domingo, 11 de abril de 2021

Homilia Domingo II da Páscoa

Queridos irmãos

Há uns tempos atrás, antes desta pandemia e da impossibilidade de circularmos livremente, um amigo, presente aqui entre nós, fez uma visita ao Mosteiro de São Miguel de Refojos em Cabeceiras de Basto. Durante a visita guiada, de que estava a usufruir, enviou-me algumas fotografias, (uma delas a que ilustra esta publicação) para me perguntar sobre a identificação correcta da figura dominicana representada no quadro ali existente do episódio que hoje escutámos no Evangelho; pois, não só na ficha de identificação do quadro, como nas palavras da guia, na representação pictórica estava representado São Domingos, quando de facto quem está lá representado é São Tomás de Aquino.

Podem imaginar como fiquei surpreendido, curioso sobre o primitivo e original espaço de proveniência daquela belíssima pintura, e diante da questão do meu amigo sobre o porquê da presença de São Tomás de Aquino naquela representação, a minha primeira associação foi a da semelhança de nomes em latim.

Contudo, hoje, e depois de ler um bocadinho do comentário de São Tomás sobre o Evangelho de São João e mais concretamente sobre este trecho que escutámos há associações que justificam a sua representação e que inevitavelmente quero partilhar convosco, para que ao visitardes São Miguel de Refojos e ao parardes diante daquela bela pintura possais ler o que ela desde o primeiro momento nos quis dizer.

No entanto, antes de entrarmos nesta leitura, observemos um pouco o que nos diz o Evangelho sobre a situação da comunidade dos discípulos, porque as palavras de Jesus na primeira aparição vão ser-nos importantes na leitura da representação do quadro.

Encontramos um conjunto de discípulos fechados em casa, com medo, uma comunidade bastante diferente da que nos é apresentada pelos Actos dos Apóstolos que escutámos na primeira leitura. Aqui ainda não temos um só coração e uma só alma, ainda não era tudo comum, ou se alguma coisa havia em comum era a suspeita, a dúvida, a divisão e a incredulidade.

Afinal quem tinha acreditado na palavra das mulheres que diziam ter encontrado Jesus? Alguns discípulos tinham até já feito uma debandada, como aqueles que vão reconhecer Jesus em Emaús. E a dúvida e o pedido de Tomé são o sinal mais evidente deste clima de suspeição, de necessidade de ver e tocar, do mal-estar que se vivia no conjunto do grupo e na comunidade.

É por causa deste mal-estar, desta divisão e suspeita, que a saudação de Jesus em cada uma das aparições é a saudação da paz, um convite a que a sua paz esteja no coração de cada um, porque só esta paz pode pôr fim à divisão e à suspeita, à falta de confiança uns nos outros. É uma saudação que nos é dirigida em cada domingo, cada dia que celebramos a Eucaristia, em cada momento como um convite a superar as nossas dúvidas e divisões, porque Deus sabe que o medo e a suspeita são instrumentos do mal.

E com o coração pacificado podemos receber o Espírito Santo, o espírito que o Senhor ressuscitado soprou sobre cada um deles, e desta forma, em paz e com o poder do Espírito podemos recuperar e garantir a unidade da comunidade, podemos construir a comunidade nova, a comunidade de um só coração e uma só alma, onde tudo é comum e que parte para a evangelização sem temor e com ousadia como aconteceu depois com os discípulos.

Uma ousadia que está patente em Tomé, não só quando questiona e duvida do testemunho dos seus companheiros, mas que já antes habitava o seu coração, pois não podemos esquecer que quando Jesus anuncia que vai ser morto em Jerusalém, Tomé é aquele que desafia os companheiros a ir com o mestre para também serem mortos. Tomé é um radical.

Contudo, o Evangelho diz-nos que Tomé é o Dídimo, ou seja, o gémeo, ainda que em lugar algum se diga qual é o seu gémeo, talvez porque somos todos nós, nos representa a todos nós, nas nossas dúvidas e petições, no nosso desejo de tocar Jesus.

E neste sentido, e retomando novamente o quadro de São Miguel de Refojos, podemos dizer que o gémeo de Tomé é São Tomás de Aquino, um dos muitos que Tomé pode ter, e por isso ali está representado naquele quadro. O grande teólogo medieval considera com grande admiração Tomé como um bom teólogo, o bom teólogo, à semelhança de São João Evangelista considerado também o teólogo, porque não se limitam ao que lhes é dado experimentar pelos sentidos, querem mais, vão mais longe na sua experiência de Deus.

O que é permitido tocar a Tomé são as feridas de um homem morto, mas que aparece vivo no meio dos seus amigos. Já por si é uma experiência extraordinária, excepcional, é a experiência pessoal do ressuscitado. Mas Tomé vai mais longe, mergulha numa profissão de fé ao dizer “meu Senhor e meu Deus”, que para São Tomás de Aquino são uma profissão de fé e uma confissão na verdade da humanidade de Cristo e ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma confissão de fé na divindade de Jesus. O superficial leva ao profundo, os sentidos ao espírito.

E é interessante observarmos que no quadro de São Miguel de Refojos é a própria mão de Cristo que conduz a mão de Tomé a tocar a chaga do lado. No quadro certamente mais conhecido desta representação, o de Caravaggio, vemos o discípulo introduzir os dedos na ferida de Jesus. Tais pormenores levam-nos novamente a São Tomás de Aquino que considera o teólogo como aquele que não se satisfaz com o superficial, com a observação desde o exterior, mas quer aprofundar e conhecer o mistério desde o interior.

A mão que conduz à ferida de Jesus, os dedos que Caravaggio pinta no interior da chaga, são representações do Espírito Santo, conhecido também como o dedo de Deus, é ele que permite passar dos sentidos à fé, da experiência do ressuscitado à proclamação da fé “meu Senhor e meu Deus”. Só o Espírito Santo nos permite aprofundar nos mistérios de Deus, experiência que não exclui nem invalida a necessidade de sinais. Os discípulos necessitaram ver para acreditar.

E se São Tomás de Aquino aparece representado ao lado de Tomé é porque também ele ao cantar o mistério da Eucaristia não deixou de ter em conta esta necessidade de sinais, é por meio deles que nos podemos aproximar do mistério, necessitamos todos de sinais, para perceber e viver a Eucaristia, para perceber e viver a Igreja como corpo místico de Cristo.

E paradoxalmente fazemos esta experiência na nossa realidade humana quando depois de uma cirurgia mostramos as cicatrizes que nos ficaram na pele; como se o outro se não tiver oportunidade de ver lhe fique vedado o conhecimento real, de certa maneira a participação no nosso mistério de passar por uma experiência de morte.

Por isso ao celebrarmos a Divina Misericórdia neste domingo, esta porta que Deus nos abre de o conhecermos no seu amor infinito por cada um de nós, somos desafiados na nossa fé e caridade. Antes de mais nos juízos que tantas vezes fazemos sobre os outros. O que conhecemos das suas feridas, até onde as tocámos, para podermos dizer alguma coisa? Por outro lado, na unidade das nossas comunidades. Quantos medos e suspeitas nos impedem a unidade e limitam a missão? E por fim, na nossa própria formação. Quantas dúvidas e questões não deixámos que nos afastassem em vez de nos aproximarem do mistério de Deus?

Somos todos gémeos de Tomé, nas dúvidas e questões, na necessidade de ver e tocar, mas com a luz e a força do Espírito Santo possamos ser do grupo dos bem-aventurados que o Senhor chama porque acreditaram sem terem visto, porque à semelhança de Santa Catarina de Sena quanto mais aprofundavam mais desejavam aprofundar.

 

Ilustração:

1 – A Incredulidade de São Tomé, São Miguel de Refojos, Cabeceiras de Basto.

2 – A Incredulidade de São Tomé, Caravaggio, Sansscouci Picture Gallery, Potsdam.

   

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