A leitura do Evangelho de São Marcos que escutámos apresenta-nos uma situação delicada, constrangedora, pois os discípulos são questionados por Jesus sobre o que conversavam no caminho e nenhum deles lhe responde, nenhum tem a coragem de lhe dar uma satisfação.
Pode parecer-nos, de
facto, uma situação estranha, mas se tivermos em conta que pouco antes, uns versículos
antes no mesmo capítulo do Evangelho, Jesus coloca a mesma questão, e face à
resposta dos discípulos os corrige de forma um pouco ríspida, compreendemos
este silêncio.
No momento anterior Jesus
desce do monte, após a transfiguração, e encontra os discípulos a discutir
devido à incapacidade de curarem um jovem epilético que lhes tinha sido
apresentado, agora discutem entre si a primazia entre eles, inconscientes da
sua pequenez e limitações, das suas incapacidades, feridos na sua
susceptibilidade e no seu ego.
E todos sabemos como as
feridas no ego, na nossa susceptibilidade, são bloqueadoras do diálogo, da
palavra que liberta e cura. Todos nós já fizemos essa experiência, já passámos
por situações que nos encerram no silêncio e no mutismo, algumas vezes bastante
expressas nas feições do nosso rosto.
Perante este impasse, este
silêncio, simpaticamente Jesus não volta a interrogar os discípulos, mas
sentando-se no meio deles apresenta-lhes uma criança e começa a ensiná-los
sobre a primazia a partir da humildade e do serviço, ao contrário do poder que
eles anteriormente tinham manejado e sobre o qual tinham ancorado a sua
discussão. Quem quiser ser o primeiro deverá ser o servo de todos.
Pode parecer estranho,
mas nesta narração e no seu desenvolvimento encontramos aquilo que encontramos na
prática do boxe, um conjunto de técnicas ou exercícios que Jesus pratica e que
ensina aos seus discípulos a praticar, ajudando-os a perceber a necessidade de
se esquivar, proteger, de encaixar, aguentar, e responder de forma precisa e
com impacto.
Neste sentido, o texto
diz-nos que Jesus caminhava pela Galileia, mas não queria que se soubesse, como
se Jesus se esquivasse aos encontros e golpes que o poderiam impedir de
realizar o bom combate que deveria realizar. Os Evangelhos não deixam de nos
apresentar este cuidado de protecção pessoal de Jesus e aos próprios discípulos
Jesus recomenda que quando não forem bem recebidos numa cidade ou forem
perseguidos devem partir para outro lugar. Como nos recorda o Eclesiastes há um
tempo para tudo, para combater e para se preparar para o combate.
Por outro lado, Jesus
manifesta de forma perfeita o seu poder de encaixe, de modo particular nas discussões
e contendas com os fariseus e os doutores da Lei. Jesus aguenta as questões, faz
corpo com os seus adversários, não desarma. E mesmo com os discípulos tão pouco
desarma e deixa de fazer corpo, quer interpelando-os sobre o que discutem, quer
aguentando o silêncio e a falta de resposta. Por vezes é necessário dar um
passo atrás, para dar dois em frente.
E por fim Jesus responde,
de uma forma impactante, derrubadora do outro, mas não com violência, nem
agressividade, mas tantas vezes de uma forma suave como uma pluma que derruba o
peso e a brutalidade da força do outro. Uma criança sem qualquer força ou poder
colocada no centro da roda do ávidos de poder é um murro no estômago, um golpe
que leva ao tapete.
Por isso, aos discípulos Jesus
pede que deixem ser o Espírito a falar por eles, ou seja, que deixem o Espírito
gerar as palavras que podem de facto afectar o outro, provocar no sentido de chamar
à palavra, de ser um apelo à mudança, porque a sabedoria que vem do alto é pura
e pacífica, compreensiva e cheia de misericórdia, como nos recordava a Carta de
São Tiago que escutámos na segunda leitura.
Fazer caminho com Jesus, procurar
ser fiel e justo à sua imagem, ser o mais pequeno de todos no serviço, provoca
inevitavelmente a inveja e a cobiça, maquinações e rivalidades, como nos
alertavam o Livro da Sabedoria e a Carta de São Tiago. São frutos das paixões e
desejos mundanos que habitam o coração do homem, forças que inviabilizam a paz
no coração e a recta apreciação dos dons e graças de cada um, oferecidos por
Deus não só para a realização pessoal, mas também para a participação na
realização dos outros.
Procuremos pois, como
também nos recorda o Mestre Eckhart, ser cada vez mais humildes, na medida em
que ao crescermos em humildade crescemos também em espaço para Deus habitar, e
consequentemente beneficiamos em maior grau dos seus dons e graças; mas
procuremos igualmente estar conscientes que há um tempo para tudo debaixo do
sol, um tempo para recuar, um tempo para aguentar, um tempo para responder e
dar um passo em frente, e em todos os momentos e para todos os momentos uma necessidade
enorme de paz no coração.
Ilustração:
Jesus Cristo e a criança,
de Carl Bloch, Igreja de São Nicolau, Holbaek, Dinamarca.
Sem comentários:
Enviar um comentário