domingo, 10 de fevereiro de 2019

Homilia do V Domingo do Tempo Comum - Ano C

As leituras que este domingo a Liturgia da Palavra nos apresenta são muitas vezes utilizadas em contexto de discernimento vocacional, ajudam a perceber que o Senhor nos chama para o seguirmos, para nos lançarmos nessa grande aventura de entrar mar adentro da missão.
Contudo, as leituras do profeta Isaías, da Carta de São Paulo, e de modo particular o Evangelho de São Lucas dizem-nos muito do que podem ser as nossas atitudes do quotidiano, dos desafios que nos são colocados cada dia no nosso ser cristão e discípulos de Jesus.
Assim, tal como acontece com Simão também nós nos podemos sentar na praia a concertar as nossas redes, escutando agradavelmente o Senhor e a sua mensagem. Estamos envolvidos na nossa rotina, nos nossos afazeres, e estamos bem, não sentimos a necessidade de fazer algo de diferente, de ousar a radicalidade. Afinal, somos cristãos cumpridores dos nossos deveres.
É neste contexto, nas mais diversas circunstâncias da nossa rotina, que o Senhor nos pede um barco para poder levar a cabo a sua missão, o barco do nosso coração, da nossa vida, no qual o Senhor se senta como anunciador, como profeta de uma outra realidade. O nosso coração ocupado por Jesus não se contenta já de ficar estacionado na praia, arrisca navegar sobre as águas, mas ainda assim sem grande risco, sem necessidade de uma ousadia radical.
A palavra de Jesus é contudo poderosa, plena de vida e força, e sem que nos demos conta desinstala-nos e gera em nós esse desejo de ir mais além, de explorar as águas profundas do amor de Deus, da radicalidade da missão. O barco necessita navegar mais além, em outras águas mais profundas, capazes de melhores pescarias.
Este impulso pode no entanto ser inviabilizado por duas tentações, duas realidades, como são o pecado, a consciência das nossa impureza, como aconteceu com Isaías na primeira leitura que escutámos, ou a nossa história de infidelidade, como aconteceu com Paulo, que apesar dessa história não se envergonhou dela nem deixou que ela o impedisse de ir mais além, de entrar na aventura de ser apóstolo de Jesus.
De facto, muitas vezes consideramo-nos indignos, impuros, pecadores e fracos, e por essa razão o apelo de Jesus, o convite a frequentar águas mais profundas fica preterido, ou esquecido, satisfazendo-nos apenas com a nossa zona de conforto, com o que temos como seguro e certo. Nestes momentos esquecemo-nos que somos baptizados, que fomos purificados, que tal como aconteceu com o profeta Isaías também nós fomos tocados pelo carvão ardente do fogo divino, um toque que nos fez filhos de Deus, capazes de ir mais além, de fazer mais do que fazemos, ou pelo menos algo de diferente.
E se a nossa história pessoal está enredada em tramas de violência e desamor, de guerras e infidelidades, a partir do nosso encontro com Jesus percebemos como nessa história se foi manifestando o apelo de Deus, a sua misericórdia e o convite a uma nova vida, a outra atitude. E não podemos, nem devemos, escamotear essa história pessoal, afinal é quando fomos fracos que o Senhor manifestou a sua força, tal como diz São Paulo aos Coríntios; é quando não eramos nada que o Senhor manifestou a sua graça, é por esses momentos de miséria que percebemos a graça de Deus actuando em nós e através de nós.   
Para vencer estas duas tentações, estes medos e histórias, temos que estar atentos à palavra do Senhor, é ela que nos desafia a ir mar adentro, mas é ela também que garante a segurança e a estabilidade, pois o Senhor vai na nossa barca e levanta-se quando necessário para acalmar os ventos e as ondas das tempestades da viagem pelo mar mais profundo, tal como fez com a barca dos discípulos na noite de tempestade. É também a confiança na palavra do Senhor que nos conduz a recolher as redes carregadas de peixe, carregadas dos frutos da própria palavra actuando em nós, porque sem essa palavra as nossas noites de faina são um cansaço em vão.
Assim, nesta semana que agora iniciamos, somos desafiados por Deus a ir mais além, a deixar de molhar apenas os pés no mar, a ficarmos sentados na margem do mar.
Esta viagem mais ousada e arriscada pode ser um momento de atenção ao nosso próximo, um momento verdadeiramente pensado e colocado sob a protecção do Espirito Santo, um momento que exige de nós algo mais que uma atenção passageira, que exige uma entrega concreta de tempo, de atenção, de ternura.
Esta viagem mais ousada e arriscada pode significar uma outra participação nas tarefas de casa, um aliviar da carga do outro, uma atenção para libertar o outro de um peso, afinal uma ajuda que diz muito do amor profundo em que navegamos e que manifestamos ao outro, seja marido ou esposa, seja pai ou filho.
Esta viagem mais ousada e arriscada pode concretizar-se num bom dia a um desconhecido, num sorriso generoso a alguém com quem nos cruzamos, num abraço a alguém que necessita chorar nos nossos braços.
Cada dia as águas do amor e da fraternidade desafiam-nos a deixar as margens seguras e serenas, a avançar mar adentro, a navegar nas profundidades, porque mais forte que a morte é o amor, como nos diz o Cântico dos Cânticos.

 
Ilustração:
1 – A Pesca Milagrosa, de Rafael, Victoria and Albert Museum, Londres.
2 – Fotografia de Celebração da Eucaristia com as crianças da Catequese.
 

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