Celebramos o primeiro
domingo da Quaresma, e para muitos de nós aqui presentes é a primeira celebração
em que participamos depois de se ter iniciado este novo tempo litúrgico.
A leitura do Evangelho
de São Lucas, com as tentações de Jesus no deserto, insere-nos no espirito
deste novo tempo, um tempo de penitência, um tempo de combate, um tempo de
deserto, mas igualmente um tempo fortíssimo de esperança, de uma fé forte e
exigente, de uma caridade apurada.
Entrar na Quaresma,
assumir este novo tempo, é dispor-se a algo diferente, a procurar mudar alguma
coisa na nossa vida, é dispor-se a um processo de conversão, que passa por nós
mas também pela acção da graça de Deus, pela acção do Espirito Santo que
acolhemos na nossa vida que desejamos transformar.
Por essa razão não
podemos perder de vista uma das lições que o Evangelho de hoje nos apresenta na
narração das tentações de Jesus, e que é a centralidade da Palavra de Deus na
nossa vida e no combate às tentações. A cada tentação que se lhe apresenta Jesus
responde com o que está escrito na Escritura, com o que é a Palavra de Deus. E esta
centralidade adquire tal dimensão e poder que até o próprio diabo se vai servir
das Palavras de Deus para seduzir Jesus na terceira tentação.
A Quaresma torna-se
assim uma oportunidade para nos encontrarmos com a Palavra de Deus de uma forma
mais intensa, mais profunda, para confrontarmos a nossa vida, gestos, palavras
e sentimentos com a Palavra de Deus e para aferirmos de como ela fundamenta e
alicerça a nossa vida. Aos vários desafios e tentações do nosso quotidiano sabemos
responder com a Palavra de Deus, tal como Jesus respondeu?
Este encontro mais
intenso e aprofundado com a Palavra de Deus na Quaresma, Palavra que está perto
de nós como diz São Paulo na Carta aos Romanos, vai ajudar-nos também a desenvolver
uma outra atitude, uma atitude que muitas vezes nos falta e que é a atitude da
confiança, devemos dizer a virtude da fé, e que as tentações de Jesus nos
colocam no horizonte.
Ao ser tentado no deserto
Jesus mostra-nos que a tentação não é uma realidade da nossa condição pecadora,
mas é uma possibilidade estrutural da obra criada, se assim se pode falar, e
portanto tudo e todos estamos sujeitos à tentação, a essa possibilidade de inverter
os termos da equação, de nos colocarmos no lado oposto do plano, de vivermos de
acordo com a nossa vontade e esquecendo a vontade de Deus.
Esta possibilidade
verifica-se de um modo mais frequente na expressão da primeira tentação que
Jesus sofre, ou seja, na subjugação às nossas necessidades materiais, à
satisfação dos nossos apetites. Quantas vezes não nos deixámos já vencer pela necessidade
de ter mais isto ou aquilo, algumas vezes apenas em função da imagem social, e
deixámos para trás o estar com o outro, o partilhar a nossa presença com
aqueles que nos necessitam e necessitam da nossa palavra ou do nosso abraço?
O homem não vive só de
pão, o homem não se realiza apenas com os bens materiais, por melhores que eles
sejam, ou por maior gratificação que produzam; o homem necessita do outro,
necessita da palavra do outro, porque é na palavra trocada que o homem
verdadeiramente se realiza. Somos criaturas da palavra, feitos à imagem da Palavra
do Pai e sem ela perdemos o sentido da nossa existência, a realização plena a
que estamos destinados.
E porque somos homens
da Palavra e feitos para o diálogo não nos prostramos diante de um outro
qualquer, de uma qualquer realidade ou oferta de poder e glória, tal como se
patenteia como possibilidade na segunda tentação que Jesus sofre no deserto. Essa
subjugação idolátrica afecta-nos na nossa dignidade, na nossa condição de filhos
de Deus, subtrai-nos as vias da plena realização.
Quando Jesus responde
ao demónio que só a Deus é devida a adoração está a colocar-nos face ao
espectro dos valores fundamentais, a desafiar-nos também a nós na
reconfiguração dos nossos valores e prioridades, a não deixar de ter Deus
presente, princípio e fim da nossa existência, fundamento da dignidade e valor
de todas as realidades. O que vale cada coisa vale pelo que desenvolve a obra
de Deus.
E é neste
desenvolvimento da obra de Deus que se joga a terceira tentação de que Jesus é
objecto. O demónio seduz Jesus no sentido da irresponsabilidade, poderíamos dizer
da omissão da sua cota-parte na realização da missão que lhe foi confiada, a
partir da fé da acção amorosa do Pai. Sabendo que o Pai o não deixaria sofrer
poderia fazer tudo o que quisesse.
Esta é uma tentação que
também nós muitas vezes sofremos, e acontece frequentemente em ambiente
religioso, de vivência da fé, pois ficamos à espera que Deus realize a sua
parte omitindo a realização da nossa parte. Quantas vezes em crianças
prometemos a Deus que íamos ser melhores se nos ajudasse no exame da escola,
mas para o qual não estudámos o que devíamos?
Como criaturas de
Deus, seres inteligentes e livres, dignos e capazes de palavra e compromisso,
foi-nos confiada a continuação da realização da obra de Deus, e por essa razão
não podemos tentar a Deus querendo ou pedindo que faça o que nos compete.
Este princípio deve
estar presente também nesta Quaresma, e por isso se queremos fazer algo de
diferente, algo melhor, se queremos mudar alguma coisa na nossa vida, devemos
assumir a nossa responsabilidade e cota-parte de trabalho e esforço.
Se o fizermos, Deus
estará do nosso lado, e na Páscoa da Ressurreição poderemos apresentar as primícias
da nossa terra, o leito e o mel da terra que é a nossa vida e o Senhor nos
confiou para habitar e fazer produzir.
1 – “Jesus no deserto”, de Briton Rivière, Guildhall Art Gallery, Londres.
2 – “A Tentação de Jesus”, de Jacopo Tintoretto, Scuola Grande di San Roco, Veneza.
Caro Frei José Carlos,
ResponderEliminarA liturgia do I Domingo da Quaresma ao propor-nos as tentações de Jesus no deserto é à vida de cada um de nós que se dirige, à nossa condição humana e, como a mesma pode ser iluminada, transformada, como podemos viver na verdade, como nos foi dada a liberdade para escolher.
E, como afirma o homem não vive só de “bens materiais” mas de toda a “Palavra que vem da boca de Deus e da palavra do outro, porque é na palavra trocada que o homem verdadeiramente se realiza”.
Saibamos aproveitar este tempo de Quaresma como uma oportunidade de transformação da vida de cada um de nós, de renovação da fé e da esperança, de encontro ou reencontro intenso com Jesus Cristo, abrindo o nosso coração à Sua Palavra e ao nosso próximo.
Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, profunda, maravilhosamente ilustrada, que nos mostra à luz dos dias de hoje a interpretação das tentações de Jesus e como podemos ultrapassá-las, por salientar-nos que ...” A Quaresma torna-se assim uma oportunidade para nos encontrarmos com a Palavra de Deus de uma forma mais intensa, mais profunda, para confrontarmos a nossa vida, gestos, palavras e sentimentos com a Palavra de Deus e para aferirmos de como ela fundamenta e alicerça a nossa vida.”
Bem-haja. Que o Senhor o ilumine, o abençoe e o guarde.
Um abraço mui fraterno,
Maria José Silva
É verdade. Não podemos imaginar planos, fazer propósitos, estabelecer metas, sem à partida ter em consideração a nossa cota-parte, aquilo que nos é pedido, que depende de nós.É fácil? Também nunca ninguém nos disse que o era...Mas, e a Graça? Inter pars
ResponderEliminarFrei José Carlos
ResponderEliminarGrata,pela maravilhosa e bela partilha da Homilia do I Domingo da Quaresma,tão profunda e rica de sentido,para nossa Meditação neste começo da Quaresma.Obrigada,Frei José Carlos,por ter partilhado connosco.Desejo-lhe uma boa semana com paz e alegria.Que o Senhor o guarde o ilumine e o proteja.Um abraço fraterno.
AD