A leitura do Evangelho
de São Marcos que lemos neste domingo tem uma intrínseca relação com a primeira
leitura retirada do Livro do Levítico, pois o que acontece no Evangelho
aproxima-se e distancia-se do que está prescrito no Levítico.
É fácil perceber as
transgressões que acontecem, tanto da parte do leproso como da parte de Jesus,
pois se um se aproxima violando a lei que o obrigava a andar afastado das
pessoas, a ser um excluído socialmente, o outro transgride a lei tocando no
leproso, tornando-se por esse mesmo acto um marginal, alguém que é obrigado a
excluir-se.
Ainda que o
evangelista não nos diga que é por esta razão que Jesus já não pode entrar nas
cidades, a verdade é que não deixa de apontar a impossibilidade de Jesus, a
exclusão em que tinha incorrido, e portanto a permanência em lugares desertos
nos quais as multidões o procuravam.
Estamos assim diante
de um acontecimento que partindo de um gesto extravagante, podemos até supor
inopinado, nos conduz ao grande mistério da vida de Jesus. O Filho de Deus vem
ao encontro do homem enfermo no seu pecado, na sua lepra espiritual, para a
assumir e o libertar, reintegrando-o na profunda relação de amor com Deus. O profeta
Isaías, ao falar do Servo sofredor, tinha já apresentado esta dimensão simbólica
da lepra assumida pelo servo de Deus.
Compreende-se assim a recomendação
de Jesus ao leproso de que se apresente ao sacerdote, pois não se trata apenas
de uma recomendação religiosa, de um cumprir do estipulado pela lei, mas
através desse cumprimento o aferir a graça alcançada, a manifestação da presença
do próprio Deus entre os homens. O sacerdote aparece assim aqui como a
referência que dá a dimensão teológica ao acontecimento, à cura realizada.
O gesto de Jesus para
com o leproso é bastante importante para cada um de nós e por isso São Paulo também
o assumiu quando diz que o Filho se fez pecado para nos libertar do pecado. Estamos
assim diante de um mistério que nos alcança a todos, que nos envolve em toda a
nossa existência. Deus vem ao nosso encontro e assume as nossas misérias, as
nossas debilidades, o nosso próprio pecado, para nos libertar, para nos
reintegrar na relação divina de cada vez que nos afastamos dela, que a
quebramos com a nossa vontade e orgulho, com o nosso egocentrismo relacional.
A questão que se
coloca, e que nos devemos colocar, é a da nossa disponibilidade para a cura,
para sairmos da nossa marginalidade para irmos ao encontro de Cristo, ao
encontro daquele que nos ilumina nas nossas trevas e nos cura das nossas
enfermidades. Estamos nós verdadeiramente dispostos a sair da nossa situação,
da nossa exclusão confortável, para nos lançarmos numa nova vida, numa situação
que nos interpela e impele a uma constante mudança, a um combate diário?
Outra questão que este
acontecimento da vida de Jesus nos coloca é a do acolhimento do outro na sua
fragilidade, no seu pecado, nas suas incapacidades tantas vezes para nós
provocadoras de uma resposta de caridade. O texto do Evangelho de São Marcos
diz-nos que Jesus se compadeceu daquele leproso. Quantas vezes nos deixamos
compadecer pelas fraquezas dos outros, pelas duas debilidades e infidelidades?
A nossa atitude mais
frequente é a da crítica, a da marginalização e exclusão, pois é muito mais
fácil que deixarmo-nos envolver, deixarmo-nos fazer solução e companheiros para
o outro no seu processo de mudança e de saída da sua debilidade e fragilidade. Custa-nos
muito fazermo-nos para os outros, ser verdadeiramente misericordiosos como Deus
que tomou o nosso lugar.
E mais grave ainda é
quando a nossa atitude provoca o escândalo, como tantas vezes acontece. Não só
não somos capazes de ajudar o outro, de lhe estender a mão, como ainda somos
capazes de lhe provocar o descrédito e o desânimo. São Paulo alerta-nos para
isto na leitura que escutámos da Segunda Carta aos Coríntios.
Face ao perigo do escândalo
por causa de se comer carne imolada aos ídolos, São Paulo adverte os cristãos
de Corinto para que tenham cuidado, para que pensem mais nos outros, na forma
como os outros podem ver e interpretar o gesto ou a atitude, afinal de contas o
que está em jogo é o bem de todos e a glória de Deus.
Por feliz coincidência
celebramos neste domingo o Dia Mundial do Doente, o que nos deve fazer pensar
não só nos doentes e na forma como os tratamos, mas também à luz do Evangelho
na forma como cuidamos aqueles que não são doentes fisicamente mas sofrem no
seu coração o mal da derrota e do desânimo, o mal do pecado e da incoerência de
vida, a lepra da sua vida marginal e incapacitante.
Estamos nós dispostos
a aproximarmo-nos desses homens e mulheres, sabendo que não somos melhores, que
também temos as nossas fraquezas, mas conscientes de que só em caminho e em
conjunto podemos chegar ao fim desejado por Deus, que é a sua glória
manifestada nos homens e mulheres vivos de verdade?
Que a divina ousadia e
coragem de Jesus nos animem a estender a mão, a ir ao encontro do outro, a
deixarmo-nos tocar pela sua lepra, para que nenhum de nós se sinta só e para
que sejamos verdadeiros imitadores de Cristo como São Paulo o desejou que
fossemos.
1 – A cura do leproso, de Niels Larsen Stevns, Skovgaard Museum, Viborg, Dinamarca.
2 – A cura do leproso, (detalhe), de Francesco Morandini, Il Poppi, Museu de São Marcos, Florença.
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