segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Frei João de Mansilha Juiz de um Livro

Frei João de Mansilha é certamente a figura dominicana do século dezoito mais controversa. Nomeado Vigário Visitador da Província contra a vontade dos irmãos, Qualificador, Inquisidor e Deputado da Inquisição de Lisboa, membro da Real Mesa Censória, provocou amores e ódios, tendo terminado os seus dias no Convento do Pedrógão desterrado à semelhança do seu grande amigo o Marquês de Pombal.
 
Uma passagem rápida pela Arquivo Nacional da Torre do Tombo permitiu-me dar de caras com um parecer que lhe foi pedido para um livro em 1761 pela Inquisição de Lisboa.
 
Foi a 10 de Janeiro de 1761 que foi remetido a Frei João de Mansilha o livro “História del Famoso Predicador Fray Gerundio de Campazas”, juntamente com os pareceres dos Padres Mestres Frei Manuel do Nascimento e Frei Francisco de São Luís, Qualificadores do Santo Ofício, para que ele visse o livro e desse um parecer.
Tal aconteceu no final de Fevereiro e, como pedido pela Inquisição, frei João de Mansilha escreveu o seu Parecer à margem do aviso que lhe tinha sido dirigido.
 
Partilhamo-lo aqui como um testemunho da sua crítica literária assim como das ideias que mais tarde viria a pôr em prática enquanto Vigário e Visitador da Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores.
 
Li com atenção o livro intitulado História del famoso Predicador Frai Gerundio de Campazas; e também as Censuras que do mesmo livro fizeram os Muito Ilustres Reverendos Padres Mestres Frei Manuel do Nascimento, e Frei Francisco de São Luís. Julgo ser muito digna de uma crítica a matéria que envolve o referido livro; sendo certo, que nestes Reinos especialmente nas Províncias fora da Corte, corre e frene uma grande laxidão, neste Santo Exercício, a qual quem pode deve coibir.
Mas julgo também, que o Autor não procurou os meios aptos de estabelecer uma crítica, que fosse útil, sábia, e prudente, sem se fazer ofensiva, e indigna da luz pública. Ele mesmo o confessa nas insignificantes satisfações que dá no seu Prólogo, onde quer persuadir, com o exemplo do famoso João Baptista Moliére, ser justo repreender os vícios, pelo meio de críticas, que os ridiculizem, e ponham em público escárnio aos seus sequazes; como fez discretamente o referido sábio, na famosa comédia intitulada Le Tartufe contra os hipócritas.
Porém é certo, que entre uma, e outra crítica há uma infinita distância; pois que, a de Moliére, primeiramente, é sublime, elevada, e judiciosa; mas a do Autor de Frei Gerundio é muito ingrata, rude, e indigesta, que enfastia, e não recreia; fere o vício, e a virtude juntamente.
Em segundo lugar fala o Autor sem discernimento, que possa instruir; e discorre de forma, que produz muitos escrúpulos para imaginar, que o desígnio do Autor, não seja somente atacar o vício, mas a mesma Religião, e a conduta das vigilantes, e sábias sentinelas, que Deus constituiu para guardar as inexpugnáveis muralhas da Igreja Católica; inconvenientes, que se não encontram, nas obras do famoso Moliére; o que não obstante, todos sabemos quanto custou a este discreto, alcançar que o seu Tartufe visse a luz pública.
Pelo que me conformo com o parecer dos referidos dois Sapientíssimos Qualificadores, parecendo assim a Vossas Ilustríssimas, a cujo alto, e indefectível juízo, arbítrio, protesto conformarme sem hesitação alguma.
São Domingos de Lisboa, 27 de Fevereiro de 1761
Frei João de Mansilha.

 

1 comentário:

  1. As minhas felicitações Frei José Carlos, por lembrar aqui a figura de Frei João de Mansilha da qual tomei conhecimento há anos atrás aquando de estudos sobre a Inquisição em Portugal. Tenho para mim que Frei João de Mansilha foi um homem que viveu o "seu" tempo e o seu grande mérito advem, não do papel que desempenhou na Inquisição e em altos cargos do Estado (chegou mesmo a Conselheiro do Rei D. José I) mas sim da criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 1756, da qual foi o grande pilar. A queda do Marquês de Pombal arrastou-o, obviamente. A perda de protagonismo do influente dominicano atingiu-o até na própria Ordem Dominicana, mas, apesar de tamanhas vicissitudes, deixou forte marca como figura incontornável do Douro, terras do seu berço, e da história do vinho do Porto. Se o “país vinhateiro” foi salvo da ruína, a um Dominicano o deve. Que este apontamento de um "curioso" da História de Portugal lhe suscite interesse idêntico ao prazer que senti ao escrevê-lo. Fraterno abraço, Frei José Carlos.

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