Queridos irmãos
Há uns tempos atrás,
antes desta pandemia e da impossibilidade de circularmos livremente, um amigo,
presente aqui entre nós, fez uma visita ao Mosteiro de São Miguel de Refojos em
Cabeceiras de Basto. Durante a visita guiada, de que estava a usufruir,
enviou-me algumas fotografias, (uma delas a que ilustra esta publicação) para
me perguntar sobre a identificação correcta da figura dominicana representada
no quadro ali existente do episódio que hoje escutámos no Evangelho; pois, não
só na ficha de identificação do quadro, como nas palavras da guia, na
representação pictórica estava representado São Domingos, quando de facto quem
está lá representado é São Tomás de Aquino.
Podem imaginar como
fiquei surpreendido, curioso sobre o primitivo e original espaço de
proveniência daquela belíssima pintura, e diante da questão do meu amigo sobre
o porquê da presença de São Tomás de Aquino naquela representação, a minha
primeira associação foi a da semelhança de nomes em latim.
Contudo, hoje, e depois
de ler um bocadinho do comentário de São Tomás sobre o Evangelho de São João e
mais concretamente sobre este trecho que escutámos há associações que
justificam a sua representação e que inevitavelmente quero partilhar convosco,
para que ao visitardes São Miguel de Refojos e ao parardes diante daquela bela
pintura possais ler o que ela desde o primeiro momento nos quis dizer.
No entanto, antes de entrarmos
nesta leitura, observemos um pouco o que nos diz o Evangelho sobre a situação
da comunidade dos discípulos, porque as palavras de Jesus na primeira aparição
vão ser-nos importantes na leitura da representação do quadro.
Encontramos um conjunto
de discípulos fechados em casa, com medo, uma comunidade bastante diferente da
que nos é apresentada pelos Actos dos Apóstolos que escutámos na primeira leitura.
Aqui ainda não temos um só coração e uma só alma, ainda não era tudo comum, ou
se alguma coisa havia em comum era a suspeita, a dúvida, a divisão e a
incredulidade.
Afinal quem tinha
acreditado na palavra das mulheres que diziam ter encontrado Jesus? Alguns discípulos
tinham até já feito uma debandada, como aqueles que vão reconhecer Jesus em
Emaús. E a dúvida e o pedido de Tomé são o sinal mais evidente deste clima de
suspeição, de necessidade de ver e tocar, do mal-estar que se vivia no conjunto
do grupo e na comunidade.
É por causa deste
mal-estar, desta divisão e suspeita, que a saudação de Jesus em cada uma das
aparições é a saudação da paz, um convite a que a sua paz esteja no coração de cada
um, porque só esta paz pode pôr fim à divisão e à suspeita, à falta de
confiança uns nos outros. É uma saudação que nos é dirigida em cada domingo, cada
dia que celebramos a Eucaristia, em cada momento como um convite a superar as
nossas dúvidas e divisões, porque Deus sabe que o medo e a suspeita são instrumentos
do mal.
E com o coração
pacificado podemos receber o Espírito Santo, o espírito que o Senhor ressuscitado
soprou sobre cada um deles, e desta forma, em paz e com o poder do Espírito
podemos recuperar e garantir a unidade da comunidade, podemos construir a
comunidade nova, a comunidade de um só coração e uma só alma, onde tudo é comum
e que parte para a evangelização sem temor e com ousadia como aconteceu depois
com os discípulos.
Uma ousadia que está
patente em Tomé, não só quando questiona e duvida do testemunho dos seus
companheiros, mas que já antes habitava o seu coração, pois não podemos
esquecer que quando Jesus anuncia que vai ser morto em Jerusalém, Tomé é aquele
que desafia os companheiros a ir com o mestre para também serem mortos. Tomé é
um radical.
Contudo, o Evangelho
diz-nos que Tomé é o Dídimo, ou seja, o gémeo, ainda que em lugar algum se diga
qual é o seu gémeo, talvez porque somos todos nós, nos representa a todos nós,
nas nossas dúvidas e petições, no nosso desejo de tocar Jesus.
E neste sentido, e retomando
novamente o quadro de São Miguel de Refojos, podemos dizer que o gémeo de Tomé
é São Tomás de Aquino, um dos muitos que Tomé pode ter, e por isso ali está
representado naquele quadro. O grande teólogo medieval considera com grande
admiração Tomé como um bom teólogo, o bom teólogo, à semelhança de São João
Evangelista considerado também o teólogo, porque não se limitam ao que lhes é
dado experimentar pelos sentidos, querem mais, vão mais longe na sua experiência
de Deus.
E é interessante observarmos
que no quadro de São Miguel de Refojos é a própria mão de Cristo que conduz a
mão de Tomé a tocar a chaga do lado. No quadro certamente mais conhecido desta
representação, o de Caravaggio, vemos o discípulo introduzir os dedos na ferida
de Jesus. Tais pormenores levam-nos novamente a São Tomás de Aquino que
considera o teólogo como aquele que não se satisfaz com o superficial, com a
observação desde o exterior, mas quer aprofundar e conhecer o mistério desde o
interior.
A mão que conduz à ferida
de Jesus, os dedos que Caravaggio pinta no interior da chaga, são representações
do Espírito Santo, conhecido também como o dedo de Deus, é ele que permite
passar dos sentidos à fé, da experiência do ressuscitado à proclamação da fé “meu
Senhor e meu Deus”. Só o Espírito Santo nos permite aprofundar nos mistérios de
Deus, experiência que não exclui nem invalida a necessidade de sinais. Os discípulos
necessitaram ver para acreditar.
E se São Tomás de Aquino
aparece representado ao lado de Tomé é porque também ele ao cantar o mistério
da Eucaristia não deixou de ter em conta esta necessidade de sinais, é por meio
deles que nos podemos aproximar do mistério, necessitamos todos de sinais, para
perceber e viver a Eucaristia, para perceber e viver a Igreja como corpo
místico de Cristo.
E paradoxalmente fazemos
esta experiência na nossa realidade humana quando depois de uma cirurgia
mostramos as cicatrizes que nos ficaram na pele; como se o outro se não tiver
oportunidade de ver lhe fique vedado o conhecimento real, de certa maneira a
participação no nosso mistério de passar por uma experiência de morte.
Por isso ao celebrarmos a
Divina Misericórdia neste domingo, esta porta que Deus nos abre de o
conhecermos no seu amor infinito por cada um de nós, somos desafiados na nossa fé
e caridade. Antes de mais nos juízos que tantas vezes fazemos sobre os outros. O
que conhecemos das suas feridas, até onde as tocámos, para podermos dizer
alguma coisa? Por outro lado, na unidade das nossas comunidades. Quantos medos
e suspeitas nos impedem a unidade e limitam a missão? E por fim, na nossa própria
formação. Quantas dúvidas e questões não deixámos que nos afastassem em vez de
nos aproximarem do mistério de Deus?
Somos todos gémeos de
Tomé, nas dúvidas e questões, na necessidade de ver e tocar, mas com a luz e a força
do Espírito Santo possamos ser do grupo dos bem-aventurados que o Senhor chama
porque acreditaram sem terem visto, porque à semelhança de Santa Catarina de
Sena quanto mais aprofundavam mais desejavam aprofundar.
Ilustração:
1 – A Incredulidade de
São Tomé, São Miguel de Refojos, Cabeceiras de Basto.
2 – A Incredulidade de
São Tomé, Caravaggio, Sansscouci Picture Gallery, Potsdam.
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