quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A Inquisição e frei Valentim da Assunção

O ano de 1619 ficará para a história portuguesa como o ano da visita do rei D. Filipe II a Portugal. Depois de muitas promessas e consecutivos adiamentos finalmente o rei vem ver o seu outro país.
Contudo, e para além deste facto e muitos outros de igual modo significativamente importantes, o ano de 1619 ficará marcado também para D. Filipe II por um facto muito menos importante, um incidente burocrático e financeiro no qual intervém um frade dominicano, e por essa razão bastante significativo para nós.
No ano de 1618 a Inquisição esteve muito activa na cidade do Porto. Da correspondência do rei D. Filipe II para o Inquisidor Geral D. Fernando Martins Mascarenhas, Bispo do Algarve, percebe-se que havia grandes interesses em jogo, interesses económicos, e foi nestes interesses que se intrometeu um frade dominicano, frei Valentim da Assunção.
No final de 1618 a Inquisição prende, entre outros, o licenciado Tomé Vaz e o doutor Lopo Dias, cristãos-novos com um bom poder económico e financeiro na cidade do Porto. Numa carta datada de 21 de Dezembro D. Filipe manda que se faça o inventário e arrematação dos bens dos detidos, com excepção das casas de Tomé Vaz e Lopo Dias que pelo seu valor, e por os presos terem com que se alimentar, só deveriam ser arrematadas depois da condenação.
No início de 1619 e numa outra carta ao Inquisidor Geral, datada de 29 de Janeiro, percebe-se que afinal as coisas não tinham corrido como planeado, que havia alguém que tinha interferido no processo de arrecadação de bens ordenado pelo rei no final de 1618.
Anexada à carta dirigida ao Inquisidor Geral vem a cópia de uma outra carta que o rei recebeu em Madrid e que tinha sido enviada pelo desembargador Cid de Almeida, corregedor do crime na Relação do Porto. Nela, Cid de Almeida queixa-se ao rei que não tinham encontrado dinheiro nenhum em Tomé Vaz aquando da sua prisão, ainda que constasse que era senhor de entre quinze a vinte mil cruzados. Soma avultada para desaparecer sem deixar rasto.
O que de facto não aconteceu, pois Cid de Almeida sabe que o licenciado Tomé Vaz entregou esse dinheiro ao padre frei Valentim da Assunção, frade professo da Religião de São Domingos, morador no convento do Porto, que imediatamente embarcou para a cidade de Lisboa, de onde passou ao Convento da Serra que se encontra junto da Vila de Alcáçovas. Tudo isto o desembargador sabe por alguém que tem conhecimento e viu o buraco que o frade tinha deixado na cela conventual depois de ter fugido com o dinheiro para Lisboa.
Perante tudo isto, e quantia tão avultada para um rei carenciado de dinheiro, D. Filipe II ordena ao Inquisidor Geral que dentro dos “estilos”, das competências, do Santo Oficio proceda contra frei Valentim da Assunção, de modo a ser reposto o dinheiro e a ser punido pela ousadia cometida.
Do livro 88 do Conselho Geral do Santo Ofício e da correspondência nele transcrita não se percebe qual foram os resultados destas ordenações reais e das diligências do Inquisidor Geral. Não sabemos neste momento, pode ser que venhamos a descobrir em breve, se frei Valentim da Assunção foi detido e se a Inquisição conseguiu recuperar o dinheiro do licenciado Tomé Vaz.
Ainda assim, este incidente e a demais correspondência transcrita nesse livro do Conselho Geral do Santo Oficio, tem o mérito de nos mostrar que os dominicanos não estiveram somente do lado daqueles que condenavam e que a Inquisição em muitas circunstâncias funcionou muitas vezes mais por interesses económicos e políticos que verdadeiramente por questões de ortodoxia religiosa.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Devoção das Quinze Terças-Feiras

5ª TERÇA-FEIRA – QUINTO GOZO – AGRADECIMENTO SANTO
Saudação
Deus vos salve honra da Igreja, Domingos piedosíssimo. Deus vos salve protector de todos os que a vós recorrem. Deus vos salve, celeste habitante, socorrei-me com vossos rogos.
Meditação
Considera como nosso Pai São Domingos recebendo da Divina piedade a coroa da sua bem-aventurança, se emprega cheio de gozo em louvar, agradecer, e adorar com humildes afectos a Divina misericórdia, que o coroa.
Bem sabe que as suas obras desta vida mortal, se bem foram santíssimas, não são condignas da glória altíssima, que ele possui; pelo que o espírito do agradecimento o transforma todo nos louvores da Divina piedade, para cantar, não os seus merecimentos, mas à misericórdia de Deus cânticos dulcíssimos de Sião.
Solilóquio
Ò Vida da minha vida, ò misericórdia da minha salvação, ò Jesus meu, dilatai o meu coração a imitar o agradecimento do nosso Pai São Domingos. Oh se eu pudesse convocar todos os corações humanos aos vossos louvores por quantas vezes me tendes livrado de mil desgostos, de mil perigos, de grandíssimas enfermidades, e da morte! Miserável de mim! Eu não cuidava em vós, e vós me guardáveis; eu não vos temia, e vós me amáveis. Tenho vivido de modo, que me podíeis ter precipitado nas chamas; mas ainda me sustentais sobre a terra. Seja bendita a vossa grande misericórdia, que tolerou minhas maldades por esperar-me a penitência.
Súplica
Dulcíssimo Jesus meu, não seja mais verdade, que o meu nome esteja escrito no livro dos ingratos. A ingratidão é um vento quente, que seca as fontes da vossa piedade, e um fogo infernal, que atormenta os anjos rebeldes, e as almas ingratas. Livrai-me deste vício tenebroso, e dai-me um coração agradecido, como foi o de nosso Patriarca, para que de dia, e de noite não cesse de render-vos graças; porque quando eu pequei a vossa misericórdia preveniu a justiça, que queria naquele acto reduzir-me a cinzas. Misericordiae Domini, quia non sumus consumpti.

Pai-Nosso, Dez Avé Marias, Glória ao Pai, Salvé Rainha e o Responsório de São Domingos como na primeira Terça-feira.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Mártires Dominicanos do Japão

A Ordem de São Domingos celebra hoje a memória de 16 mártires dominicanos, religiosos e leigos que entre 1633 e 1637 morreram no Japão vitimas das perseguições aos cristãos. São eles:
Domingos Ibañez de Erquicia, natural de Régil em Espanha, onde professa na Ordem dominicana. Perfilhado à Província do Rosário parte para as missões no extremo oriente. Professor no Colégio de São Tomás de Manila é enviado em 1623 para o Japão para as missões. Sacerdote, trabalha clandestinamente junto da comunidades cristãs até que um apóstata o denúncia. É um dos líderes da missão dominicana no Japão. Morre em 1633 com apenas 44 anos. Hoje é possível conhecer algo da sua missão pela correspondência que enviou do Japão e que se conservou até aos nossos dias.
Tiago Kyushei Tomonaga de Santa Maria, natural do Japão, era também sacerdote e foi supliciado no mesmo ano de 1633. Filho de uma família nobre japonesa estudou com os jesuítas em Nagasaki, tendo sido por isso expulso do Japão em 1614, quando era ainda um simples catequista. Em Manila prossegue os estudos e é ordenado sacerdote. Em 1632 regressa à sua pátria para ajudar os irmãos cristãos que estavam a ser alvo de perseguições ferozes. É preso, torturado e morto por ser religioso e propagar a fé evangélica.
Lucas Alonso do Espírito Santo, natural de Carracedo em Espanha, professa na Província de Espanha. Mais tarde, em 1617 passa para a Província do Rosário e para as missões. Professor também no Colégio de São Tomás de Manila viaja para o Japão em 1623 onde vive clandestinamente durante dez anos. Preso em Osaka foi torturado e martirizado em Nagasaki em 1633.
Jacinto Jordão Ansalone, sacerdote dominicano italiano que ingressa também na Província do Rosário para ir para as missões. Depois de um intenso apostolado junto dos mais pobres e enfermos na Filipinas vai para o Japão onde é morto em 1634, com apenas 36 anos de idade.
Tomás Hioji Nishi de São Jacinto, era japonês e sacerdote. Filho de pais cristãos martirizados em Hirado. Foi discípulo dos jesuítas e teve que abandonar o país em 1614 devido às perseguições. Estuda no Colégio de São Tomás de Manila e depois é enviado à missão de Taiwan de onde passa para a sua pátria. É morto também em 1634.
António Gonzalez, sacerdote espanhol, natural de León. Passa a Manila em 1631 onde é professor e reitor do Colégio de São Tomás. Em 1636 conduz o grupo de missionários ao Japão, grupo que foi preso assim que pôs os pés em terra. Depois de um ano de privações e prisão morre em 1637.
Guilherme Courtet, natural de França e de origem nobre, ingressa na Província reformada de São Luís e daí passa à Província do Rosário, chegando em 1634 às Filipinas. É morto também em 1637, expressando nos momentos de tortura uma devoção filial à Virgem do Rosário.
Miguel de Aozaraza, natural de Espanha, mais precisamente do País Basco, passa da Província de Espanha para a Província do Rosário para poder ir às missões do Oriente. Sacerdote, morre no Japão em 1637.
Vicente Schiwozuka é natural do Japão e filho também de uma família cristã. Educado inicialmente pelos jesuítas é expulso do Japão em 1614. Ordenado sacerdote em Manila desenvolve o seu apostolado com os exilados japoneses antes de regressar à sua terra natal em 1636. Antes de embarcar tomar o hábito dominicano. Morre em 1637 depois de um ano de prisão e torturas.
Francisco Shoyemon, natural do Japão era irmão cooperador e companheiro de apostolado do Padre Domingos de Erquicia. Detido em 1633, toma o hábito dominicano já na prisão, onde acompanha o seu pai espiritual e companheiro, vindo a morrer juntamente com ele 1633.
Mateus Kohioye do Santíssimo Rosário, irmão cooperador natural do Japão, mais precisamente de Arima. Era catequista e cooperador do Padre Lucas Alonso, com quem inicia clandestinamente o noviciado. Preso em Osaka, recusa todas as ofertas de dinheiro para renegar a fé, permanecendo fiel a Cristo até à morte em 1633 com apenas 18 anos.
Madalena de Nagasaki, era natural do Japão e filha de pais cristãos já martirizados. Depois de ter acompanhado os missionários agostinhos entrega-se ao cuidado dos dominicanos, muito particularmente do Padre Ansalone. Leiga terceira dominicana é morta em 1634 depois de cruelmente torturada.
Marina de Omura era também leiga dominicana e natural do Japão. De grande auxílio para os missionários dominicanos foi morta na fogueira em 1634 depois de ter sido submetida a grandes humilhações.
Miguel Kurobioye, também natural do Japão é catequista e cooperador local com os missionários. Preso pelas autoridades japonesas denúncia o local de esconderijo do Padre Santa Maria, que por esta razão é preso. Arrependido do cometido confessa a fé católica e acompanha o mesmo padre Santa Maria no martírio.
Lázaro de Kyoto é morto também em 1637. Leigo catequista e cooperador local com os missionários, acompanha o Padre Gonzalez como guia e interprete. Leproso foi deportado para as Filipinas juntamente com outros leprosos ajudados pelos cristãos.
Lourenço Ruiz de Manila, leigo, natural de Manila nas Filipas e portanto o primeiro mártir da Igreja Filipina, acompanha a expedição missionária de 1636 para fugir à pena de um crime de sangue cometido. Pai de três filhos no Japão dá a vida pela confissão de Jesus Cristo como único Senhor e Salvador.

domingo, 27 de setembro de 2009

Homilia Domingo XXVI do Tempo Comum

Não podemos dissociar a leitura do Evangelho de São Marcos deste domingo dos Evangelhos dos domingos anteriores. Temos que os ter presentes para compreender cabalmente o que está em jogo.
Sabemos que Jesus enviou os seus discípulos a pregar a Boa Nova do Reino às povoações vizinhas. Sabemos que eles voltaram muito satisfeitos, porque tinham operado muitas curas e muita gente os tinha escutado. Contudo, tinha havido alguns demónios que não tinham sido capazes de expulsar.
Regressados desta primeira pregação, se assim se pode chamar, e face aos êxitos alcançados, os discípulos discutem o lugar de cada um no futuro governo sonhado de Jesus em Jerusalém. Com tais resultados como era possível não sonhar com tal governo, com tal futuro tão promissor? É neste contexto que Jesus lhes mostra através da criança escravo o sentido do verdadeiro serviço e poder no seu reino.
Hoje e tendo ainda presente este regresso da missão, João, o mais novo dos apóstolos e o mais impetuoso, por isso também chamado filho do trovão, queixa-se a Jesus relativamente a alguém que expulsava os demónios em seu nome, mas que não era do grupo dos discípulos.
Estamos perante, pelo acento colocado no facto de não ser dos nossos, uma cena de ciúmes, de uma certa inveja, se assim podemos dizer, semelhante à relatada na leitura do Livro dos “Números” em que Josué pede a Moisés que proíba Medad e Eldad de profetizar. É algo natural a um grupo que se considera privilegiado, único, que considera que qualquer outro que faça o semelhante ao que o grupo tem poder para fazer é considerado um perigo, uma ameaça, algo a abater ou eliminar.
Estamos numa e noutra situação perante o tema da exclusividade, do considerar-se único senhor e detentor de um poder ou de uma autoridade. Estamos também perante a concepção de uma realidade que apenas se restringe ao institucional, em que não há espaço nem hipótese para uma existência fora dos quadros instituídos.
Perante esta situação, e uma vez mais com muito carinho e cuidado, Jesus alerta os discípulos para a necessidade de abertura às realidades que estão fora do nosso quadro conceptual, assemelhando-se desta forma à posição tomada por Moisés face à súplica de Josué. Quem dera que todo o povo fosse profeta! Quem dera que todos vós fosseis capazes de expulsar demónios, diria Jesus aos seus discípulos.
Para Jesus e para o projecto de salvação de Deus não existe exclusividade, não existe unicidade, porque de facto na casa do Pai há muitas moradas, há muitas vias de acesso e de revelação. E perante isto os crentes, os discípulos de Jesus não se podem fechar ao outro, à novidade do outro, bem pelo contrário devem estar abertos, porque o outro não estando contra está a favor e qualquer acção de bem, de justiça, de verdade e amor é sempre uma acção querida por Deus, com o sinal de Deus. Por esta razão qualquer um que oferecer um copo de água aos discípulos de Jesus terá a sua recompensa. Qualquer acção em benefício dos discípulos de Jesus corresponderá a uma acção em favor do projecto salvador de Deus e portanto não deixará de ser recompensado. Isto é importante e não pode deixar de ser tido em conta por cada um de nós quando julga a acção do outro, a acção de muitos outros homens e mulheres que muitas vezes nem sequer partilham a nossa fé ou as nossas convicções. O projecto salvador de Deus e a sua Palavra encarnada, Jesus Cristo, é uma realidade dinâmica e englobante, não é sectarista nem marginalizadora.
Os ensinamentos de Jesus prosseguem neste momento e passagem do Evangelho através de uma radicalização das suas palavras, das acções a realizar para não sermos conduzidos à perdição eterna. São palavras radicais e que nos podem chocar pois conduzem à mutilação que não é algo propriamente agradável. Contudo, face a elas temos que ter presente que são uma forma metafórica de expressão natural à língua semítica e que de forma alguma podem ser levadas à letra. O importante destas propostas de Jesus está de facto no elemento que as precede, nesse princípio de não podermos escandalizar nenhum dos mais pequenos do Reino de Deus.
Jesus faz aqui referência, e traz novamente à presença dos discípulos, a criança escravo que tinha acolhido e colocado no meio deles como símbolo do poder e serviço a que eram chamados. Era de facto alguém sem poder nenhum, sem direito nenhum, e a esses é que não se pode escandalizar, por causa desses é que se deve cortar um pé, uma mão ou tirar um olho.
Metáforas para apresentar a necessidade que cada um de nós tem de se libertar de alguma coisa para de facto entrar no Reino de Deus, para ser sinal da sua presença, para realizar verdadeiramente o serviço a que Jesus chama os seus discípulos. Nestes elementos físicos estão englobados os nossos orgulhos, as nossas faltas de solidariedade, as nossas vaidades e desejos de poder, os nossos defeitos mais recônditos que necessitam verdadeiramente de ser podados como a videira para que possamos dar verdadeiro fruto e fruto em abundância.
Peçamos assim ao Senhor que nos conceda a graça de sabermos quais são as coisas de que nos devemos libertar, que estão a mais na nossa vida, e que de facto nos impedem de ser testemunho verdadeiro para os mais simples e de realizar totalmente a missão a que nos chama neste nosso mundo.

domingo, 20 de setembro de 2009

Homilia Domingo XXV do Tempo Comum

As leituras deste domingo colocam-nos perante uma realidade inquestionável da vida humana, da nossa condição de homens e mulheres. Somos movidos em muitos dos nossos actos por um desejo violento de poder que habita em nós, desejo esse que como escutávamos na leitura do Livro da Sabedoria leva mesmo à maquinação do extermínio do outro.
E muitas vezes, e na história da humanidade, este extermínio é concebido apenas porque o outro tem uma forma diferente de estar na vida, de ver as coisas, de se comprometer diferentemente com as realidades humanas e divinas. A diferença atenta ao nosso desejo de poder, porque a diferença se subtrai aos valores e padrões pelos quais nos regemos e queremos reger os outros.
São as paixões de que nos fala também São Tiago na sua Carta, essas paixões que muitas vezes entram em conflito no nosso próprio ser e por isso nos fazem ser ainda mais violentos, porque insatisfeitos connosco próprios e com as nossas limitações e finitudes.
Estes desejos e paixões estão patentes de forma diversificada no relato do Evangelho de São Marcos que acabámos de escutar.
A violência e o extermínio do outro, pela sua diferença, estão patentes no anúncio que Jesus faz da sua morte. Pela sua forma de vida, pela sua mensagem, pela sua missão messiânica Jesus entra em conflito com as autoridades instituídas que se sentem censuradas pela verdade que anuncia. Não é esse o seu objectivo, nem o seu desejo, mas a própria realidade da verdade da sua diferença provocam e geram esse conflito, essa oposição, e esse desejo violento do seu extermínio e aniquilação.
Jesus tem consciência desta sua situação e por isso prepara os discípulos para o fim que o espera e os espera também a eles, pois também eles mais tarde terão que passar pelo mesmo caminho, também eles serão alvo de desejos violentos de morte pelo simples facto de o terem conhecido, o terem aceite e darem testemunho da sua verdade.
Contudo, estes discípulos que necessitam ser ensinados sobre o fim trágico, sobre uma realidade violenta que é cada vez mais patente, estão preocupados com outra realidade, com o seu desejo de satisfação de poder. Quando tudo indica que as coisas não vão bem, que não se avizinham tempos fáceis, eles continuam centrados no seu desejo de poder e nos lugares de chefia que cada um vai ocupar quando Jesus chegar a Jerusalém e instaurar o governo pelo qual eles tanto anseiam.
O desejo de poder, a vaidades e as suas paixões levam-nos a discutir que lugar ocuparão contradizendo assim tudo o que tinham aprendido até aí do Mestre, contradizendo tudo o que já lhes tinha sido anunciado sobre a real e verdadeira missão daquele que seguiam.
É assim, que Jesus se senta diante deles e lhes volta a recordar através da presença de uma criança qual a sua missão e qual o desejo que deviam procurar satisfazer. É interessante notar que a palavra que traduzimos por criança é a mesma que se utilizava para identificar um jovem escravo. Neste sentido, e à luz desta referência, a apresentação da criança escravo mostra de uma maneira mais intensa e profunda qual a verdadeira missão e a dimensão do poder que se pode alcançar com Jesus.
Como cristãos não podemos estar na vida como senhores, satisfazendo os nossos desejos de poder, que por inerente insatisfação total levam à violência, ao ódio e à morte do outro. Na mensagem de Jesus e à luz das palavras do Evangelho de São Marcos que escutámos hoje temos que estar como crianças, como crianças escravos, que não possuem qualquer poder nem aspiram a ele, porque de facto estão no fim de qualquer hierarquia, de qualquer cadeia de poder, conscientes de que nada lhes vale o desejo de poder.
Mas não aspirar a qualquer poder não é uma solução totalmente viável, porque de facto esse desejo habita em nós e não podemos escamotear a sua realidade e presença efectiva e operante. Assim, temos que procurar que esse desejo se vá transformando, se vá convertendo, de modo a deixar de ser uma pulsão violenta e homicida para se transformar numa pulsão pacífica e geradora de vida.
Para tal, e sabendo que não temos forças suficientes em nós próprios, temos que pedir a ajuda de Deus, como nos recomenda São Tiago temos que pedir, e pedir bem. Temos que pedir que o Senhor nos conceda a sabedoria do alto, uma sabedoria que é pura, pacífica, compreensiva e generosa, cheia de misericórdia e boas obras.
Temos que pedir, e acolher, o próprio Jesus, porque Ele é a verdadeira sabedoria do alto, sabedoria que se aproximou de nós pela encarnação na Virgem Maria, para que não nos ficasse distante a possibilidade de a alcançar. Ora, isto significa apenas que a sabedoria e a forma de vencermos o nosso desejo de poder se encontra em Jesus, nesse Jesus que sendo todo-poderoso se colocou no meio dos homens como um escravo, uma criança escrava para os salvar.
Neste caminho da conversão do nosso desejo violento de poder não nos resta outra alternativa senão assemelharmo-nos cada vez mais a Jesus de Nazaré, pobre e humilde, dando a vida pelos outros, sabendo e confiando que, como nos diz Isaías, Deus o protegeu e nos protegerá a nós também, porque somos filhos de Deus, nós e Ele.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

São João Macias, Memória

Governando quase metade do mundo Filipe II de Espanha, no dia 2 de Março de 1585, nascia em Ribera del Fresno, perto de Badajoz, João Macias, baptizado na igreja do povo nesse mesmo dia do seu nascimento.
Não tem ainda cinco anos quando perde o pai e pouco tempo depois a mãe, ficando órfão com uma irmã mais pequena que ele. Serão os seus padrinhos de baptismo que cuidarão dele e o ajudarão a crescer.
A vida na Estremadura espanhola não era fácil e João não nasceu numa família abastada, pelo que desde muito jovem se viu entregue da responsabilidade de conduzir os rebanhos pelos campos e velar para que os animais voltassem seguros a casa. Era uma vida dura, mas ao mesmo tempo uma vida de solidão que lhe permitia o silêncio propício à contemplação de Deus na natureza.
Já perto do final da vida confidenciará a frei Gonçalo Garcia, seu confessor, que foi nesta idade e quando guardava os rebanhos do seu amo, que se encontrou com um menino da sua idade e que se dizia São João Evangelista. A aparição tinha como objectivo mostrar-lhe a protecção divina mas também a revelação do que seria a sua vida e a missão a que Deus o chamava.
Depois de crescer e se formar como homem a guardar os rebanhos na solidão do campo estremenho, com vinte anos de idade, João deixa a sua terra natal para partir à conquista de novas oportunidades. Durante catorze anos e até embarcar em Sevilha rumo ao novo mundo das Américas, João vagueia e trabalha pela Andaluzia, conhecendo em Jerez de la Frontera o convento de São Domingos e os padres que nele vivem.
Já em Lima, no Peru, em 1620, será à porta do convento de São Domingos que irá bater no momento de necessidade. As referências de Jerez seriam certamente um bom cartão de visitas e uma boa recomendação para qualquer ajuda. Recebe-o frei Martinho, o porteiro mestiço que vai dando já que falar por causa do seu comportamento extravagante de caridade. Entre os dois nascerá uma amizade fortíssima e um sentimento de partilha do mesmo caminho de santidade.
Martinho de Porres encaminha-o para a Recoleta de Santa Maria Madalena, uma recente fundação na cidade, e na qual depois de um processo de discernimento da vontade de Deus e dos homens, porque eles também têm uma palavra a dizer, João Macias é recebido a 23 de Janeiro de 1622 como irmão converso. Pela falta de instrução nas letras ficará na portaria, servindo os irmãos e a missão da Ordem, através do acolhimento de todos os que baterem à porta.
Mas a vida de João Macias não se reduz a um carácter prático, laboral, pela experiência vivida no campo ele sabe que necessita do silêncio e da solidão e por isso a cada oportunidade se refugia no claustro dos “naranjos” para se dedicar à oração e contemplação. Modelo para todos nós que buscamos o equilíbrio entre o trabalho e a contemplação, é necessário dar tempo a uma realidade e a outra, equilibrá-las como os pratos de uma balança.
É deste silêncio e desta intimidade com Deus que João Macias vai retirar as forças para ajudar todos aqueles que recorrem às portas de um convento num momento de necessidade. À semelhança do que acontece com frei Martinho de Porres, os pobres procuram João Macias para que os possa ajudar, para que lhes possa dar alguma coisa para comer ou vestir. Deus nunca permitirá que João deixe partir alguém sem a ajuda que procurava. E mesmo quando não o procuravam era ele que ia ao seu encontro, ao encontro das suas necessidades.
Ao final da tarde do dia 17 de Setembro de 1645, depois de uma vida dedicada ao silêncio, à oração e à caridade para com todos, frei João Macias entregava a sua alma ao criador. Na sua cela os irmãos vestidos de hábito branco e capa negra cantavam a Salvé Rainha e enquanto se ouvia o verso “Advogada nossa esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”, João Macias expirava confiante dessa misericórdia de Deus que havia pedido no momento da sua profissão e tinha procurado viver através da caridade e solidariedade para com todos.
Celebramos hoje a sua Memória, uma memória que por vezes se nos faz distante pois sobre a sua vida passaram já mais de trezentos e cinquenta anos. Contudo e num momento em que procuramos encontrar o equilíbrio entre o activismo das nossas realidades sociais e profissionais e a necessidade da contemplação do mistério de Deus, São João Macias pode ajudar-nos mostrando-nos como em qualquer lugar e em qualquer homem se pode encontrar o silêncio e a presença de Deus, só necessitamos estarmos disponíveis, ser como porteiros que acolhem quem bate à porta.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Profissão Perpétua António Pedro

Se ontem dia 13 de Setembro celebrámos comunitariamente no Convento de São Domingos a Profissão Solene do frei Gonçalo Diniz, na véspera tive a oportunidade de participar na celebração da Profissão Perpétua do António Pedro Monteiro.
É mais um jovem, outro jovem, que se comprometeu com o seguimento evangélico de Jesus Cristo, embora desta feita tenha sido com os Sacerdotes do Coração de Jesus, também conhecidos como Dehonianos.
Como dizia Jesus aos seus discípulos na casa do Pai há muitas moradas; na Igreja há uma diversidade suficiente de Institutos Religiosos para que ninguém tenha desculpa de não ter encontrado o seu lugar propício ao serviço do Senhor. Como amigo e conhecendo alguns passos que conduziram a este compromisso foi com alegria que participei nesta consagração do António Pedro. Seguir Jesus implica sempre acolher a sua cruz e levá-la, e se o fazemos é porque acreditamos e sabemos que Jesus a leva connosco para que não nos esmague.

Profissão Solene de frei Gonçalo Diniz

Vivemos hoje na vida religiosa, e na nossa vida dominicana, um tempo de secura vocacional. Depois dos anos das vacas gordas, em que os noviciados e estudantados estavam cheios de jovens e expectantes de esperanças, vivemos o tempo das vacas magras, no qual o silêncio dos corredores denúncia a falta de jovens, e jovens vocacionados para uma vida consagrada ao Senhor.
É assim com imensa alegria e esperança que vemos a Profissão Solene de um dos nossos irmãos, do frei Gonçalo Diniz. Com a sua profissão enriquece-se a Ordem dos Pregadores, a Província de Portugal e neste momento o Convento de São Domingos de Lisboa. É mais um irmão comprometido até à morte com o projecto de São Domingos, bem como com a realidade humana e histórica que vivemos, que não é simples nem fácil.
A Profissão Solene do frei Gonçalo, celebrada ontem dia 13 de Setembro na igreja do Convento de São Domingos, diante da comunidade, da família e dos amigos, é um sinal de que Deus continua a chamar, de que há quem ainda escute o seu chamamento e à luz da experiência vivida, com defeitos e virtudes, se decide a comprometer a sua vida com o ideal de São Domingos.

Homilia Domingo XXIV do Tempo Comum

Acabámos de escutar no Evangelho, que numa caminhada entre um lugar e outro, Jesus interrogou os seus discípulos sobre o que os homens diziam dele, ou mais precisamente quem diziam que ele era. Depois de eles lhe dizerem o que comentavam, quem diziam que era, Jesus interrogou-os directamente a eles, seus discípulos, envolvendo-os num compromisso nessa mesma resposta, no que dissessem dele.
Pedro tomou a palavra e assumiu a resposta que todos de alguma forma poderiam dar, tu és o Messias, ainda que para cada um deles ser o Messias pudesse significar realidades bastante distintas umas das outras, até contrárias à realidade que estava diante dos olhos deles.
Numa outra passagem paralela, e depois de Pedro dar esta resposta, Jesus diz-lhe que não foi a carne nem o sangue que lhe permitiu dar a resposta, mas o conhecimento dado pelo Espírito Santo. De facto não é a carne nem o sangue, a experiência humana na sua historicidade, que permite dizer que Jesus é o Messias.
Hoje a mesma pergunta de Jesus continua a soar aos nossos ouvidos e somos compelidos pelos nossos companheiros a dar uma resposta. Afinal que é Jesus para nós, o que dizemos dele?
Para dar uma resposta minimamente correcta, dentro da verdade do mistério de Jesus Cristo, temos que ter em conta três realidades que nos aparecem na leitura que escutámos do Profeta Isaías.
A primeira dessas realidades é a da escuta, porque como nos diz o profeta Deus abre-nos os ouvidos. No Evangelho Jesus depois de afirmação de fé de Pedro abriu-lhes também os ouvidos quando os começou a ensinar sobre a verdadeira dimensão da sua missão como Messias.
Afirmar Jesus como o Messias exige assim uma capacidade de escuta, de estar de ouvidos bem atentos àquilo que o Senhor nos diz. Em primeiro lugar na Sagrada Escritura, na sua Palavra revelada, mas depois também nas palavras dos homens e do mundo através das quais Deus continua a revelar-se e a dar-nos a conhecer o que espera de nós. Afirmar a fé em Jesus como Messias exige assim a nossa capacidade de escuta e a nossa disponibilidade para tal. Não podemos dizer Deus sem o escutarmos primeiro.
Outra realidade que não podemos olvidar, e que também nos é apresentada pelo profeta Isaías, é a realidade do sofrimento físico e moral. Qualquer homem ou mulher terá que em qualquer momento fazer essa experiência do sofrimento, descobrindo quer as suas limitações físicas quer até as suas limitações morais e éticas. É algo que é intrínseco à condição humana e por isso Jesus o assumiu de uma forma tão total, expondo-se à crítica e escárnio dos outros, ao sofrimento da paixão e à própria morte.
Mas se o fez e o pôde fazer na sua totalidade é por outra razão que nos é apresentada também pelo profeta Isaías. Jesus confiava em Deus, sabia que estava ao seu lado e não o abandonaria, e por essa razão pôde tornar o seu rosto duro como pedra e suportar no seu corpo todos os sofrimentos que lhe foram infligidos e na sua alma todos os abandonos de amigos e conhecidos.
Para nós, para cada um de nós, esta fé e confiança não podem estar esquecidas nem de forma nenhuma deficitárias, porque sem elas não poderemos dizer aos homens nossos contemporâneos e companheiros de caminhada que Jesus é o Messias. Temos que assumir a condição da nossa finitude e limitações e juntamente com a fé e a esperança poderemos dar testemunho de Jesus Cristo.
Um testemunho que não pode ficar reduzido à palavra, às boas intenções ou formulações de propósitos. A nossa fé em Jesus como Messias exige essas palavras e boas intenções, mas exige também uma realização prática, as obras de que nos fala São Tiago na sua carta.
E aqui temos também o exemplo de Jesus que juntamente com os seus ensinamentos operava os milagres e as curas, mostrando que a palavra sem sinais concretos de realidade é muito menos eficaz. Dar testemunho de Jesus hoje não pode ser de outra forma, não se pode prescindir das obras e muito menos da palavra. Umas e outra clarificarão reciprocamente a suas existências e exigências.
Peçamos assim ao Senhor que nos abra os ouvidos cada dia para escutarmos a sua Palavra e compreendermos o que nos quer dizer; que nos ilumine com essa Palavra a nossa condição de pecadores e sofredores; e confiantes no seu amor e na sua presença ao nosso lado nunca deixemos de deitar a mão às necessidades e sofrimentos dos irmãos, realizando aqui e agora o projecto de salvação.

domingo, 6 de setembro de 2009

Homilia Domingo XXIII do Tempo Comum

Quando dentro de momentos procedermos ao baptizado do Rafael concluiremos a celebração do sacramento com o rito do “Effheta”, uma invocação da graça de Deus para que dentro de pouco o Rafael possa não só ouvir a Palavra de Deus mas também testemunhá-la com a sua própria palavra.
É um rito do sacramento do baptismo que radica, na sua origem última, no trecho do Evangelho de São Marcos que acabámos de escutar, neste milagre da cura do surdo-mudo. Um milagre e um relato extremamente simples, mas ainda assim carregados de força simbólica e elaboração redacional, que não podemos deixar de elucidar.
Antes de mais e porque nos pode passar despercebido temos que ter presente o lugar geográfico em que se realizar esta cura. O evangelista diz-nos que ela aconteceu no território da Decápole, ou seja, na zona geográfica que qualquer judeu ortodoxo consideraria excluída da salvação divina. Era a região da inculturação greco-romana, onde os homens e as mulheres adoravam outros deuses, viviam de acordo com outros valores, em que as normas éticas eram outras completamente diferentes. O Deus de Israel não podia estar naquela terra de estrangeiros nem ter compaixão por aqueles homens e mulheres.
Mas para São Marcos é exactamente aí que Jesus vai realizar esta cura, vai fazer este milagre, mostrando assim que também os estrangeiros, aqueles que os herdeiros da antiga Aliança consideravam excluídos eram objecto da acção salvadora de Deus. Mostrando também que afinal Jesus não tinha vindo só para os seus mas para todos os povos que se dispusessem a acolhê-lo.
Para nós cristãos este aspecto do relato é importante, porque nos pode ajudar a ver que Deus vem ao nosso encontro mesmo nos nossos territórios mais paganizados, onde muitas vezes falta a presença salvadora de Deus. Vem ao nosso encontro naqueles aspectos da nossa vida onde muitas vezes não esperamos Deus, nos quais nem sequer suspeitamos que Deus pode passar e Ele passa para nos dar a oportunidade de o acolhermos.
Acentuando e sublinhando esta presença insuspeita temos aquele que é trazido a Jesus para ser curado, o surdo-mudo. A sua deficiência é por natureza marginalizadora, uma vez que não pode comunicar, mas no contexto da fé judaica e da revelação é uma deficiência ainda mais marginalizadora, excludente, na medida em que o surdo-mudo não pode ouvir a Palavra de Deus nem a pode proclamar. De certa forma aquele surdo-mudo é como se estivesse morto para a revelação, pois não podia conhecer a Palavra de Deus nem a podia transmitir a outrem. O surdo-mudo representa assim, como estrangeiros e estranhos ao povo judeu, a nossa condenação à morte no âmbito da antiga aliança do povo de Israel.
Contudo, é a esse morto para a Palavra que Jesus aceita não só impor as mãos como lhe é pedido, mas curá-lo definitivamente da sua doença, integrando-o para sempre no meio do povo e na história da salvação de que estava excluído pela sua condição de surdez e mudez. O Filho de Deus vem para resgatar os homens desta condição de morte, vem para nos restituir à vida.
E fá-lo com este surdo-mudo e com cada um de nós da mesma forma como se encontra explicitado neste relato do Evangelho de São Marcos. Primeiro retirando-nos da multidão, de modo a estabelecer uma intimidade connosco e depois recriando-nos com um gesto semelhante àquele que foi utilizado no momento da criação do primeiro homem.
Podemos imaginar a colocação das mãos de Jesus na cabeça do surdo-mudo, envolvendo-a como o oleiro que envolve o pedaço de barro para lhe dar a forma desejada, humedecendo-o com a sua saliva para que o esforço de moldagem não seja tão violento. Estamos perante um acto de criação e inevitavelmente somos reconduzidos ao momento primeiro da criação quando Deus formou o homem do pó da terra e lhe insuflou o seu espírito através do sopro da vida.
Jesus opera com esta cura do surdo-mudo uma nova criação, a mesma criação que dentro de momentos vais operar com o Rafael no baptismo. E nesse momento como naquele a força para a realização virá do alto, para onde Jesus elevou os olhos e para onde nós elevaremos as nossas preces. Quem opera em Jesus e quem opera no baptismo é o Espírito Santo, é o amor de Deus, que como nos diz Isaías vem sempre ao nosso encontro para nos curar e libertar, para nos dar uma vida nova desde que nos disponhamos a acolhê-lo.
Desta criação e vida nova resultam duas consequências que não podemos esquecer, e que nos são apresentadas pela leitura do profeta Isaías e da Carta de São Tiago. Antes de mais e à luz do que nos diz Isaías não podemos ser homens e mulheres temerosos, falhos de coragem e santa ousadia. Bem pelo contrário, porque sabemos e acreditamos que Deus veio ao nosso encontro, vem ao nosso encontro e virá sempre ao nosso encontro, estejamos nós dispostos a recebê-lo, devemos ser homens de esperança e confiança. Como dizia Santa Teresa, quem a Deus tem nada lhe falta, nada o pode perturbar.
A segunda consequência a retirar desta criação e à luz da Carta de São Tiago, é que não podemos nem devemos fazer acepção de pessoas, ainda que na nossa vida muitas vezes o façamos. O outro é sempre uma obra de Deus, seja ela mais perfeita ou menos perfeita, mais agradável ou menos agradável. Deus está presente e em muitos casos quase a pedir-nos que nos aventuremos nesse território estrangeiro e inóspito que é o outro com todos os seus defeitos e virtudes, para o encontrarmos a Ele.
Peçamos assim ao Senhor que nos visite nos nossos desertos e regiões barbarizadas e ao franquearmos as regiões dos outros nos dê a coragem para nos aventurarmos nelas sem medos nem preconceitos.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Santa Beatriz da Silva, Memória

A Igreja celebra hoje a Memória de Santa Beatriz da Silva, uma santa portuguesa fundadora de uma nova Ordem Religiosa, das Concepcionistas Franciscanas.
Segundo o historiador franciscano Frei Henrique Gutierréz, Beatriz da Silva nasceu em 1424 em Ceuta. Era filha de Rui Gomes da Silva, cavaleiro destacado na conquista de Ceuta, e de D. Isabel de Meneses, filha de um outro conquistador D. Pedro de Meneses, que foi também depois o primeiro governador da praça e cidade.
Pela sua família materna era uma jovem da nobreza portuguesa relacionada com a família real e por essa razão em 1447, com vinte e três anos de idade, acompanhou a infanta D. Isabel, filha do príncipe D. João e neta de D. João I, na sua viagem para Castela, onde a infanta tinha casado com o rei D. João II de Castela.
A extraordinária beleza de Beatriz levou a que a rainha se enchesse de ciúmes e cometesse a violência de encerrar a dama de companhia num baú durante três dias sem comida nem bebida na esperança de a sufocar e matar. Foi neste suplício que Beatriz teve a primeira visão da Virgem Maria, que lhe prometeu a salvação de tal estado se lhe prometesse a fundação de uma Ordem religiosa dedicada à Puríssima Conceição. Nesta aparição a Virgem Maria aparece-lhe com um hábito branco e um manto azul, que Beatriz mais tarde adoptará para hábito das suas religiosas.
Livre do cativeiro, Beatriz da Silva solicita autorização junto dos reis para abandonar Tordesilhas, onde a Corte se encontrava sediada, e professar num convento de Toledo.
Ingressou em Toledo no Convento de São Domingos o Real, onde viveu perto de trinta anos sem professar definitivamente a regra dominicana.
E se tal não aconteceu, e adoptou para a sua Ordem a regra franciscana, foi certamente pela grande questão que no momento dividia os dominicanos e franciscanos sobre o dogma da Imaculada Conceição. Os filhos de São Domingos não eram adeptos desta concepção da virgindade mariana, ao contrário dos frades menores que defendiam o dogma da Imaculada Conceição. Nesta passagem de Ordens não esqueceu no entanto o hábito branco dominicano, ainda que a tradição o remeta para a visão tida aquando do encarceramento no baú por parte da rainha. O branco é inevitavelmente sinal da pureza.
Em 30 de Abril de 1489, com a ajuda de Isabel a Católica, filha daquela que a tinha tentado matar, obtém do Papa Inocêncio VIII a aprovação da sua Ordem. Morreu pouco tempo depois da aprovação da sua Ordem, a 9 de Agosto de 1492, em Toledo.
O quadro anexo mostra um grupo de cinco religiosas concepcionistas do século XVII, cinco irmãs de sangue, Soror Catarina, Soror Inês Baptista, Soror Clara, Soror Isabel e Soror Francisca, filhas de um “Platero de Madrid”, que professaram no Convento de Santa Úrsula de Alcalá de Henares de Madrid. Foi pintado por Juan Carreño de Miranda, que a partir de 1671 se converteu no pintor de câmara do rei Carlos II de Espanha.