domingo, 4 de setembro de 2016

Homilia do XXIII Domingo do Tempo Comum

Aos poucos vamos retomando as nossas actividades, vamos deixando o tempo de descanso das férias e voltamos ao nosso ritmo habitual de todo o ano. Neste período de transição é bom que façamos uma breve pausa, que nos sentemos um pouco, e que perspectivemos aquilo que queremos que seja este ano de actividade, mais uma etapa de caminhada como homens e mulheres, que aspiram à sua realização profissional entre outras, mas também e sobretudo como filhos de Deus que não devem deixar de procurar viver fielmente essa sua condição essencial.
As leituras que escutámos nesta celebração dominical podem e devem ajudar-nos nesse perspectivar, pois colocam diante de cada um de nós uma convocatória, um desafio, que não podemos descurar, não procurar levar por diante, pois está nele contido uma parte significativa da nossa realização humana e cristã. Olhemos pois com um pouco de atenção para o que nos revela e solicita as leituras deste domingo.
Em primeiro lugar deparamo-nos com a atitude de Jesus, o seu caminhar à frente da multidão em direcção a Jerusalém. No entanto Jesus volta-se para trás, para essa multidão de seguidores, quando necessita interpelá-la, quando necessita dirigir-se-lhe. Acontece assim em todos os diálogos, em todos os momentos desta subida para Jerusalém e em cada encontro pessoal. Jesus olha-nos face a face, olhos nos olhos e provoca-nos com a sua palavra.
Esta certeza deve estar presente e orientar-nos, pois também a nós, a cada um de nós, Jesus se dirige pessoalmente, olhos nos olhos, para nos convidar a segui-lo, a não ter medo, a não desistir apesar das nossas fraquezas, das nossas infidelidades. Ele vai à nossa frente e nós seguimo-lo; contudo, para não nos perdermos ele frequentemente volta a face e olha-nos com ternura. Na nossa história pessoal já certamente experimentámos o apelo carinhoso de Jesus a continuar com ele o caminho iniciado.
Continuar com Jesus, tal como nos diz o Evangelho, exige uma preferência absoluta. São palavras radicais as que hoje Jesus nos dirige, quando nos diz que o devemos preferir a todos aqueles que partilham a nossa vida, que fazem parte da nossa história humana mais básica como é a da família. Não é uma tarefa fácil aquela que Jesus nos pede, e por isso não podemos deixar-nos cair no snobismo ou na relativização das nossas relações, que são uma resposta possível, mas indecente e indigna face à exigência de Jesus.
A preferência absoluta por Jesus conduz-nos a uma conversão da absolutização das nossas relações e amores, pois o que amamos deixa de estar na órbita das nossas preferências e satisfações pessoais e passa a estar na órbita do amor de Deus, da pessoa de Jesus presente em cada uma delas. É a partir do amor de Jesus que amamos os nossos irmãos, que construímos as nossas relações, mesmo as mais preciosas como a matrimonial ou a filial. O esposo ou a esposa que partilham o amor conjugal, os filhos que são fruto do amor conjugal, são amados em Jesus e por Jesus, na sequência e consequência desse apelo escutado e assumido de ir com Jesus.
Esta conversão, ou redimensionamento dos nossos amores, conduz-nos a viver de forma mais clara, divinamente iluminada, o apelo desafiante de Jesus a carregar com a nossa cruz. Afinal de contas, já não se trata apenas de suportar as contrariedades, as limitações e fraquezas dos outros, pois essa realidade desafiante até se vai vivendo humanamente, com altos e baixos, com mais ou menos paciência. Carregar a cruz, com o nosso amor redimensionado em Jesus Cristo, significa carregar a salvação do mundo, a salvação das almas, significa assumir que em cada gesto de carinho, em cada atitude de paciência, queremos participar da redenção operada por Jesus na sua paixão e morte na cruz, somos participantes activos desse mistério de salvação.
Desta forma é fácil perceber, não só o amor que os santos tinham à cruz, mas como se sentiam unidos à cruz de Jesus, como viviam cada momento, cada desafio relacional ou histórico, como se esse momento ou desafio fosse a sua própria paixão, como se da resposta positiva a amorosa deles dependesse a salvação do mundo. Afinal, viviam e convidam-nos a viver as palavras de São Paulo, “também eu estou pregado na cruz com Jesus Cristo”.
Centrados no amor de Jesus e com os olhos do coração iluminados pela dimensão divina da cruz que carregamos, podemos viver a renúncia aos bens que nos é necessária para ser discípulos de verdade. É à luz do amor divino e da consciência divina dos nossos gestos, palavras e atitudes, que somos capazes de nos desprender, de possuir como se não possuíssemos, pois os bens e até as pessoas estão apenas ao nosso cuidado, “ad usum frater” como antigamente se colocava nos objectos dos irmãos que partilhavam a vida conventual.
E neste sentido a leitura que escutámos da Carta de São Paulo a Filémon é paradigmática. Se não tivéssemos mais nada para apresentar como modelo do viver cristão, do seguir Jesus carregando a cruz com amor e liberalidade, tínhamos a história de Paulo com Onésimo e Filémon. Um homem necessitado de ajuda por se encontrar preso, por amor a Jesus envia aquele que o podia ajudar e ser companheiro na prisão ao seu antigo senhor, e pede-lhe que o acolha já não como um escravo mas como um irmão.
A centralidade de Cristo na vida de Paulo leva-o a acolher Onésimo, a estabelecer com ele uma relação de filiação, e depois a desprender-se dele, para que possa fazer crescer na caridade e no amor aquele que era o seu antigo dono, Filémon. Paulo assume a cruz da vida e da morte, do acolhimento e do desprendimento, da necessidade de semear para que no coração de outro possa nascer e frutificar o amor. Em tudo Paulo vive a dimensão da sua fé total em Cristo, que uma vez se encontrou com ele também cara a cara a caminho de Damasco.
É esta atitude de Paulo, esta exigência para connosco próprios e a liberalidade para com os outros que somos chamados a viver, esta atitude de em tudo procurar ver a mão de Deus, de em tudo viver no amor de Deus, que não deixa de cumular de bens todos aqueles que tudo lhe confiam. Ao retomarmos as nossas actividades que este espirito impregne os nossos projectos, os nossos sonhos; que saibamos viver na luz da sabedoria que pede ao Senhor a sua graça, a confirmação da obra realizada, porque ainda que nos sejam desconhecidos os desígnios do Senhor, conhecemos já a sua bondade e como ela nos sacia de alegria e paz.

 
Ilustração:
1 – “Para onde vais Senhor?”, pintura de Andrey Mironov.
2 – “São Paulo na prisão”, Rembrandt.

1 comentário:

  1. Precisamos acolher esse "olhos nos olhos" que Jesus nos dirige para sermos capazes de encontrar o caminho, de ter sem possuir,de dar com generosidade de amar à imagem de Jesus. E de acolher a cruz de cada dia.
    Será que somos capazes?!... Inter pars

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