O episódio que o
Evangelho de São Marcos nos apresentou na leitura que escutámos situa-se entre
dois outros acontecimentos que se desenrolam no meio pagão, na chamada Decápole,
e que o evangelista reuniu de forma, poderíamos dizer, propositada.
O primeiro deles,
quando Jesus se dirige para a Decápole, é o encontro com a mulher siro fenícia
que vem ao seu encontro para que lhe cure a filha. Recordamos deste encontro o
diálogo e a referência aos cachorrinhos que também comem das migalhas que caiem
da mesa dos donos.
O terceiro acontecimentos
é o segundo milagre da multiplicação dos pães, uma repetição em tudo semelhante
ao primeiro que o Evangelho comporta, narrada no capítulo sexto, e cuja diferença
se situa apenas, mas marcadamente, na localização geográfica.
Entre estes dois
acontecimentos encontra-se o milagre da cura do surdo-mudo, estabelecendo como
que uma ponte entre um e outro, ou desenvolvendo uma etapa que afinal é
necessário ultrapassar para passar de uma realidade expressa no primeiro
acontecimento para a realidade do terceiro.
Estes acontecimentos,
e a narração conjunta propositadamente concebida pelo evangelista, vêm ao
encontro de um desafio que se colocou à igreja nascente, aos apóstolos, e que
de certa maneira também se colocou a Jesus na sua pregação, que é o desafio da
dimensão universal da salvação.
No diálogo com a
mulher siro fenícia percebemos a dificuldade de Jesus, até uma certa relutância,
pois não se deve deitar aos cães o pão dos filhos. Nos Actos dos Apóstolos, e
nas Cartas de São Paulo esta dificuldade está também expressa e percebemos como
muitas vezes os apóstolos titubearam entre a aceitação e a recusa da manifestação
da palavra da salvação aos pagãos.
O Evangelho de São Marcos
ao apresentar este conjunto de milagres na região da Decápole vai ao encontro
da dimensão universal da salvação, dimensão que Jesus assume já neste milagre
da cura do surdo-mudo e que é expressa de forma lapidar, total neste Evangelho
de Marcos, pelo centurião romano aos pés da cruz, quando diz “este é
verdadeiramente Filho de Deus”.
Diante das
dificuldades da igreja face ao desafio dos pagãos, São Marcos recolhe nesta
trilogia o exemplo de Jesus, apontando o caminho a seguir assim como a
metodologia a desenvolver. Partimos assim dum apelo, duma necessidade expressa
na voz da mulher siro fenícia, para a acção do anúncio, da evangelização
expressa no gesto de curar a surdez e a mudez, para finalmente encontrarmos a
participação plena na partilha do pão, na celebração da eucaristia.
É o caminho da fé, a passagem
da fome de Deus à satisfação dessa fome, passagem na qual é necessário colocar-se
à escuta para poder dar uma resposta. Resposta que Jesus não exige a nenhum
daqueles que se abeiram dele nesta terra de pagãos, nem da mulher siro fenícia,
nem do surdo-mudo, mas que espera face à sua própria resposta aos pedidos
apresentados por cada um.
O acolhimento
desenvolvido por Jesus das diversas realidades e necessidades deveria provocar
naqueles que se encontravam com ele uma transformação, uma resposta que não se
verbalizava em palavras, mas se tornava concreta e real em mudança de vida, em
conversão de atitudes e comportamentos.
Este é, ainda hoje, o
desafio que se nos coloca quando nos abeiramos de Jesus, quando nos dirigimos a
Deus para apresentar as nossas necessidades ou dificuldades. Necessitamos escutar,
abrir os olhos e os ouvidos, abrir-nos a outras realidades, a uma presença e transcendência
que vai para além de nós e que está presente nos outros e na natureza, nos
quais Deus, o totalmente Outro, se faz presente.
Só de olhos e ouvidos
bem abertos poderemos ver que Deus vem ao nosso encontro, que vem para fazer
justiça como nos recordava a leitura de Isaías, uma justiça que é salvação. Contudo,
e numa sociedade como a nossa, em que somos cada vez mais absorvidos por uma
quantidade tremenda de informação, de palavras, de ruido de fundo, há
necessidade de, por momentos, fechar os olhos e os ouvidos, tornar-se cego e
surdo, para poder escutar a voz de Deus que é suave como a brisa da tarde.
É também este
exercício e esta disciplina diária do silêncio e da cegueira que nos permite
ver o outro tal como ele é, que nos permite não fazer juízos nem acepção de
pessoas, numa sociedade tantas vezes estratificada e assente sobre sinais
exteriores de riqueza ou poder como é a nossa.
O olhar interior, o
silêncio, o encontro consigo próprio, faz-nos ver como todos somos pobres, como
todos necessitamos da graça de Deus que vem ao nosso encontro. Esta interioridade
ajuda-nos a fazer com que as nossas realizações sejam admiráveis, a estarem
marcadas pelo Deus que nos toca no coração.
“Jesus curando um surdo-mudo”, de Bartholomeus Breenbergh, Museu do Louvre.
Como é difícil reconhecer que se é pobre e se necessita "das migalhas da graça" que a mulher implora para a filha!... Naturalmente, porque não é fácil criar o clima de silêncio e de interioridade que nos permite encontrar e acolher Deus. É o esforço que temos que treinar todos os dias...Inter Pars
ResponderEliminarBoa tarde, Onde poderei obter mais informações sobre o modo de vida dos dominicanos e sobre a forma de me tornar dominicano?
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