segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Homilia do XXIII Domingo do Tempo Comum - Ano B

A Liturgia da Palavra deste domingo, nas suas três leituras, deixa-nos algumas propostas de atitudes, de respostas, a situações em que nos vemos envolvidos, muitas vezes sem grande consciência da nossa parte.
A leitura do profeta Isaías apela e convida-nos à coragem, a uma atitude que muitas vezes temos perante outros desafios da vida, mas que nos esquecemos de ter perante a fé e o testemunho que dela radica.
Quando Isaías faz este apelo à coragem, o povo de Israel enfrenta o desaire da deportação, da perda da sua terra e das suas referências enquanto povo; é um povo exilado, sem rei, sem lei, sem lugar de culto. Contudo, e apesar dessa desolação, Deus apela à coragem, a não ter medo, porque o Senhor alterará a seu tempo o decurso dos acontecimentos e da história e aqueles que são os mais frágeis experimentarão a alegria de uma vida nova. A esperança proporciona a coragem.
Hoje em dia, quando vemos a Igreja a ser atacada, quando vemos os conluios que se tramam no interior da própria Igreja, quando tomamos consciência da dimensão do pecado da Igreja, a primeira reacção é de estupefacção, seguida imediatamente de um colocar-se à margem, de um afastamento. Afinal quem é que deseja pertencer a uma comunidade, a um grupo que demonstra tantos pecados, tanta infidelidade aos seus compromissos e princípios?
Conhecemos certamente irmãos nossos que já o fizeram de uma forma declarada e irreversível, e outros que o ponderam fazer, pois sentem-se perdidos e desorientados. É perante esta realidade e esta desorientação, poderíamos dizer esta desolação, que Deus nos convida novamente à coragem, a não temer, porque nenhum de nós está na Igreja por Pedro ou Paulo ou Apolo, pelo Papa Francisco ou pelo padre tal, estamos por Jesus Cristo em quem acreditamos, de quem partimos nos nossos valores e para o qual tendemos na nossa caminhada de busca de fidelidade.
Acreditamos que Jesus é o caminho, a verdade e a vida, e por isso permanecemos, com coragem, sem medo, porque também acreditamos que Deus não deixará de fazer ver os que estão cegos, não deixará mudos os que devem falar, porque acreditamos que ouvindo podemos ajudar-nos a libertar-nos uns aos outros do mal que nos oprime, da desolação em que caímos. A coragem de acreditar e permanecer brota da fé na acção de Deus, da fé de que Deus não fecha os seus ouvidos aos gritos dos inocentes, aos gemidos dos oprimidos. Como nos diz Isaías Deus fará brotar da terra árida nascentes de água viva.
É esta fé que nos leva também a estar atentos ao que vemos e ouvimos, ao que dizemos, como nos diz a Carta de São Tiago a não fazer acepção de pessoas, a não colocar etiquetas e rótulos.
A Carta de São Tiago expressa-se de modo claro e inequívoco à acepção de pessoas por causa da sua condição e poder económico; contudo, não podemos esquecer nem deixar de olhar atentamente a acepção de pessoas que fazemos na Igreja, no interior das nossas comunidades, por causa dos seus comportamentos, da sua diferença de pensar e ver as coisas, da sua diferença de opinião e até de busca de fidelidade à Palavra de Deus. Quantos rótulos e etiquetas colocamos nos outros sem conhecer as suas razões, sem conhecer a sua história, apenas porque desta forma rotulada nos é mais fácil relacionar com a diferença do outro, inviabilizando assim a riqueza da descoberta pessoal, da personalização.
Personalização que está retratada de forma magistral no encontro de Jesus com o surdo-mudo que a leitura do Evangelho de São Marcos nos apresenta. Este homem que não pode expressar-se, que não pode entrar em comunicação, é trazido pela massa anónima da multidão para que Jesus faça alguma coisa com ele, para que o cure.
Jesus, que o podia curar diante da multidão, afasta-se com ele, como que retirando-o daquele anonimato e até daquela rotulagem que a multidão produzia, potenciando assim um encontro pessoal, a descoberta de um “eu” que se pode relacionar com o “tu” que é Jesus. A acção de Jesus é assim a de devolver ao outro a sua própria pessoa, a sua identidade que se constrói e desenvolve no relacionamento com os outros.
E este é o grande processo que todos nós somos chamados a desenvolver na nossa vida, na nossa caminhada de crentes e de cristãos, a passar de um anonimato imposto pela multidão, pela massa, a uma pessoa que se reconhece em si mesmo e no que Deus lhe revela de si próprio. Neste processo de personalização vamos perdendo a tentação da rotulagem e da acepção de pessoas uma vez que nos descobrimos também pecadores e fracos, necessitados dessa graça que Deus nos concede para sermos diferentes, melhores.
Processo que, como acontece regularmente na acção de Jesus, assenta na dimensão humana, não prescinde da humanidade de cada um de nós e da humanidade do próprio Jesus, que toca o surdo nos ouvidos com os seus dedos, na língua muda com a sua própria saliva. Descobrimos o nosso eu, a nossa pessoa, nessa humanidade tocada por Deus, na carne que nos constitui e na qual Deus quis vir habitar, quis fazer-se um de nós.  
Processo que também conta com a nossa liberdade e vontade, poderíamos dizer com a nossa coragem em participar neste desenvolvimento, pois após ter tocado o surdo-mudo Jesus diz-lhe Efatá, “abre-te” à novidade que te está a ser apresentada, à novidade da pessoa que és e que Deus te revela no teu relacionamento com Ele, nessa reciprocidade de acolhimento entre o teu eu e o eu de Deus.
E como se não bastasse já toda a transformação, este encontro de eu e tu, Jesus após o milagre operado recomenda o silêncio, poderíamos dizer a não tradução em palavras do acontecido, porque de facto esse encontro e descoberta é indizível, é inexpressável, é uma história pessoal, uma história de amor, e as palavras não têm o poder de dizer essa história e esse amor. Será a vida, a fidelidade, a coragem de acreditar e lutar que dirá do milagre realizado, que expressará esse encontro e essa descoberta personalizante de cada um em Deus.
A Palavra de Deus que escutámos neste domingo é assim bastante desafiante, e na semana que agora iniciamos não podemos deixar de lhe dar corpo e de lhe fazer eco. Necessitamos encher-nos de coragem para acreditar em Deus que não desampara os seus fiéis, para acreditar na Igreja que somos todos nós com mais ou menos pecados, para não fazermos juízos uns dos outros porque frequentemente nos equivocamos, para guardar silêncio porque até das pedras o Senhor pode fazer arautos da sua verdade.
Que o Senhor nos ilumine com a sua sabedoria e nos conceda a graça da fortaleza e da fidelidade em todos os desafios que nos são colocados pelo mundo em que vivemos e nos movemos.

 
Ilustração:
1 – “Isaías profetiza o regresso do exílio”, de Maarten van Heemskerck, Frans Hall Museum, Holanda.
2 – “Jesus cura um surdo-mudo”, de James Tissot, Brooklyn Museum.

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