domingo, 30 de agosto de 2020

Homilia XXII Domingo do Tempo Comum - Ano A

Seduziste-me e eu deixei-me seduzir!

Queridos irmãos, é com estas palavras que o profeta Jeremias fala da relação de Deus, da sua relação com Deus, mas é também através desta expressão e deste movimento que podemos falar de todas as nossas relações, quer com Deus quer com os objectos mais banais. Somos seres seduzíveis, feitos para a sedução, quer activa quer passiva.
Contudo, e paradoxalmente, somos seduzidos quer pelo bem quer pelo mal; na nossa sede de satisfação, de prazer, deixamos-nos vencer pela sedução momentânea, pelo prazer imediato, esquecendo os fins últimos a que estamos destinados, a felicidade eterna que nos é oferecida.
É esta satisfação imediata que encontramos no diálogo de Jesus com Pedro no Evangelho de São Mateus que escutámos. Face ao anúncio do fim trágico que espera Jesus ao subir a Jerusalém, da paixão e morte, Pedro aparece com um benevolente discurso que procura evitar esse fim, esquecendo que a última realidade e anúncio de Jesus é a ressurreição. A subida a Jerusalém não tem como fim a morte, mas a ressurreição.
Mas esta benevolência, esta espécie de simpatia solidária, que Jesus reconhece como sendo uma estratégia e táctica de Satanás, do tentador, é bastante antiga e encontra-se no caminho do homem desde o paraíso, desde o momento da primeira tentação.  Também aí a serpente sedutora engana a mulher, distorcendo as palavras de Deus, prometendo uma satisfação e realização momentânea que se opõem à plena felicidade oferecida por Deus.
Assim, a cada um de nós apresenta-se este trabalho, esta tarefa, de discernir o que é prazer momentâneo, satisfação imediata, e à luz dos fins últimos, da nossa opção fundamental de felicidade na vida eterna, optar por algo diferente, estrutural, fundamental, ainda que menos satisfatório no imediato.
É nesta linha processual que podemos inserir as palavras que Jesus, depois de repreender Pedro por apenas querer ver as coisas humanas e não as de Deus, dirige aos discípulos e assim a todos nós, quem quiser seguir-me renuncie a si próprio, tome a sua cruz e siga-me.
Renunciar a si mesmo não significa aniquilar-se naquilo que cada um de nós é, tal processo seria completamente contrário à nossa própria condição e força vital, pois estamos feitos para ser e ser cada vez mais e melhor. Renunciar a si próprio significa renunciar à pretensão da satisfação e da realização plena e total no momento, à satisfação da vã glória, à auto glorificação se assim se pode dizer. Renunciar é não se conformar, como nos diz São Paulo na leitura que escutámos da Carta de São Paulo aos Romanos. Renunciar é querer outra coisa e outra coisa melhor, é optar, o que implica deixar uma para poder ter outra.
Desta forma, seguir Jesus carregando a própria cruz, não é meramente seguir Jesus com as nossas dores e sofrimentos, com os nossos sacrifícios, num espírito dolorista e tantas masoquista, mas é seguir Jesus nesse combate constante de discernimento, de vigilância, entre o que é momentâneo e até ilusório e o que é estrutural e fundamental, eterno. 

Carregar a cruz é consciencializar-se da exposição à tentação a que todos estamos sujeitos, é estar consciente dos desejos e seduções que nos podem dominar e desviar, é trabalhar pela renovação espiritual para perceber à luz da vontade de Deus o que é bom, o que lhe é agradável, e o que é perfeito.
Muitas vezes, perante este desafio de ser perfeitos, e perfeitos como Deus é perfeito, como nos dirá Jesus em outro momento, caímos no desânimo e deixamos-nos vencer pela frustração; pois, quem pode ser perfeito como Deus? Contudo, a perfeição que Deus nos pede não é a dele, ele é perfeito Deus, a nós é nos pedido que sejamos perfeitos homens e mulheres, que sejamos bons naquilo que cada um tem, que cada um é capaz de fazer, pois dessa forma somos agradáveis a Deus, em suma, estamos a ser aquilo que ele nos criou, imagem e semelhança sua.
É esta busca, este combate, pela nossa perfeição humana que constitui o culto espiritual, o sacrifício vivo, santo, e agradável a Deus, de que nos fala São Paulo, pois é o homem vivo nesta busca constante que dá glória a Deus, como sabiamente se expressou Santo Irineu de Lyon.
Procuremos pois nesta semana que agora iniciamos estar atentos às seduções que nos escravizam, lutando contra elas, como bons soldados de Cristo, e paralelamente procuremos viver dignamente, com bondade e verdade, aquilo que somos e temos, para em tudo glorificarmos a Deus e contribuirmos para a plena realização do Reino de Deus.

Ilustrações:

1 – Domine Quo Vadis, Jacopo Vignali, Metropolitan Museum of Art, Nova York.

2 – A Tentação de Santo Atónio Abade, Henri Fantin-Latour, National Museum of Western Art, Tóquio.

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