A leitura do Evangelho
de São João que hoje escutámos finaliza o capítulo sexto deste Evangelho, um
capítulo que temos vindo a ler de forma continuada nestas últimas semanas e
depois da narração do milagre da multiplicação dos pães com que o mesmo
capítulo se inicia.
É um capítulo que nos
oferece a interpretação do milagre operado por Jesus, um milagre que manifesta
o dom total de Deus, o alimento que Deus coloca à nossa disposição, mas é
também um capítulo que nos revela as dificuldades de Jesus, a incompreensão
face à sua mensagens e aos sinais que desenvolve para manifestar a sua pessoa.
Poderíamos dizer que é
o capítulo de excelência das opções que são necessárias fazer, das
responsabilidades que são necessárias tomar, da adesão total que é exigida, e
por isso assistimos a uma progressão do geral para o particular, da multidão
para o grupo restrito dos discípulos que é confrontado com essa questão de
permanecer ou debandar.
Esta problemática
aparece-nos patente em dois outros acontecimentos, também eles narrados pelo Evangelho
de São João. De forma paradigmática vemos na narração do episódio da samaritana
como as palavras de Jesus provocam a fé e a adesão dos homens e mulheres da
aldeia. São estrangeiros, marginais ao núcleo da tradição sacerdotal e
religiosa de Jerusalém, que aderem sem qualquer preconceito à verdade de Jesus.
Paradoxalmente, no
episódio do cego de nascença, aqueles que são a elite, os membros do núcleo da
tradição sacerdotal e religiosa do templo, são completamente obtusos à
realidade manifestada por Jesus nesse mesmo milagre, são incapazes de perceber
a luz que lhes é oferecida. Face a Jesus e à luz que manifesta da verdade a
opção é assumidamente contrária, é uma rejeição liminar.
No capítulo sexto do
Evangelho de São João e depois do milagre da multiplicação dos pães é possível ver
ao modo de um jogo de xadrez como as opções também se vão assumindo, umas mais
equivocadas, outras nem tanto, e no fim de forma clara, ainda que sob a forma
de mistério, que é afinal a única opção possível.
Logo após a
multiplicação dos pães, a multidão procura Jesus, e, tal como ele próprio o
assume, apenas movida pelo interesse material. Estão ali porque foram saciados,
assim como a samaritana pede a Jesus a água viva para não ter que voltar ao
poço. Equivocadamente movem-se e optam por Jesus apenas fundados nos seus
interesses materiais, na sua satisfação e bem-estar, o que conduz
inevitavelmente ao desencontro, a uma não opção.
Diante da explicação
dada por Jesus da realidade do milagre, do seu significado mais profundo,
afinal trata-se da dar a sua carne para que tenham vida, para um grupo de discípulos
a opção é a da rejeição total, pois não só são palavras duras como um desafio a
um dos mais fundamentais interditos da vida humana, a alimentação a partir do
outro igual a mim, o proibido dos proibidos. Afinal como pode ele dar-nos a sua
carne a comer?
Como clímax e
conclusão desta progressão encontramos a pergunta que Jesus coloca aos discípulos,
pois também eles podem querer ir embora. É o momento de fazer uma opção, de dar
uma resposta, de assumir o seguimento, a fé naquele que é o Santo de Deus.
E uma vez mais é Pedro
que responde ao desafio, iluminado, tal como em outro momento e em outra
pergunta, pelo Espirito Santo. Se não foi a carne que lhe permitiu dizer que
Jesus é o Filho de Deus, também agora não é a carne que lhe permite dizer, a
quem iremos se só tu tens palavras de vida eterna.
A resposta e a opção
de Pedro, em nome dos discípulos e de toda a Igreja, é uma opção pelo mistério,
pelo desenvolvimento de um processo com alguém que conhecemos mas está para
além de tudo o que nos é permitido conhecer ou experimentar. Uma vez mais
constatamos, e tal como Jesus tinha dito pouco antes, que é o Pai que nos
concede o dom de nos encontrarmos verdadeiramente com o Filho, com o dom que
nos faz, com a carne que é nosso alimento.
Encontro este que nos
custa a realizar e a assumir, não só porque nos confrontamos com o interdito de
nos alimentarmos uns dos outros, mas também porque apesar do mistério da
incarnação continuamos a ter medo da nossa carne, continuamos a considerá-la como
uma matéria pouco nobre.
E não só esta matéria viu Deus que era muito
boa, como também a assumiu no momento da sua habitação entre os homens. Tal
como São Paulo refere aos cristãos de Éfeso, para a santificar, para a poder
apresentar a si mesmo sem mancha nem ruga, cheia de glória, santa e imaculada.
Desta forma,
purificados pelo baptismo da água e da palavra, não podemos viver exilados do
nosso corpo, da nossa carne, mas conscientes que na sua finitude e fragilidade
se encontra o meio que Deus nos concede para experienciar a vida, enquanto dom
que nos é concedido e dom que concedemos aos outros.
Somos habitação de
Deus, templos do Espirito Santo, um mistério que Jesus iluminou com a
multiplicação dos pães, mostrando-nos que somos alimento uns para os outros, que
a nossa carne não deve estar sujeita à escravatura de qualquer vício ou
idolatria, mas consagrada ao amor que liberta e nos conduz à plenitude.
É grande este
mistério, mas na medida em que o vivemos mais nos aproximamos daquilo que acreditamos,
que na nossa carne veremos a Deus.
1 – Crucifixão de São Pedro, de Luca Giordano, Galeria da Academia, Veneza.
2 – Madalena Penitente, de Nicolas Chaperon, Museus de Belas Artes de Nancy.
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