segunda-feira, 2 de abril de 2018

Homilia da Solenidade da Páscoa da Ressurreição do Senhor

Estamos a celebrar a Páscoa da Ressurreição de Jesus e o Evangelho de São João que escutamos neste domingo apresenta-nos esse momento em que Maria Madalena pelo romper da aurora vai ao sepulcro onde o corpo de Jesus tinha sido depositado.
Podemos imaginar Maria Madalena caminhando pelas ruas de Jerusalém, por aquelas ruas nas quais também tinha acompanhado o mestre e amigo, onde a memória o tornava presente, movida por um desejo profundo e legítimo de o encontrar novamente, de ouvir a sua voz. Não é fácil aceitar que aqueles que amamos desapareçam da nossa vida, se é que alguma vez chegamos a aceitar, e os lugares que frequentaram parecem querer que permaneçam vivos.
Podemos imaginar também a dor de Maria Madalena, a sua tristeza, e esse sentimento de desorientação, de abismo vertiginoso em que a dúvida nos assalta, pois de que serve ir ao sepulcro que foi selado, onde já nada mais se pode fazer ao corpo que se conheceu, que se acarinhou e cuidou, que se amou. Aquela visita de nada servirá ao que jaz no sepulcro, inacessível para sempre.
Contudo, é necessário ir, não por ele, mas por si, Maria Madalena, aquela que sofre a dor da perda, cujo coração está destroçado com tão grande tragédia. Esta visita é um movimento de luto, um simular da aceitação da fatalidade, pois bem no fundo não deixa de brotar essa recusa a estar só, essa negação de que o outro partiu para uma viagem sem regresso.
Ao chegar ao túmulo Maria Madalena sofre a mais atroz das suas experiências, pois depara-se com o sepulcro violado, completamente escancarado a todo e qualquer estranho, acessível a qualquer um que passasse por ali. À dor da morte de Jesus acresce agora a dor do desaparecimento do corpo. Nesta manhã de Páscoa deixa de haver o que restava do objecto amado, nem um cadáver há já para ver, para prestar os últimos cuidados. A dor da perda torna-se assim lancinante, duplamente dor.
Hannah Arendt escreveu ao seu mestre e amigo Karl Jaspers que o essencial da sua fé se jogava na imprevisibilidade e é afinal nessa imprevisibilidade que Maria Madalena se vê envolvida, de que Maria Madalena se torna testemunha activa. Naquele romper da manhã vinha com um projecto, tinha as suas ideias e planos, carregava a sua dor, e tudo se desmoronou face a uma realidade insuspeita, completamente nova, a uma vida que lhe escapava e a ultrapassava, a uma nova dor.
A Páscoa na sua dimensão de mistério é também, para cada um de nós, o integrar desta imprevisibilidade, é acolhê-la, é assumir que a vida nos alcança enquanto nós estamos a fazer planos para viver, como dizia John Lennon. Deus é muito maior do que podemos imaginar e a sua vida entrelaça-se na nossa vida de uma forma insuspeitável, admirável, não coarctando a nossa liberdade e autonomia, mas iluminando-a e potenciando-a.
Face ao acontecimento imprevisível, Maria Madalena corre a anunciar aos discípulos o que tinha visto, a sua leitura dos acontecimentos, afinal a expressão da sua perda, da sua dor, “levaram o Senhor e não sabemos onde o colocaram”. É a sua dor que a move, a perda do que lhe podia ainda restar para cuidar. Maria Madalena está ainda centrada em si mesma e por isso quando se encontrar com Jesus ressuscitado no jardim não vai ser capaz de o reconhecer, vai pensar que se trata do jardineiro que lhe pode dar alguma informação sobre o paradeiro do corpo desaparecido.
As palavras de Maria Madalena são no entanto a expressão da maior verdade e dimensão do mistério da ressurreição de Jesus. Deixámos de saber onde ele se encontra, onde o colocaram, porque Jesus ressuscitado pode estar no meio das nossas casas, nas nossas relações familiares, como pode estar no meio da rua, num encontro fortuito com um sem-abrigo, pode estar numa criança que sofre num hospital de oncologia como pode estar numa jovem que é explorada sexualmente.
Com a ressurreição de Jesus, a presença de Deus no meio dos homens deixou de ter um lugar controlado, deixou de estar sujeita a esquemas concebidos, pois essa presença joga-se e torna-se efectiva na imprevisibilidade, na novidade da vida, na aventura do encontro que nos leva para fora de nós e que nos coloca verdadeiramente frente ao outro.
A celebração da Páscoa é assim um convite a sair de nós, a deixar a nossa timidez e o nosso medo, a acolher o impensável e o maravilhoso, a novidade da aventura em que Deus se envolve e nos envolve.

 
Ilustração:
1 – Maria Madalena no sepulcro, de Giovanni Girolamo Savoldo, Getty Center, USA.
2 – As santas mulheres junto ao túmulo, de William-Adolphe Bouguereau, Royal Museum of Fine Arts de Antuérpia.

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