Caros irmãos
Há umas semanas atrás,
alguns dos nossos irmãos sorriram, enquanto outros ficaram perplexos, quando
falei do boxe e das suas técnicas ao comentar uma leitura do mesmo Evangelho de
São Marcos que hoje escutámos. Certamente acontecerá o mesmo hoje, ao querer
falar-vos de salto em altura e salto à vara, modalidades do atletismo, face a
este trecho do Evangelho tantas vezes utilizado para o questionamento e
discernimento vocacional.
Certamente já todos vimos
e alguns até praticaram o salto em altura, em que corremos para ganhar impulso,
elevamos o corpo numa determinada inclinação de modo a ultrapassar a fasquia. Contamos
connosco próprios, com o nosso corpo, com o nosso esforço, a técnica aprendida
e bem utilizada.
O homem que se apresenta
diante de Jesus é um atleta, como dirá São Paulo, todos corremos para ganhar o
prémio; e este homem atleta deseja saltar mais alto, ultrapassar uma fasquia
que sabe bem elevada, a vida eterna, e para isso veio pedir ajuda, instrução
junto de Jesus.
Surpreendentemente Jesus
diz-lhe que tem que mudar de modalidade, de exercício, tem que deixar de saltar
em altura e passar a saltar à vara e mais surpreendentemente diz-lhe que essa vara
são os homens e mulheres seus irmãos, a vara que o impulsionará para ultrapassar
a fasquia bem elevada.
No enunciado que Jesus
apresenta ao homem desejoso de prémios encontram-se os mandamentos que dizem
respeito ao cuidado do outro, à relação com o outro, como o não matar, não
levantar falso testemunho, honrar pai e mãe, realidades tantas vezes frágeis e
desafiantes.
O homem atleta pratica já
estas técnicas, e desde bem cedo, desde a sua juventude e, no entanto, a
fasquia continua alta e aparentemente inacessível. Verdadeiramente há algo que
lhe falta, e que Jesus lhe vai apresentar como segredo para a realização do seu
objectivo.
Acredito que já todos
vimos alguma vez um atleta praticar o salto à vara, e acredito também que todos
ficamos surpreendidos como a vara se verga ao peso do atleta e não quebra, e
como o impulsiona para o salto final que o leva a ultrapassar a fasquia. É quando parece que a vara se vai partir que o atleta coloca a maior confiança, se deixa
levar pelas forças que lhe são externas.
E é disto que Jesus fala
ao homem rico que deseja a vida eterna ao dizer-lhe que venda tudo, dê aos
pobres e o siga, ou seja, que mais que levar os outros consigo, que ter
cumprido escrupulosamente os mandamentos, se deixe levar pelos outros num
despojamento total, numa entrega confiante, no risco da fragilidade em que parece
que o apoio se vai quebrar.
A este homem que deseja a
vida eterna Jesus não apresenta preceitos ou mandamentos novos, mas apresenta os
homens e as mulheres, com as sua fragilidades e virtudes e a confiança
depositada em cada um deles, como o meio para alcançar os objectivos e ultrapassar
a fasquia mais elevada.
Face à incompreensão da
proposta por parte do homem rico, Jesus afirma a grande dificuldade de um rico
entrar no reino de Deus, não como uma sentença fatalista contra a riqueza ou o
património, mas como um alerta necessário e condutor ao despojamento, à
liberalidade, à confiança em Deus e nos irmãos.
Numa cultura em que a
riqueza e os filhos eram considerados como bênção de Deus, Jesus inverte a
relação de forças e diz que a bênção é verdadeiramente a liberdade de não possuir,
de acolher as coisas como se não fossem suas, assumindo desta forma as palavras
do livro da Sabedoria que escutámos na primeira leitura na qual nos é dito que
todos os bens e riquezas nos chegam pela mão da sabedoria, por esse
despojamento e esvaziamento para que Deus possa estar presente.
É um processo verdadeiramente
difícil, mas que não podemos deixar de tentar praticar, como qualquer atleta
que se sujeita aos treinos e disciplina, que procura superar-se a si mesmo,
para alcançar os mais altos prémios. Nesta preparação e treino, a leitura e
compreensão da Palavra de Deus é fundamental, pois como nos diz a Epístola aos
Hebreus, a palavra é penetrante, viva e eficaz, capaz de ir até aos pontos mais
íntimos para nos revelar a graça de Deus nas nossas vidas.
Então perceberemos as
riquezas que nos são concedidas, os irmãos e pais que deixámos e nos foram
devolvidos, as riquezas que possuímos sem que elas nos possuam, porque vivemos
na liberdade da confiança em Deus. Deixámos tudo por Jesus, mas nele tudo nos
foi devolvido com outra dimensão, numa relação de liberdade.
Ilustração:
Salto à vara de Théo Mancheron, Campeonato de Atletismo de França, Stade Charlety, Paris, 2013. Wikimedia Commons.
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