domingo, 17 de setembro de 2017

Homilia do XXIV Domingo do Tempo Comum - Ano A

O Evangelho de São Mateus que escutámos neste domingo apresenta-nos a magnanimidade do perdão, poderíamos dizer a sua dimensão de mistério; que humanamente nos ultrapassa, mas que na fé nos salva e nos edifica como homens e mulheres de verdade.
Nos nossos círculos de relações, nas nossas conversas, é frequente confrontarmo-nos com a acusação de que a Igreja não deixa de falar do pecado, que carregamos os outros com a culpabilização dos erros cometidos, dos pecados. Poderíamos dizer que somos acusados de um certo sadismo, de um gosto de ver os outros culpados.
Contudo, esses mesmos que acusam a Igreja da exploração do pecado são os primeiros a exigir uma nova lei de Talião, a expressar a exigência de olho por olho e dente por dente, a assumir o dogma da nossa sociedade ocidental e capitalista de que tudo tem que se pagar, tudo deve ser pago. Alguém que cometeu uma falta deve pagar por ela.
O Evangelho de Jesus Cristo opõe-se determinantemente a esta concepção, podemos dizer que inverte os polos, e assim o pecado passa para um segundo plano porque o verdadeiramente fundamental é o perdão, é a grandeza do perdão que Deus nos concede e somos convocados a viver uns com os outros.
A parábola do rei que vem ajustar contas, e que Jesus apresenta a Pedro para ilustrar a necessidade de não se ficar num perdão limitado, confinado a uma determinação, mostra-nos a mudança operada, a disparidade de realidades.
Quando o rei se apresenta para cobrar as suas dívidas estamos ao nível da justiça, estamos ainda sob o regime da lei, e portanto se há alguma dívida é justo, é de lei, que seja remida. E é perante esta lei, esta justiça, que é aceitável que o servo tenha que perder tudo para pagar a sua dívida, como a mulher e os filhos.
Esta violência, este exagero da usurpação do que é mais querido e fundamental como a família para ser vendido, tem na parábola o efeito de ajudar a tomar consciência da dimensão da dívida e das suas consequências. O pecado pode de facto levar-nos a perder tudo, até o que nos é mais querido e fundamental como a família.
O pedido aflito do servo, consciente da dimensão e gravidade da sua dívida, leva à mudança de atitude do senhor e rei, que se enche de compaixão e piedade, sentimentos que não são já da ordem da justiça, mas do amor e da dignidade do próprio senhor e rei. É a sua dignidade, a sua magnanimidade que lhe permitem esta mudança de registro. O direito da equivalência é substituído pela gratuidade, pela liberalidade.
A cena seguinte da parábola mostra-nos no entanto que o servo liberto e perdoado não percebeu nada do que lhe tinha sucedido, pois ao espancar e condenar à prisão o seu companheiro e igual ignora a sabedoria e grandeza daquele que lhe tinha dado tanto, ignora e esquece a compaixão de que tinha sido objecto. Ao exigir o pagamento do seu companheiro, o servo perdoado permaneceu no jugo da lei, permaneceu preso à sua dívida, não assumiu a liberdade alcançada.
Por esta razão se torna extremamente importante para nós a repreensão do rei quando o servo devedor volta à sua presença. Antes de mais pela chamada de atenção pela falta de sensibilidade para com o outro, e depois pela falta de semelhança da atitude do seu senhor. Aquele a quem tinha sido perdoada toda a dívida não tinha sido capaz de ser como o senhor, de o imitar nos seus gestos e magnanimidade.
Este “ser como” que o senhor refere é bastante significativo na parábola, pois exige uma semelhança, um acolhimento, um assumir de que o perdão só nos alcança na medida em que o realizamos com os outros, em que somos capazes de perdoar os outros. Como nos questionava a leitura do Livro de Ben-Sirá, como podemos pedir perdão a Deus se somos incapazes de perdoar os nossos semelhantes? Como podemos pedir a Deus a cura e guardamos rancor do nosso semelhante?
O perdão é uma realidade divina, Deus perdoou-nos antes de nós o merecermos, como nos diz São Paulo, e portanto mais não podemos fazer que perdoar os nossos irmãos. Poderíamos dizer que o perdão é como um rio, um fluxo que parte de Deus, mas só nos irriga e ilumina, na medida em que somos passagem, canalização, para outros.
Para nos ajudar e facilitar a viver o perdão, a assumi-lo na nossa vida, para além da consciência de que Deus nos perdoou primeiro, não podemos esquecer as palavras de São Paulo, de que não vivemos nem morremos para nós próprios.
Assim, quando ao procurarmos viver o perdão nos apareça a tentação de que será uma humilhação, uma inferiorização, um desprestígio, devemos antepor e confrontar essa tentação com a certeza de que não morremos, nem nos humilhamos, mas bem pelo contrário assumimos o papel e a função de ser como aquele que nos perdoou primeiro, que é um pai amoroso, um rei magnânimo, um servo que entrega a sua vida para a salvação do outro.

 
Ilustração:
1 – “A parábola do servo injusto”, Jan Sanders van Hemessen, University of Michigan Museum of Art, Ann Arbor.
2 – “A parábola do servo injusto”, Domenico Fetti, Gemaldegalerie Alte Meister, Dresden.    

1 comentário:

  1. Não lhe parece que às vezes é tão difícil perdoar verdadeiramente como entender, até ao fim, o perdão de Deus? Mesmo quando dizemos que Deus nunca nos rejeita...Inter pars

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