los de volta a Jerusalém para serem julgados. A sua formação, a sua ascendência familiar, o seu zelo garantem-lhe a confiança das autoridades do Sinédrio e do Senado para o cumprimento de tal missão.
São João Crisóstomo no seu comentário à Carta de São Paulo aos Gálatas diz que não foi qualquer inveja ou ciúme que moveu Paulo, qualquer pensamento ou desejo maldoso, mas esse zelo que o devorava, esse desejo de fidelidade e verdade àquela que tinha sido sempre a sua fé, na qual tinha sido criado e que considerava como verdadeira e fonte de salvação.
Paulo partiu de Jerusalém confiante da sua missão, da sua fé e da verdade que procurava defender, mas já não chegou a Damasco com a mesma convicção. O encontro do Senhor no caminho alterou-lhe os planos, as ideias, a verdade que buscava.
O livro dos Actos dos Apóstolos por duas vezes faz menção do incidente ocorrido, uma vez na boca do próprio Paulo quando tem que se defender em Jerusalém e outra vez na narração da própria história da perseguição de Paulo. Já perto de Damasco, por volta do meio-dia, uma luz intensa rodeou Paulo e ele caiu por terra.
As diversas representações iconográficas têm por tradição representar uma queda de cavalo, ainda que o texto não nos relate esse pormenor. Contudo, ao fazê-lo, os artistas e a tradição quis evidenciar a dimensão estrondosa do incidente, a transformação radical operada com a caída por terra de que fala São Paulo.
Paulo caiu de muito alto, do alto da sua prepotência e prerrogativas, da vaidade da sua origem e dos seus atributos, do alto do seu poder entregue por outros, de que o cavalo é símbolo por excelência. Como diz o povo, quanto mais se sobe maior é a queda e as pinturas da conversão de Paulo evidenciam-nos isso mesmo.
Mas esta caída por terra é extremamente significativa porque é no chão, junto ao pó de onde procede toda a raça humana que Paulo ouve a voz que lhe pergunta “porque me persegues?”. É nessa condição de humanidade, despojado de todo o poder e toda a glória, reduzido quase ao mesmo pó, que Paulo é questionado sobre a sua missão.
Não podia ser de outra maneira, porque de facto é na nossa humanidade, na nossa proximidade dessa origem poeirenta que podemos escutar a voz de Deus de uma forma mais cristalina e original, como na criação, que nos pode questionar sobre o nosso fim e o nosso principio.
A pergunta pode ser porque me persegues, como foi para Paulo, mas pode ser também como e onde me procuras, porque te esquecestes de mim, ou lembra-te que és pó mas a tua vida não o é. No confronto com a nossa humanidade, no que ela tem de finitude e limitação, de provisório, Jesus chama-nos a dar uma resposta sobre o sentido da nossa missão, sobre os poderes e as glórias de que nos ufanamos de possuir.
E podemos ficar cegos, não ver para além do próprio pó e da queda, da prosternação em que nos encontramos, do sem sentido de tudo o que possuímos ou somos. Mas ainda que cegos não podemos ser surdos, como Paulo também não o foi, pois ouviu a voz do Senhor dizer-lhe levanta-te e vai a Damasco. Também a nós, nas nossas quedas cegantes e desesperantes, o Senhor nos diz “levanta-te e vai”, ordem dada a tantos que se cruzaram com ele nas suas indigências e doenças, nas paralisias dos catres e na exclusão da lepra.
“Levanta-te e vai” é a ordem misericordiosa do Senhor, a palavra criadora dos homens novos gerados pelo Verbo. Como podemos ainda ficar por terra?

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Oração a Jesus

Jesus tem piedade de mim, pecador!
Jesus, consolador da minha alma!
Jesus, iluminador do meu espírito!
Jesus, alegria do meu coração!
Jesus, saúde do meu corpo!
Jesus, meu salvador, salva-me!
Jesus, minha luz, ilumina-me!
Jesus ilumina os meus sentidos obscurecidos pelas paixões!
Jesus cura o meu corpo encrostado pelo pecado!
Jesus purifica o meu espírito dos vãos pensamentos!
Jesus preserva o meu coração dos maus desejos!
Jesus, Filho de Deus, tem piedade de mim!

domingo, 23 de janeiro de 2011

Homilia do III Domingo do Tempo Comum

O Evangelho de São Mateus conta-nos que depois da prisão de João Baptista Jesus se retirou para a terra de Zabulão e Neftali, ou seja para a terra da Galileia, e foi viver para Cafarnaum.
Não nos pode parecer estranha esta mudança de Jesus, pois sabendo-se também um profeta e em oposição às autoridades instituídas não era descabido que viessem à sua procura, como virão mais tarde. E como podemos ver pelo Evangelho de São João ainda não tinha chegado a sua hora, ainda não tinha chegado a hora de Jesus se entregar às mãos daqueles que disporiam dele para o cumprimento do mistério salvador.
A escolha da Galileia e de Cafarnaum pode ser vista como o cumprimento da profecia de Isaías, o próprio evangelista faz essa leitura, mas pode também ser vista como uma opção deliberada de Jesus, uma escolha em função da liberdade e dos encontros que ali poderia viver.
Não podemos esquecer que Cafarnaum era uma cidade de encontro de culturas, uma cidade onde se cruzavam as estradas que ligavam as várias regiões do médio oriente, onde habitavam gregos e romanos, onde a possibilidade e diversidade de cultos existia. De alguma forma Cafarnaum era uma cidade de fronteira, onde as possibilidades de negócios floresciam mas onde também se difundiam as mais diversas filosofias e ideias. Neste sentido, quando pensamos na rápida difusão do cristianismo temos que ter presente esta cidade, as raízes que a presença de Jesus foi criando e possibilitaram mais tarde a pregação dos apóstolos.
A escolha de Cafarnaum com tudo o que ela representa de iluminação para os povos que viviam nas trevas, traz-nos ao nosso quotidiano e desejo de ser testemunhas e apóstolos de Jesus o desafio de sabermos quais são as nossas fronteiras actuais, onde se colocam realmente as realidades que necessitam a palavra salvadora de Jesus, esse testemunho fiel a Jesus de que fala São Paulo na Carta aos Coríntios.
E aqui, nesta realidade, e perante os desafios que se nos colocam, quaisquer que eles sejam, não podemos passar ao lado do chamamento dos primeiros discípulos, Pedro, André, Tiago e João. Temos que ter presente que Jesus os convida para ser pescadores de homens, uma tarefa ou proposta por demais estranha, inusitada, incompreensível.
E por essa razão, porque de facto não perceberam para o que o Senhor os chamava, vamos encontrar ao longo dos Evangelhos e da sua caminhada com Jesus verdadeiros acidentes de desencontro, de incompreensão.
É Pedro que chama Jesus à parte para o repreender por causa da proposta de ir para Jerusalém, é a mãe de Tiago e João que pede um lugar de governo para cada um dos filhos, é a incompreensão mesmo após os milagres da multiplicação dos pães, quando temem Jesus que caminha sobre as águas, é o abandono geral e a negação de Pedro quando Jesus já está nas mãos dos seus carrascos.
E mesmo depois da ressurreição, ainda há a necessidade de Jesus os interrogar sobre a sua fé, sobre a sua compreensão de tudo o que estavam a viver, que de facto só chegam a atingir depois da efusão do Espírito Santo no dia de Pentecostes. Caminhando com Jesus, partilhando da sua intimidade e da sua palavra eles não compreenderam nada ou quase nada.
Ainda assim, e apesar das traições e das fugas, o que sobressai desta caminhada, desta resposta ao convite de Jesus a ser pescadores de homens é a fidelidade, a permanência, apesar das dificuldades e do desconhecimento. É essa fidelidade que os vai salvar e possibilitar a experiência da ressurreição e da efusão do Espírito Santo. Porque se mantiveram fiéis, buscando no desconhecido a verdade proposta, alcançaram o prémio que lhes estava destinado.
Ora, é perante as fronteiras desafiantes do nosso tempo que a fidelidade dos discípulos nos ilumina, porque também a nós Jesus nos faz o mesmo convite e apelo desconcertante. Também hoje Jesus quer que sejamos pescadores de homens, e no desconcerto da proposta, no desconhecido, espera apenas a nossa adesão confiante e fiel. A nossa compreensão pode ficar para mais tarde, agora importa a adesão e o caminhar com ele.
Portanto, quando no nosso dia a dia nos confrontamos com as realidades e as pessoas que necessitam de uma palavra salvadora, uma palavra de vida e de esperança, um sinal profético de que outro mundo é possível se colocarmos um pouco de nós, e nos acabrunhamos por incertezas e dúvidas, nos calamos por medo de errar ou baralhar os planos de Deus, devemos mudar a nossa atitude e dar esse voto de confiança a Deus assumindo que ele sabe o que faz, sabe o que nos solicita, ainda que nós não o saibamos e nos possa parecer descabido e estapafúrdio à nossa lógica humana.
É a fidelidade de permanecer mesmo quando tudo nos parece tão estranho ou perdido, é a confiança de que ele está do nosso lado e percorre connosco os caminhos da vida para levarmos a sua palavra de amor, sem sábias estratégias ou grandes elucubrações, apenas fiados na cruz e na sua louca sabedoria, como nos diz São Paulo.
Que o Senhor nos conceda a graça se nos sabermos entregar livremente à sua vontade desconhecida, mas desvelada cada dia em cada entrega feita por amor e com amor.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Jesus escolheu doze (Mc 3,14)

A escolha do grupo dos doze Apóstolos é marcada por um conjunto de pormenores, de circunstâncias, que nos mostram que não foi uma escolha selectiva, de exclusão dos outros que não foram escolhidos.
A presença de Judas, denominado pelos evangelistas sempre como aquele que traiu Jesus, que entregou Jesus, mostra como essa ideia de selectividade por mérito, por perfeição, ou intimidade não foi a que presidiu à escolha de Jesus.
Há algo mais, algo que passa pelas circunstâncias do lugar e do modo. E se o Evangelho de São Marcos nãos nos diz que Jesus passou a noite em oração, como nos diz Lucas, diz-nos que Jesus abandonou as margens do lago, onde se encontrava, e foi para o monte, elegendo aí os doze que passariam a acompanhá-lo.
Neste lugar, neste monte, como em outros que encontramos nos Evangelhos, Jesus encaminham-nos para a relação com Deus e para essa oração que fez durante toda a noite antes de eleger os doze. É no monte que Jesus afastado das fainas da pesca e do bulício de Cafarnanum se encontra com Deus na intimidade e no projecto de cada um daqueles homens.
E depois de os chamar dá-lhes outros nomes, apelida-os de uma forma que mostra que já não são os mesmos, que houve realmente uma transformação, ainda que inconsciente em cada um deles. O nome representa a pessoa e neste caso representa também a escolha e a nova condição, bem como a missão a que são enviados.
Como tantos outros momentos da vida de Jesus, esta escolha dos Apóstolos mostra-nos como as nossas acções, os nossos projectos necessitam ser rezados, necessitam ser repassados à luz da intimidade com Deus. E ainda que depois se vejam esgotados, inviabilizados, sejam um fracasso, não terão o sabor amargo da perda e do desperdício, porque essas realidades estarão iluminadas pela vontade de Deus e transfiguradas pela sua misericórdia divina.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A Biblioteca Pessoal de Soror Isabel do Menino Jesus

Em resposta ao Edital de 10 de Julho de 1769 da Real Mesa Censória para que fossem enviadas à mesa os catálogos da bibliotecas particulares, Soror Isabel do Menino Jesus, religiosa do Mosteiro do Salvador, em Lisboa, enviou também a lista da sua biblioteca particular.
Cuidadosamente começou por fazer uma grelha onde incluiu o autor, o título, a edição, o volume, o lugar da impressão e o ano. Ficou esquecida a dimensão dos livros, facto que corrige ao longo do elenco colocando-a depois do autor e antes do título em alguns dos livros. Identificou também a biblioteca como sendo de Teologia Mística, embora possamos dizer que é mais devocionária que propriamente de teologia.
A primeira obra registada é a “Novena dos Corações de Jesus e Maria”, de António Sandes, um segundo tomo da primeira edição feita em Évora em 1738, em 24º.
A segunda obra é a “Introdução à Vida Devota” de São Francisco de Sales, um tomo da primeira edição impressa em Lisboa em 1758, em 4º.
A obra seguinte que Soror Isabel regista é de João da Silva o “Mantimento da Alma, um tomo de uma segunda edição, de 16º, impressa em Lisboa em 1753.
Segue-se depois a obra de José Bringel “Director de Almas Devotas”, um tomo da sexta edição publicada em Lisboa em 1760.
Soror Isabel regista a seguir de João Gualiset “A Devoção e Culto ao Sacrossanto Coração de Jesus”, um tomo da primeira edição feita em Lisboa em 1735.
A obra que se segue é de Luís Froes e Soror Isabel identifica-a como “Modo Eficassisimo de Orar para Conseguir a Protecção das Onze Mil Virgens”. É um tomo da primeira edição impressa em Lisboa em 1745.
A obra seguinte é a “Vida Dolorosa ou Subida ao Monte da Mirra”, da autoria de Simão Goês da Santa, de que ela possui um tomo da primeira edição feita em Lisboa em 1765.
Logo a seguir e identificado como de autor anónimo aparece a “Vida de São João Nepomuceno”, um tomo da primeira edição impressa em Lisboa em 1712.
A obra que Soror Isabel a seguir regista é “Regras de escrever certo e exemplar de Contas”, de que possui um tomo da primeira edição, em 24º, impressa em Coimbra. É da autoria de António da Silva Alvares e foi impressa no Real Colégio das Artes em 1715 com o titulo completo “Regras de escrever certo & exemplar de contas, em que se ensina com toda a clareza o método da boa ortografia e juntamente a praxe das quatro espécies de conta”.
A outra obra que Soror Isabel regista é “Raridades da natureza e Arte” da autoria de Pedro Norberto e Padilha, e de que possui um tomo da primeira edição de Lisboa de 1756, data certamente errada porque os exemplares desta obra encontrados na Biblioteca Nacional de Lisboa são de 1759, assim como o exemplar mencionado na lista de frei Domingos de São Francisco enviada também à Real Mesa Censória. O título completo da obra é “Raridades da natureza, e da arte, divididas pelos quatro elementos”, o nome completo do autor Pedro Norberto de Aucourt e Padilha e foi impressa na Oficina Patriarcal de Francisco Luís Ameno.
A penúltima obra referida por Soror Isabel do Menino Jesus é a “Grammaire Angloise Francoise”, de M. Mather Flint e editada em Paris no ano de 1756. O impressor desta gramática é Joseph Chardon e o ano da sua edição é 1755, pelo que a religiosa se enganou na datação da edição.
Encerrando o catálogo enviado à Real Mesa Censória encontramos uma obra inglesa, um devocionário, de que foram feitas várias edições, e de que Soror Isabel possui a edição de 1725, “A Manual of Prayers And other Christian Devotions”.
Pelo elenco de obras apresentado podemos inferir a devoção que Soror Isabel do Menino Jesus tinha ao Sagrado Coração, pois vários são os títulos com referência a essa devoção. Podemos também perceber a preocupação com a escrita e a leitura, quando refere obras como a de António da Silva sobre as regras de bem escrever. E surpreendentemente percebemos que as línguas estrangeiras, francês e inglês não lhe são estranhas, o que pode denunciar um tipo de cultura e formação superior ou até mesmo uma origem estrangeira. Não foram poucas as filhas de estrangeiros residentes em Portugal que foram conduzidas aos conventos e mosteiros, à semelhança do que acontecia com as filhas nacionais. A identificação secular de Soror Isabel do Menino Jesus poderá dizer-nos alguma coisa mais sobre ela e os interesses que vemos perpassados no elenco de livros que enviou à Real Mesa Censória.

Jesus na barca, longe e perto (Mc 3,7-12)

Vinham de todos os lados, da Galileia e da Judeia, de Jerusalém e da Sidónia, da Transjordânia e de Tiro, vinham para ver aquele de que tinham ouvido falar, um profeta, um mestre, um homem com um poder tal que curava os doentes e mandava nos espíritos impuros.
Tinham atravessado vales e montanhas, suportado o calor do dia e o frio das noites, tinham procurado por ele a quem lhes pudesse dar alguma indicação do seu paradeiro. Na margem do lago, lhes disseram, podeis encontrá-lo na margem do lago, junto aos barcos e aos pescadores, é por ali que anda.
E de facto ali andava, com o seu grupo de amigos e discípulos, trabalhando e descansando, sem grande aparato nem ruído, e curando aqueles que se abeiravam dele com fé e com tempo e disposição para o ouvir, para escutar a boa nova que trazia a todos os homens.
Se lhe pudesse tocar, pensava alguém vendo-o ainda de longe, talvez ficasse curado, como aquela mulher que lhe tocou apenas na orla do manto. Se lhe pudesse pedir como o leproso, “se quiseres podes curar-me”, certamente não teria uma resposta negativa. Mas é tanta gente, uma multidão imensa que mal me deixa perceber quem é esse Jesus, a quem me devo dirigir, a quem devo tocar.
Mas eis que o encontro numa barca, presente e perto, mas ao mesmo tempo ausente e longe. Teria medo das multidões, estaria cansado, ou até farto de tanta gente à sua volta, sempre a pedir, a querer tocar-lhe, a transformá-lo num ídolo, num mero curandeiro? Porque pediu ele aos discípulos que lhe preparassem uma barca para que se afastasse quando nós o queremos tão perto, lhe queremos tocar, o queremos fazer nosso?
Era necessário, de facto era necessário, não só para colocar os gestos, as curas no seu devido lugar, como manifestações do poder da sua palavra, ressalvando a importância da palavra que nos trazia, mas também para nos mostrar a necessidade da alteridade, da diferença e distância do outro, mesmo de Deus, para que haja relação.
Nenhuma relação é viável quando nos assenhoramos do outro, quando o tomamos como propriedade nossa, para nossa satisfação e usufruto, quando o queremos à medida dos nossos desejos e expectativas. O outro tem que ser outro para que possa haver relação, para que possa haver diálogo, palavra proferida e escutada.
Jesus está na barca para me possibilitar essa relação, para que eu saiba que não o posso ter à minha medida e ao meu prazer, que há uma distância necessária para que ele seja verdadeiramente ele e eu possa ser verdadeiramente eu, que nenhum de nós é senhor do outro senão na medida em que livremente nos entregamos um ao outro guardando as distâncias e as diferenças.
E ainda que na barca, distante e silencioso, aparentemente ausente, sei que ele já se entregou por mim, se entrega cada dia na Palavra e no Corpo de que me alimento na barca que é a Igreja, por amor o fez e o faz. E eu, com que amor me entrego, com que liberdade e desprendimento o busco? Como alcanço essa distância necessária mas que exige proximidade e intimidade, para que não seja desastrosamente abismo ou parede intransponível?
Jesus que a tua palavra e o exemplo da tua mãe, Maria, sejam os nossos guias nessa construção de relação e o Espírito Santo nos fortaleça na fidelidade que exige o silêncio e a alteridade.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A limpeza de sangue e o acesso a ofícios

A limpeza de sangue entende-se como mecanismo, prática, de exclusão de alguém de cargos e ofícios devido à condição de cristão-novo e à suspeição da possibilidade de sangue judeu, mouro ou gentio na ascendência familiar.
Encontra-se a utilização deste procedimento pela primeira vez nos Estatutos de Toledo de 1449, nos quais se determina o afastamento de todos os conversos, ou seja cristãos novos, dos cargos e ofícios municipais. Mais tarde este princípio foi adoptado e utilizado com o mesmo objectivo por outras instituições espanholas.
A sua aplicação em Portugal verifica-se muito mais tarde, quando os judeus e mouros já tinham sido expulsos pelo rei D. Manuel I. As primeiras manifestações encontram-se nas leis de 1497 e 1499, quando são proibidos os casamentos entre cristãos novos, visando-se desta forma o controlo social e a integração religiosa dos recém convertidos ao cristianismo.
Os estatutos de limpeza de sangue apesar da prática e difusão em diversas instituições politicas, militares e religiosas, nunca foram estabelecidos em Portugal como uma lei geral. Eram antes de mais a consequência de uma inquietação que atingia todas as camadas sociais, desde a nobreza ao povo, pois todos temiam a perturbação e a segregação que provocava a descoberta de sangue infecto, como se dizia, na família, no grupo, na corporação, na instituição.
Temos assim que ter presente que era uma prática que não visava a pureza genética, uma pureza biológica da raça, portanto um eugenismo, mas um mecanismo para tratar um problema de natureza ideológica e religiosa que tinha consequências a nível da estrutura social e da organização das instituições e poderes. “A limpeza de sangue guardava os corpos dirigentes de contaminações não desejadas e dificultava os processos de ascensão social e promoção” de outros grupos como a burguesia nascente.
Assim, encontramos em 1546 os cristãos novos a queixarem-se a D. João III da discriminação de que eram objecto nos alistamentos militares para a Índia e nas admissões aos colégios universitários. Porque de facto, é nos colégios que antes de mais se manifestou esta discriminação, nomeadamente nos Colégios de São Miguel e de Todos os Santos de Coimbra, nos quais por meados de 1540 se começou a impedir o acesso àqueles que apresentassem ascendência judia, moura ou gentia até ao quarto grau. Até meados da década de sessenta foi nos colégios maiores de Coimbra que mais se fez sentir esta prática e discriminação por limpeza de sangue, colégios pelos quais passava o futuro corpo administrativo do reino.
Em 1558 um Breve Papal proibia o acesso de cristãos novos à Ordem de São Francisco e em 1565 os monges Jerónimos incorporavam formalmente a proibição nas Actas do respectivo Capitulo. Em 1577 são os Estatutos da Misericórdia de Lisboa que os assumem depois de as Ordens Militares de Avis, Cristo e Santiago já o terem assumido em 1570 em consequência de uma Bula de Pio V que assim o determinava.
Com a unificação ibérica em 1580 este mecanismo vai estar mais presente no dia a dia dos portugueses e assim logo nas Cortes de Tomar de 1581 encontramos os procuradores dos Concelhos a solicitarem a proibição de acesso dos cristãos novos a determinados cargos e ofícios. Em 1587 D. Filipe I confirma todas as restrições de acesso a cargos e em 1595 publica instruções sobre a limpeza de sangue.
Mas para além das leis e proibições emanadas pelo rei encontramos também aquelas que chegaram de Roma como o Breve de Clemente VIII, do ano de 1600, no qual se proíbe os cristãos novos do provimento dos benefícios eclesiásticos. Em 1612 será o papa Paulo V, através de um outro Breve, que proibirá que os cristãos novos exerçam a cura de almas e sejam admitidos às ordens. Em 1637 chega também de Roma um aviso para que não sejam vendidos ofícios de legacia a cristãos novos. A compilação de todas estas leis e proibições dará origem em 1628 ao Estatuto de limpeza de sangue da diocese de Lisboa.
Este conjunto de leis e proibições conduzirá a prática da limpeza de sangue a um auge e a uma difusão sem igual no último quartel do século XVII e primeiro do século XVIII. A fundação da Confraria do Santíssimo Sacramento de Santa Engrácia em 1663, em Lisboa, é o exemplo mais significativo, pois os estatutos da confraria têm uma grande preocupação com a limpeza de sangue dos seus confrades. É também desta época, e manifestação da importância adquirida pela prática da limpeza de sangue, o rigor e a minúcia que os inquéritos realizados passaram a ter.
Podem-se apontar algumas razões para este clima e exigência de pureza, como sejam o reforço do poder por parte da nobreza aquando da chegada de D. Pedro II ao trono, as reacções ao sacrilégio cometido na igreja de Odivelas em 1671 e que ficou para a história como o “Senhor Roubado”, os boatos de perdão geral aos cristãos novos e a tensão provocada pela suspensão do Tribunal do Santo Oficio entre 1674 e 1680.
Apesar de tudo isto encontramos diversas situações em que a limpeza de sangue não foi tão levada à letra como as leis e regulamentos ditavam, as excepções, que por incrível que pareça, se apresentam, entre outros, no organismo menos suspeito que é o Tribunal do Santo Oficio, a Inquisição.
Abolida oficialmente em 1773 a limpeza de sangue continuou no entanto a estar presente na vida das pessoas, nomeadamente através de valores e comportamentos que condicionaram as relações sociais e a constituição daquela que era base da sociedade, a família.
Para aprofundar a questão a Professora Fernanda Olival tem um artigo bastante desenvolvido na Revista Cadernos de Estudos Sefarditas de 2004 e o Professor Francisco Bethencourt um texto sobre Rejeições e Polémicas no segundo Volume da História Religiosa de Portugal. A obra Poder y Movilidad Social, editada por Chacón Jiménez e Nuno Monteiro aborda também desenvolvidamente a problemática. Foram as suas leituras que fundamentaram esta síntese.

Será o sábado para a vida ou para a morte? (Mc 3,1-6)

Jesus entrou na sinagoga como habitualmente fazia aos sábados e faziam também todos os seus contemporâneos e encontrou ali um homem com uma mão atrofiada.
Sem qualquer sinal prévio, apenas expectantes por aquilo que tinham ouvido e visto, os fariseus olhavam com ansiedade os passos e gestos de Jesus, esperando que tivesse a ousadia de curar ao sábado para o poderem acusar.
Face a esta expectativa, e conhecendo os seus desejos, Jesus chama o homem com a mão atrofiada para o centro da cena, convicto do que vai fazer, do que deve fazer para mostrar àqueles homens que tinham não só o coração empedernido mas uma visão completamente distorcida da lei e do sábado.
É possível salvar e dar a vida ao sábado? Afinal é para o homem e a sua salvação que Deus criou o sábado ou pelo contrário para a sua condenação e morte, para a recusa da vida?
E eles ficaram calados porque a resposta era óbvia, era para a vida e para a salvação do homem que Deus tinha criado o sábado, mas eles tinham distorcido todo o seu sentido e portanto mais que um dia de libertação tinham-no transformado num dia de opressão e condenação.
Para eles curar ao sábado, fazer o bem e dar a vida, era um delito que merecia a pena de morte, enquanto que a morte pela violação do sábado se transformava numa obra boa e uma forma de dar glória a Deus. Estranha substituição, estranha moral que privilegia a morte, a destruição e o mal em favor da vida, do bem e da edificação do homem.
Jesus não podia pactuar com eles, com a sua hipocrisia mortífera, e por isso mesmo sabendo que a cura que iria operar lhe acarretaria a perseguição e a morte, curou a mão do homem e expôs-se à verdade do sentido do sábado e da sua pessoa divina face a esse mesmo sábado. Não só o sábado tinha sido criado para o homem como ele era o senhor do sábado, também para ele o sábado tinha sido criado.
Face a este acontecimento, com a outros da vida de Jesus, não podemos deixar de nos interrogar, de olhar para a nossa vida e atitudes quotidianas, e tomar consciência das muitas vezes que nos deixamos conduzir e governar mais por princípios de condenação e morte do que por princípios de edificação e vida; e face a eles exercitarmo-nos numa conversão mais convicta e fiel, porque o Senhor chamou-nos e chama-nos em cada dia à vida e à sua glorificação pela nossa dignidade humana.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Frei Domingos de São Francisco e a sua Biblioteca

A 10 de Julho de 1769 foi emitido um edital pela Real Mesa Censória no qual se ordenava que lhe fossem enviadas relações de todas as bibliotecas particulares que existiam no Reino. Era uma forma de controlar os livros que circulavam no país e também de averiguar a existência daqueles que estavam proibidos e de quem os possuía.
É neste contexto, e dando resposta a esta ordenação, que frei Domingos de São Francisco, residente no Convento de São Domingos de Benfica, envia o seu catálogo de livros pessoais, a seu uso e na sua posse.
Este catálogo torna-se significativo porque é o registo da biblioteca de um frade leigo, um irmão converso, portanto de alguém que não era padre nem tinha feito uma carreira académica. É também o registo da biblioteca de alguém que poucos anos antes, 1764, tinha traduzido para português e editado na Oficina de Francisco Borges de Sousa a “Regra de Santo Agostinho ou Constituições da Sagrada Ordem dos Pregadores, dirigida e ordenada para o uso dos religiosos conversos e conversas da mesma Ordem”, pelo que se compreende-se neste elenco a presença de obras como dicionários e gramáticas da língua portuguesa.
Mas para além destes livros que podemos chamar técnicos, direccionados ao trabalho realizado na tradução, encontramos também aqueles que serviam para o coro e os ofícios litúrgicos, intrínsecos à condição religiosa do possuidor, bem como os que serviriam à sua leitura espiritual. Podemos por eles esboçar um retrato de frei Domingos de São Francisco e dos seus interesses culturais e religiosos.
“Catálogo dos Livros pertencentes ao uso do Irmão frei Francisco de São Domingos da Ordem dos Pregadores, e morador no Convento de São Domingos de Benfica; os quais oferece nesta Real Mesa Censória, em observância do seu Edital.
Larraga, Francisco – Promptuário de la Theologia Moral. Tem 1, em 4º, Lisboa, 1714.
Anónimo – Diferença entre o temporal e eterno. Tem 1, sem princípio, em 4º.
Santa Maria, Frei Agostinho de – Meditações e Suspiros. Tem 1, em 8º, Lisboa, 1727.
São Francisco, Frei Domingos de – Regra de Santo Agostinho. Tem 20 da mesma matéria, em 8º, Lisboa, 1764.
São Francisco, Frei Domingos de – Regra da Venerável Ordem Terceira de Nosso Pai São Domingos. Tem 300 da mesma matéria, em 9º, Lisboa, 1764.
Leitão, Jorge Barbosa – Monte Líbano Místico. Tem 1, em 8º, Lisboa, 1737.
Costa, João António da – Finezas de Jesus Cristo. Tem 1, em 8º, Lisboa, 1762.
Cloche, Fratris Antonini – Officium Beata Maria. Tem 1, de 12º, Roma, 1715.
José, Domingos – Vozes Despertadoras. Tem 1, em 12º, Lisboa, 1765.
Marinis, Joannis Baptista de – Officium Hebdomadae Sanctae. Tem 1, de 12º.
Anónimo – Exercício Quotidiano. Tem 1, sem princípio, e sem era.
Anónimo – Oficio de Nossa Senhora. Tem 1, de 12º, em Amberes, 1725.
Anónimo – Officium Defunctorum. Tem 1, de 12º, Usyssipone, sem era.
Anónimo – Officium Beatae Mariae Virginis. Tem 1, de 12º, Ulyssipone, sem era.
Figueiredo, António Pereira de – Princípios da História Eclesiástica. Tem 1, em 8º, Lisboa, 1763.
Vieira, António – Arte de Furtar. Tem 1, em 4º, Amesterdam, 1744.
Padilha, Pedro Norberto de Aucourt e – Raridades da Natureza. Tem 1, em 4º, Lisboa, 1759.
Mendes, António Filipe – Gramática da Língua Latina. Tem 1, em 8º, Lisboa, 1759.
Chorro, Bartolomeu Rodrigues – Curiosas advertências da boa Gramática. Tem 1, em 8º, Lisboa, 1736.
Fernandes, Domingos – Arte de Figuras. Tem 1, em 8º, Lisboa, 1743.
Assensio, Francisco – Tercera Parte de la Floresta. Tem 1, em 8º, em Madrid, 1731.
Argote, Jerónimo Contador de – Regras da Língua Portuguesa. 2ª Impressão. Tem 1, em 8º, Lisboa, 1725.
Vidigueira, Manuel Mendes da – Vida e Fábulas do Insigne fabulador grego Esopo. Tem 1, em 8º, Lisboa, 1684.
Anónimo – Colloquia et Dictionariolum Octo Linguarum. Tem 1, de 12º, Amstelodami, 1631.
Assina: frei Domingos de São Francisco.”
Mais tarde poderemos comparar com outras que também foram enviadas e mostram a diferença de condição e interesses.

Santa Margarida da Hungria

A Ordem dos Pregadores celebra hoje, dia dezoito de Janeiro a memória de Santa Margarida da Hungria, que faleceu neste mesmo dia no ano de 1270. Morreu bastante jovem, com vinte e oito anos, e depois de ter vivido vinte e quatro no mosteiro. Filha do rei da Hungria Bela IV e de Maria Láscaris, filha do imperador de Constantinopla, foi entregue ao mosteiro de Vezsprem quando tinha quatro anos de idade, devido ao voto de consagração que os pais tinham feito pouco tempo antes do seu nascimento por causa das invasões tártaras.
Viveu no mosteiro de Vezsprem até à idade dos doze anos, quando se transferiu para um novo mosteiro construído para ela por seus pais na ilha que ainda hoje encontramos no Danúbio entre a cidade de Buda e Peste. As invasões turcas destruíram o mosteiro em 1526, escapando os restos mortais de Santa Margarida graças à atenção das monjas que os retiraram na fuga e os depositaram no mosteiro das Clarissas de Bratislava.
Hoje e graças à arqueologia é possível ver o que resta do mosteiro construído pelo rei Bela para sua filha, na chamada ilha Margarida de Budapeste, e venerar algumas das suas relíquias na igreja do convento dos dominicanos de Budapeste.
Margarida viveu uma vida de grande austeridade, não só antes de fazer a profissão religiosa nas mãos do Mestre da Ordem Humberto de Romans, mas também depois, seguindo o modelo que era comum na época de grandes jejuns, bastantes disciplinas, uma grande austeridade e pobreza, que em muitos casos conduziu a mortes precoces como a dela.
Contribuiu também para a sua morte a luta sangrenta entre o seu pai Bela e o filho herdeiro do trono, irmão de Margarida, Estêvão, que depois veio a governar como Estêvão V. Critérios diversos e aspirações ao poder, com intervenção de facções oportunistas, conduziram a uma guerra sangrenta entre pai e filho e as forças vivas do país. Margarida tudo sofreu no silêncio do claustro e na oração oferecendo-se a Deus como tributo pela justiça e pela paz da família e do seu povo.
Grande devota da paixão e da cruz de Jesus, percebe-se no entanto a influência da espiritualidade oriental quando nos é contado que uma das suas orações predilectas era a da invocação do nome de Jesus, oração tão querida e fundamental para os cristãos do oriente.
Ao recordarmos a sua memória pedimos a Deus que também a nós nos ajude a ser construtores de paz e de justiça entre aqueles que vivem à nossa volta, alimentando a nossa fé e a nossa esperança na contemplação desse mesmo nome que é o do Rei da Paz, Jesus Cristo.
O painel de azulejos barrocos que ilustra esta memória encontra-se numa das paredes exteriores da capela da Granja do Marquês em Sintra, actual Base Aérea Nº1. Pelo tamanho, local em que foi colocado e outros painéis semelhantes que também ali se encontram, não podemos duvidar que foram transferidos para ali de algum convento dominicano desmantelado após a exclaustração de 1834. Arrisco-me a apontar o convento de Santa Joana de Lisboa, embora me faltem neste momentos provas para fundamentar e confirmar esta hipótese.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Santo Antão no Caminho de Santiago

Celebramos hoje a memória de Santo Antão Abade, conhecido como o pai do monaquismo, o que nos dá oportunidade para falar dele e de um hospital com a sua invocação que se encontra no Caminho de Santiago.
Filho de uma família cristã, conta-nos Santo Atanásio na Vida que escreveu dele, que após a morte dos pais e escutando na igreja as palavras “se queres ser perfeito vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres”, se separou de todo o seu património para se dedicar a uma vida de maior perfeição e pobreza no seguimento de Jesus Cristo.
Num desejo de maior solidão e ascese, das que tinha no espaço urbano em que vivia, entranha-se no deserto do Egipto para viver de forma mais radical essa dedicação total a Deus. É aí que dá origem ao que hoje chamamos de monaquismo, agregando a si outros homens e mulheres, que passaram a viver em comunidade, partilhando a experiência de Deus e a austeridade de vida.
Desta sua experiência e vida chegaram até nós um conjunto de referências, que podemos encontrar nos chamados “Apotegmas dos Padres do Deserto”, uma colecção de ditos, provérbios, anedotas edificantes que ajudaram a construir e a desenvolver o que posteriormente se constituiu como vida monástica.
No século XI, mais precisamente em 1095, no Delfinado francês vai surgir uma Ordem religiosa que o vai assumir como patrono. Serão conhecidos por Antonianos e desenvolverão todo um ministério de acolhimento e tratamento daqueles que eram portadores de uma doença comum na época e conhecida por mal de Santo Antão, uma doença que hoje sabemos é provocada pela ingestão de pão de centeio infectado por um vírus. A Ordem chegou a ter perto de quatrocentos hospitais por toda a Europa.
Face ao movimento humano provocado pela peregrinação a Santiago de Compostela não é de estranhar que encontremos esta Ordem religiosa e hospitais seus no Caminho de Santiago. É pouco antes de Castrojeriz, cerca de quatro quilómetros, que encontramos um desses hospitais, e surpreende-nos pelo inusitado, pela beleza e também pelo estado de ruína em que o encontramos.
Partimos da pequena aldeia de Hontanas e depois de termos caminhado alguns quilómetros por pequenos caminhos rurais, nas faldas dos montes, onde encontramos outras ruínas, descemos até ao amplo vale e entramos numa estreita estrada asfaltada, para ao virar da curva nos depararmos com uns arcos góticos, soberbos, sobre a estrada em que caminhamos.
Nada nos fazia adivinhar aquela beleza e grandiosidade, escondida ali no fundo do vale, entre as árvores junto ao pequeno rio, e que obrigatoriamente temos que atravessar porque era e é por ali mesmo, sob aqueles arcos em flecha que transcorre o Caminho para Santiago. A estrada de alcatrão cobriu as lajes de pedra que certamente marcariam o espaço daquele magnifico pórtico.
Paramos, pois é necessário parar para apreciar as janelas e rosáceas esventradas de vitrais e onde o tau, símbolo da Ordem, se entrelaça em rendilhado, as paredes elevadas em pedra clara, a abside da igreja onde despontam os pináculos e cresce a hera. É um belo edifício do século XIV, que mostra a patine dos séculos e a incúria dos homens, que testemunha a caridade e o acolhimento que houve no Caminho de Santiago.
Diante dos nossos olhos, ao nosso nível, o pórtico esculpido de pequenas imagens de santos e anjos que o tempo poliu e desfez, recordando-nos aqueles que já caminharam e hoje nos convidam a elevar os olhos para o alto. Os tijolos na porta vedam-nos o acesso ao interior, ao que seria a nave da igreja do hospital, preservando-a assim no nosso imaginário medieval. Nos pilares dos arcos, frente à porta, dois nichos, onde segundo reza a tradição os monges deixavam comida e água para os peregrinos que chegavam de noite e encontravam a porta da igreja já fechada.
Há nestas pedras e neste edifício algo de mágico, dessa magia do amor feito serviço e acolhimento e por isso o contemplamos, testemunha muda, ou nem tanto, de um homem que deixou tudo para fazer no deserto a experiência do encontro de Deus no silêncio e no serviço dos irmãos, Santo Antão ou António Abade.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Homilia do II Domingo do Tempo Comum

O Evangelho que escutamos neste segundo domingo do Tempo Comum tem um sabor a “dejà vu”, a uma repetição do que escutámos o domingo passado quando celebrámos a solenidade do Baptismo de Jesus. Também aí escutávamos que Jesus tinha vindo ter com João para ser baptizado por ele.
Há no entanto uma diferença, quase imperceptível, que nos pode passar ao lado pela monotonia da repetição, mas que faz com que tenhamos necessidade de voltar ao baptismo de Jesus para o olharmos por outro prisma, para afinal o compreendermos um pouco melhor na sua dimensão. É uma diferença que apenas encontramos no Evangelho de São João, no Evangelho daquele que também foi discípulo de João Baptista, tendo portanto um conjunto de informações que são únicas, e que depois manteve uma relação muito especial com Jesus.
Lendo o texto com um pouco de atenção e comparando-o com os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, deparamos com a afirmação, por duas vezes, por parte de João Baptista, do desconhecimento de Jesus, “eu não o conhecia”. Ora esta afirmação torna-se por demais estranha quando temos presente que eram primos, quando aceitamos que também Jesus foi por algum tempo discípulo ou companheiro de João, quando olhamos para a pregação de João e escutamos dizer-lhe que não é digno de desatar as sandálias, que é ele que necessita ser baptizado, que depois dele vem alguém que baptiza no fogo, que aquele Jesus que vem ao seu encontro é “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Perante tudo isto, como é possível que João possa dizer que não conhecia Jesus?
Mas a verdade é que assim era e a confirmação desse desconhecimento encontramo-la quando João, já na prisão, manda alguns dos seus discípulos perguntar a Jesus se era ele verdadeiramente o Messias. João vive um dilema, vive no fio da navalha, na fronteira entre a profecia e a realidade, entre o que o Espírito lhe transmite, lhe faz intuir, e a realidade que se lhe apresenta totalmente estranha e desenquadrada dos parâmetros da expectativa. Poderíamos dizer que João é um desenraizado, um eterno errante sem abrigo no passado e no futuro, preso a uma tradição profética passada e a um Messias futuro que se tocam ao mesmo tempo que se distanciam. Neste sentido, João pode e deve mesmo dizer que não conhecia Jesus, apesar de intuir a sua pessoal missão precursora e a missão messiânica de Jesus, tanto uma como outra inusitadas, mas ambas necessárias e verdadeiras.
Contudo, a história de João e a sua situação de desconhecimento não é única, pois encontramos no Evangelho de São João várias passagens e acontecimentos onde a questão do conhecimento e desconhecimento é relevante. Assim quando Jesus se confronta com os doutores da lei, com Nicodemos quando o vem visitar de noite, a pergunta que paira no ar é se eles não deviam saber aquelas coisas, se eles não o deviam conhecer ou reconhecer. No encontro com a samaritana junto ao poço é também Jesus que lhe diz “se tu soubesses quem é aquele que te pede de beber”, afirmando desta forma o desconhecimento de que ela é portadora. E na oração nas vésperas da sua paixão, Jesus dirige ao Pai um pedido para que os discípulos o conheçam e o dêem a conhecer, como eles se conhecem.
Assim, quando insistimos na leitura da narração do baptismo de Jesus é para percebermos o quanto significa de processo, de caminho, de descoberta, para Jesus, para João Baptista e para nós mesmos. Porque é no baptismo de penitência de João que Jesus é revelado como o Filho muito amado do Pai, que de alguma maneira se discerne a missão de Jesus, testada nas tentações do deserto, se anuncia a Páscoa com que culminará a vida humana de Jesus. Nas margens do Jordão Jesus assume-se e reconhece-se como verdadeiramente é, Filho de Deus e Filho do Homem.
É também no baptismo de Jesus que João discerne o cumprimento da sua missão, como ela está a chegar ao fim e portanto é necessário que ele diminua para que o outro cresça e desenvolva a dele. O baptismo de Jesus com a descida do Espírito, de que João é testemunha, é também um passo mais na consciência e no conhecimento da sua missão profética, inspirada na palavra dos profetas e da tradição, mas relida e refeita à luz das novas necessidades e urgências do movimento de revelação de Deus e salvação da humanidade.
No baptismo celebrado no Jordão deparamos assim com um processo de revelação, de conhecimento, de tomada de consciência das limitações da realidade de cada um e dos desafios a que Deus convoca, processo que se repete no baptismo de cada um de nós e na fidelidade com que procuramos vivê-lo.
Porque também nós dizemos que não conhecíamos Jesus, que de alguma forma ainda não o conhecemos, porque quando ele vem ao nosso encontro, como foi ao encontro de João, as nossas expectativas, as nossas imagens, os nossos preconceitos não nos deixam vê-lo como ele verdadeiramente é. Vivemos também no fio da navalha como João, na fronteira entre o que desejamos, construímos, imaginamos de Deus, do Messias, de Jesus, e o inusitado que ele é, o extravagante, o desconcertante, o incomensurável e indizível que se nos revela.
Necessitamos por isso de nos processar, de nos abeirarmos não já do Jordão mas da fonte da água da vida, com humildade, abertamente, reconhecendo que não sabemos nada de Deus e somos muito pouco dignos de saber, mas ainda assim desejamos que o Espírito de Deus cresça em nós para que possamos dizer que já não somos nós que vivemos mas é Cristo que vive em nós.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Frei Henrique de São José e Frei Manuel de Santa Rosa

Uma vez mais trazemos ao conhecimento geral nomes de frades dominicanos do século XVIII e suas datas de profissão ou tomada de hábito religioso.
No caso presente são dois irmãos, frei Henrique de São José e frei Manuel de Santa Rosa, naturais de Paço de Sousa, e que tomaram o hábito de Irmãos Conversos no Convento de São Domingos de Lisboa com uma diferença de pouco mais de quatro anos.
Como frei Manuel de Santa Rosa fez Profissão Religiosa em Lisboa podemos apresentar também o seu registo. Relativamente a frei Henrique, o irmão mais novo, e não existindo registo no Livro de Profissões de São Domingos de Lisboa, podemos supor que a fez em outro convento da Província ou deixou a Ordem entretanto.

1734.Fevereiro.10
Inicio do Noviciado de frei Manuel
Aos 10 dias do mês de Fevereiro de 1734 pelas onze horas da manhã, pouco mais ou menos, declarou o Padre Subprior frei Simão de Távora por ordem que disse ter do Muito Reverendo Padre Prior e Vigário Geral frei José de Sousa por Noviço ao irmão frei Manuel de Santa Rosa filho legitimo de Luís de Bessa e de Barbara Silveira, naturais de Paço de Sousa, Bispado do Porto, e principiou o seu ano a 10 do dito mês de Fevereiro de 1734.
Frei Luís Ferraz
Mestre de Noviços

1735.Fevereiro.11
Profissão religiosa de irmão Converso de frei Manuel
Aos onze dias do mês de Fevereiro de 1735 depois da missa conventual professou o irmão converso frei Manuel de Santa Rosa filho legítimo de Luís de Bessa e de Barbara Silveira naturais de Paço de Sousa bispado do Porto. Sendo prior o padre frei Manuel da Anunciação, e Provincial o Muito Reverendo Padre Presentado frei José de Sousa e Mestre de noviços o Padre frei António de Santa Ana, ao qual irmão foi dito que pela profissão que fazia se obrigava à observância da Regra e Constituições da nossa Ordem como estão escritas, e que se em algum tempo se achasse nele alguma raça de judeu, mulato ou moiro ficaria nula a profissão o que ele ratificou em fé de que assinamos aqui dia, mês, e ano ut supra.
Frei António de Santa Ana, Mestre de Noviços
Frei Manuel de Santa Rosa

1738.Novembro.10
Inicio do Noviciado de frei Henrique
Aos dez de Novembro de 1738 depois de matinas declarou o Muito Reverendo Padre Presentado frei Francisco de Santa Rosa Tinoco Prior deste convento de São Domingos de Lisboa por noviço ao irmão converso frei Henrique de São José natural de Paço de Sousa bispado do Porto filho legítimo de Luís de Bessa e de sua mulher Barbara Silveira por lhe ter dispensado o Nosso Padre Reverendíssimo o tempo que lhe faltava de donato e assim principia neste dia o seu ano de aprovação, em fé de que fiz este termo que assinei dia mês e ano ut supra. São Domingos de Lisboa
Frei Caetano do Rosário
Mestre de Noviços

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O poder da palavra de Jesus (Mc 2,10)

Depois de algum tempo de ausência Jesus volta a Cafarnaum e logo que se divulga que está de regresso uma multidão vem ter com ele. Os mais atrasados, carregados com um paralítico num catre, têm que subir ao terraço para fazerem descer o homem até Jesus.
É a oportunidade para mais uma cura face à fé daqueles homens e daquele paralítico que se sujeita de alguma forma ao vexame de ser descido por cordas diante de toda a multidão aglomerada para ouvir e ver Jesus.
Contudo, a cura física que Jesus vai operar é precedida de uma cura espiritual, pois antes de mandar levantar o paralítico Jesus diz-lhe que os seus pecados estão perdoados, o que inevitavelmente provoca o escândalo e a discussão. O milagre operado é neste sentido como que uma redundância, desnecessário talvez, uma manifestação exterior de algo que é interior e muito mais poderoso, a palavra e a sua força operativa.
Portanto, quando Jesus manda levantar o paralítico e levar a sua enxerga para casa está a manifestar exteriormente o poder que antes tinha exercido e tinha provocado suspeição e discussão.
Esta desconfiança é provocada porque os que assistem se esquecem que o pecado é quebra de relação, quebra da relação com Deus, e portanto só a palavra, o diálogo pode restabelecer essa quebra, retomar as pontas e uni-las. Jesus, perante aquele homem, assume a condição divina de quem foi excluído, com quem foi quebrada a relação, e retoma-a, como a retoma com todos os homens, manifestando a sua palavra, dialogando.
Esta realidade tem consequências que se manifestam no sacramento da penitência, de que hoje andamos tão frequentemente arredados. Preferimos confessar-nos directamente a Deus. Mas a verdade é que a nossa confissão directa a Deus impossibilita e inviabiliza o poder operativo da palavra de Deus. Não há quem profira a palavra “os teus pecados estão perdoados”, não há diálogo, e ao não haver palavra e diálogo a mesma operatividade da palavra do perdão deixa de existir.
É verdade que é difícil, nos custa, e muitas vezes nos sentimos envergonhados pelo mal que cometemos, mas se não tivermos a ousadia de passar o vexame que passou o paralítico descido pelo telhado, não poderemos beneficiar nem usufruir da palavra de Jesus e do seu poder alterante, transformador, milagroso na nossa vida, “filho os teus pecados estão perdoados”.
Quando temerosamente nos abeiramos da confissão devíamos ter sempre presente o tratamento que precede o perdão dado por Jesus, “filho”. Afinal, Deus quer-nos filhos e filhos com vida e filhos dialogantes.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Jesus já não podia entrar abertamente (Mc 1,45)

Uma vez mais a Liturgia da Palavra apresenta-nos no Evangelho de São Marcos o encontro de Jesus com o leproso. Um encontro surpreendente em termos de aceitação, de partilha por parte Jesus da realidade daquele que está doente, que é excluído e recorre ao Mestre para ser curado. Jesus escuta o desejo do leproso e responde-lhe positivamente, pois é da sua vontade salvar aquele que lhe pede.
Há no entanto neste episódio, e nesta dimensão da escuta do pedido formulado pelo outro, uma diferença abissal, pois se Jesus escuta o pedido do leproso, se partilha da sua necessidade, já o mesmo não acontece da parte do leproso, que não escuta verdadeiramente o que Jesus lhe pede.
Após a cura Jesus pede ao leproso que não conte nada a ninguém, mas que se vá apresentar aos sacerdotes para que certificassem a sua cura, ou seja, para ser reintegrado por aqueles mesmos que por causa da lei excluíam. Digamos que era uma formalidade técnica o que Jesus pedia àquele homem.
Não sabemos se o leproso cumpriu essa formalidade, sabemos no entanto que ele não se calou, que não cumpriu a recomendação de Jesus de não falar da cura a ninguém, o que inevitavelmente tem consequências e mormente para Jesus.
Ao falar da cura aos outros, o leproso impede Jesus de falar, silencia-o na sua missão de anunciador do reino, de pregador, porque a partir daquela cura, como de outras que Jesus realizará, as pessoas procurá-lo-ão mais pelo extraordinário, pela sua dimensão taumatúrgica do que pelo que ele verdadeiramente é, a Palavra de Deus encarnada. A palavra do leproso silencia assim a palavra de Jesus.
Mas para além deste silêncio, o leproso passa a ocupar também o centro, a atenção, retirando assim a Jesus a centralidade que lhe era devida, a importância da sua pessoa e missão.
É por causa disto que o evangelista nos diz que Jesus deixou de poder entrar nas cidades e teve que passar a viver no campo. A exclusão do leproso foi afinal transferida para ele pela surdez às suas recomendações, a habitabilidade da Palavra entre os homens foi assim dificultada, impedida, e as populações tiveram que passar a procurar Jesus onde ele se encontrava.
Face a este acontecimento e ao desastre que de alguma forma significa devemos perguntar-nos sobre a nossa escuta da palavra de Jesus, das suas recomendações, e de como somos veículos dessa mesma palavra ou pelo contrário obstáculos e fontes de atrito.
Que o Senhor nos cure a cegueira e a surdez às suas palavras e mandamentos, nos desperte ao acolhimento obediente, participativo, para podermos ser verdadeiramente testemunhas dele e da sua missão salvadora.