domingo, 17 de janeiro de 2010

Homilia Domingo II do Tempo Comum

Iniciamos o Tempo Comum do ano litúrgico, neste terceiro ciclo das leituras bíblicas, com o episódio das bodas de Caná da Galileia, um episódio único do Evangelho de São João e que não se encontra em qualquer dos outros Evangelhos. Pela riqueza da teologia que lhe está subjacente, pela carga simbólica com que está redigido, poderíamos passar tempos infinitos a tentar interpretá-lo e mesmo assim não alcançaríamos toda a riqueza e beleza da mensagem divina que nos transmite. Resta-nos assim ir tenteando, procurando aos poucos beber desse vinho novo que nos é oferecido, vinho que nos inebria, vinho que nos cura e nos fortalece na caminhada para as bodas celestiais.
Neste tentear temos que ter presente a construção temporal que o autor do texto estabelece, porque as bodas a que Jesus comparece com sua mãe e os seus discípulos são umas bodas do terceiro dia. Elas estão assim, e neste contexto cronológico, intimamente relacionadas com a ressurreição, com o acontecimento pascal, que se desenrola também em três dias.
Ainda neste contexto, não podemos passar ao lado do que acontece antes, nos dias que precedem as bodas; e assim encontramos no primeiro dia o chamamento de André e Simão Pedro e no segundo dia o chamamento de Filipe e Natanael. As bodas são assim precedidas do chamamento, da vocação dos primeiros discípulos de Jesus, discípulos que trazem outros consigo. André traz Simão Pedro e Filipe traz Natanael. As bodas do terceiro dia são por isso, e também, uma imagem das bodas escatológicas, as bodas que esperam não só aqueles que seguem Jesus porque o encontraram nos seus caminhos mas que também o deram a conhecer a outros. As bodas são também nossas nessa medida do nosso encontro e do nosso anúncio e partilha.
Continuando neste tentear da leitura não podemos esquecer as personagens centrais do relato e de modo muito particular a figura da mãe de Jesus, mãe que no Evangelho de João nunca aparece mencionada pelo seu nome próprio de Maria e é também e sempre tratada por Jesus de “mulher”. Aqui, nas bodas de Caná, e mais tarde junto à cruz, momentos nos quais aparece em todo o Evangelho.
Face a esta circunstância a expressão “mulher” usada por Jesus está carregada de significado, porque de facto aquela que está ali não é já a sua mãe, aquela que lhe pode pedir alguma coisa como filho, mas é a discípula que pode pedir na media em que lhe é fiel. Terminada a boda o evangelista faz questão de mencionar que Maria segue com os discípulos e Jesus, significando dessa forma que Maria, a mulher, se transformou naquele acontecimento, adquiriu outro estatuto, no pedido feito, na resposta obtida e no conselho dado aos servidores.
Esta mulher que apresenta a Jesus a situação desastrosa da falta de vinho para as bodas é também a figuração de toda a humanidade que espera as bodas do Messias, as bodas de salvação. Na falta do vinho está simbolizada a situação decadente e pecadora da humanidade, uma humanidade que necessita ser resgatada dessa mesma circunstância mas que não tem condições para isso, está condicionada pela sua própria situação de festa pessoal e privada de vinho bom.
Mais tarde, já junto à cruz, quando aceita o filho que lhe é entregue em João, esta mulher é a nova Eva, a mãe de uma nova humanidade que se prefigura no discípulo amado. Em Caná da Galileia é como se a maternidade de Maria tivesse que perder sentido, como se tivesse que passar por uma aniquilação, porque só assim, só dessa forma a maternidade junto à cruz poderia acontecer. A mulher que está nas bodas de Caná somos assim todos nós, cada um de nós, que é convidado a deixar de lado os laços familiares, as teias relacionais fundadas sobre a carne, o sangue e o poder patriarcal, para se entregar e viver outro tipo de laços e relações, fundados sobre a fraternidade, uma fraternidade solidária fundada num amor que nos ultrapassa e congrega.
Um último aspecto que queremos apontar neste breve tentear de sentido para o texto é a discrição com que o milagre é realizado, milagre que apenas os serventes testemunham. Os convidados, os noivos, toda a família não se apercebem de nada, tudo é feito com a maior discrição e tranquilidade, sem qualquer alarido, mostrando que o primeiro sinal de Jesus, a sua manifestação não acontece de forma estrondosa mas muito simples e silenciosa. É um prenúncio de toda a sua vida, da sua história e actuação, que vão ser sempre discretas e sem qualquer tipo de imposição ou violência. Jesus oferece-se sugere-se e deixa a cada um a liberdade de o aceitar, de o provar e de ver como é bom.
Para nós é um desafio e um incentivo porque na nossa presença cristã no mundo estamos também convidados a ser sugestivos, a oferecer a presença de Deus através dos nossos valores e virtudes sem qualquer tipo de imposição ou violência. Devemos dar a provar o vinho novo que é o próprio Cristo e a forma nova que nos trouxe de viver, deixando a cada um a liberdade e a responsabilidade de o aceitar.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,
    Através da homília "Domingo II do tempo Comum" e da maravilhosa interpretação do episódio das bodas de Caná da Galileia (apesar de lhe chamar "tentear"), há algumas passagens que sensibilizam particularmente e que me permito transcrever ..." A mulher que está nas bodas de Caná somos assim todos nós, cada um de nós, que é convidado a deixar de lado os laços familiares, as teias relacionais fundadas sobre a carne, o sangue e o poder patriarcal, para se entregar e viver outro tipo de laços e relações, fundados sobre a fraternidade, uma fraternidade solidária fundada num amor que nos ultrapassa e congrega." ..." tudo é feito com a maior discrição e tranquilidade, sem qualquer alarido," ...
    E deixa-nos mais um desafio e um incentivo ..."Devemos dar a provar o vinho novo que é o próprio Cristo e a forma nova que nos trouxe de viver, deixando a cada um a liberdade e a responsabilidade de o aceitar." Obrigada por esta partilha. Bem haja. MJS

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  2. "Jesus oferece-se, sugere-se e deixa a cada um a liberdade de o aceitar, de o provar e de ver como é bom."
    Da leitura da sua homilia, Frei José Carlos, retenho o que transcrevo e com estas palavras parto para o silêncio, pedindo que a fidelidade de Maria seja para nós um exemplo para O seguir em fraternidade e partilha.
    Bem haja por ter repartido connosco a beleza deste Evangelho de S. João.
    GVA

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