Estamos a celebrar o
segundo domingo da Quaresma e as leituras que escutámos, de modo particular a
leitura do Livro do Génesis e o Evangelho de São Lucas, colocam diante de nós
uma realidade profundamente humana, um desafio que nos toca a todos face aos
projectos a que nos lançamos. É a realidade da impaciência e o desafio da
esperança paciente.
Iniciámos o projecto
da caminhada quaresmal, e como dizíamos no domingo passado, um processo de
combate, um tempo de conversão em que nos dispomos a estar mais atentos quer à
nossa relação com Deus quer à nossa relação com os irmãos.
Contudo, e tal como
acontece com tantos outros projectos e desafios da nossa vida, desejamos ver rapidamente
os resultados, como se os esforços aplicados fossem automaticamente reproduzidos
em alterações, em novas realidades. Não temos tempo para esperar, não desejamos
aguardar.
E no entanto a
natureza, nos seus ciclos, recorda-nos todos os dias que há um tempo para
semear e um tempo para colher, um tempo para o treino disciplinado e um tempo
para o combate eficaz. Há necessidade de tempo, há necessidade de confiar e de
esperar.
É esta confiança paciente
que Deus pede a Abraão, quando este pergunta sobre o modo de realização da
promessa feita. Como saber que vai de facto possuir a terra que Deus lhe
prometeu, que a sua descendência será tão numerosa como as estrelas do céu?
Abraão está já
envolvido na realização da promessa, ela desenrola-se aos seus olhos, mas deseja
vê-la completa, cumprida na sua totalidade. Podemos dizer que Abraão está
impaciente, que já está cansado das promessas e portanto exige um pouco mais de
Deus, uma acção mais eficaz.
Diante desta exigência
e impaciência, Deus volta novamente a comprometer-se e a sua passagem como fogo
pelos animais sacrificados é o selar desse novo compromisso, da aliança que
estabelece, e de uma forma unilateral, pois Abraão não é comprometido no sacrifício.
Sabemos que no mundo
semita antigo as alianças eram seladas pelo sacrifício de animais e que os dois
intervenientes se responsabilizavam pela sua parte do compromisso com as
metades dos animais sacrificados, assumindo desta forma que o outro lhe poderia
dar a mesma sorte se faltasse ao prometido, se quebrasse a aliança.
Com Abraão apenas Deus
se compromete na aliança; face à fé que Abraão já manifestou apenas se exige
confiança e esperança no prometido, poderíamos dizer um pouco de paciência para
deixar Deus fazer o que lhe compete.
E é esta fé, esta
paciência confiante que também nos é pedida no nosso dia a dia e na nossa
caminhada quaresmal. Deus está ao nosso lado e deseja viver connosco a
realização dos nossos propósitos, mas para que tal aconteça temos que nos
dispor, temos que nos dar tempo, porque a obra não é fácil e muitas vezes as
circunstâncias e a rotina também não facilitam a acção do Espirito Santo.
Necessitamos acreditar
e esperar, necessitamos confiar, manter um treino constante e disciplinado na
paciência e na disponibilidade a que acção de Deus se desenvolva, necessitamos
não cruzar os braços e desistir.
Mas, porque não é
fácil, necessitamos igualmente um reforço vitamínico, uma degustação do que nos
espera e está reservado, da realidade a que estamos destinados se soubermos
aguentar, se não desanimarmos face ao tempo e às dificuldades. É esse reforço e
degustação que experimentamos no momento da transfiguração de Jesus no monte
Tabor.
Face aos perigos do
anúncio da paixão e da morte, face ao perigo do desânimo e da impaciência,
Jesus manifesta aos discípulos a glória que lhe é natural, a glória que eles poderão
contemplar em plenitude se conseguirem ultrapassar todas as provas que se
perspectivam no horizonte.
Também nós, como
cidadãos do céu, como nos diz São Paulo na Carta aos Filipenses, poderemos não
só contemplar esta glória, mas vivê-la plenamente se tivermos a paciência e a
esperança para permanecer firmes face aos desafios e ao tempo que leva à
realização da promessa.
A fé nas palavras de
Jesus, a esperança na transformação do nosso corpo miserável em corpo glorioso,
deve levar-nos a permanecer firmes e a lutar com paciência contra tudo aquilo
que nos afasta e nos encerra à vontade de Deus, à sua promessa fiel, pois Deus
não pode deixar ser fiel ao que promete. E espera que nós acreditemos na sua
palavra para realizar a promessa!
A narração da
transfiguração de Jesus, neste segundo domingo da Quaresma, serve assim para
não desanimarmos face às dificuldades, aos embates que pudemos sentir ao iniciarmos
uma caminhada nova, um novo tempo e propósito de conversão. Mas serve
igualmente para não nos considerarmos satisfeitos com o que pudemos ter feito
ou alcançado, com o que Deus pode ter realizado em nós.
A experiência da
transfiguração é para nos levar mais longe, é para despertar em nós um desejo
impaciente de mais e melhor, é para não nos deixar adormecer face ao que a
graça de Deus pode já ter realizado em nós.
Tal como aconteceu com
Abraão, o desenrolar e desenvolvimento da promessa da parte de Deus é para nos
alavancar a novos desafios, a uma plenitude e radicalidade que passa pela
disponibilidade de entregar o próprio filho, ou, como no caso dos discípulos, de
saber perder o Mestre no qual depositámos as nossas expectativas humanas para o
reencontrar como Filho de Deus glorioso pela vida resgatada à morte.
Que estes dias
quaresmais sejam dias de esperança e confiança, de fé na Palavra que não se
engana nem nos engana.
Ilustração:
1 – “Transfiguração”,
de Meister des Universitats-Altars, Gemäldegalerie Alte Meister, Kassel.2 – “Deus aparecendo a Abraão em Siquém”, de Paulus Potter, The-Athenaeum.org
Frei José Carlos
ResponderEliminarLi e reli com muito interesse esta Homilia do II Domingo da Quaresma,tão profunda e tão esclarecedora para nossa reflexão.Toda ela é duma beleza maravilhosa!Como nos diz o Frei José Carlos,a experiência da transfiguração é para nos levar mais longe,é para despertar em nós um desejo impaciente de mais e de melhor,é para não nos deixar adormecer face ao que a graça de Deus pode já ter realizado em nós.
Saibamos nós viver estes dias quaresmais com mais esperança e confiança,de fé na Palavra que não se engana nem nos engana.Obrigada,Frei José Carlos,pela beleza desta partilha que muito gostei!É uma grande ajuda para nós, para prosseguimos esta caminhada quaresmal,numa reflexão mais profunda e agradeço-lhe a beleza da ilustração espectacular! Que o Senhor o ilumine o ajude e o proteja.Desejo-lhe uma boa semana com paz e alegria.Bem-haja.
Um abraço fraterno.
AD
"Desafio de esperança paciente"não é o que Deus nos lança quando, cada dia, nos aguarda amorosamente, oferecendo novos dons e esperando que paremos para O ouvir? Inter pars
ResponderEliminarQue este tempo de caminhada para a Páscoa seja uma sucessão de "dias de esperança e confiança, de fé na Palavra" e de tranquilidade e paz, é o que peço cada manhã
ResponderEliminarCaro Frei José Carlos,
ResponderEliminarSaboreeei com muito agrado a Homilia que teceu. Como afirma, iniciámos a caminhada quaresmal e estamos impacientes para perceber o que vamos transformando de um modo mais atento na nossa relação com Deus e com os outros. Na realidade, como em tudo na vida continuamos em passo acelerado, sem tempo, paciência, confiança e esperança para vivermos um processo que fazemos ao longo da vida, no quotidiano, que não se extingue na chegada à Páscoa do Senhor!
Como salienta...” Não temos tempo para esperar, não desejamos aguardar. (...) Há necessidade de tempo, há necessidade de confiar e de esperar. (...) Necessitamos acreditar e esperar, necessitamos confiar, manter um treino constante e disciplinado na paciência e na disponibilidade a que acção de Deus se desenvolva, necessitamos não cruzar os braços e desistir.”...
Um grande obrigada, Frei José Carlos, pela partilha desta bela e profunda Homilia, que nos leva a ir mais além no nosso desejo de transformação de uma vivência impaciente, ao “desafio da esperança paciente”, reforçados pela ...”degustação que experimentamos no momento da transfiguração de Jesus no monte Tabor.”...
Que o Senhor o ilumine, o abençoe e o guarde.
Continuação de boa caminhada quaresmal.
Um abraço mui fraterno,
Maria José Silva