domingo, 18 de fevereiro de 2018

Homilia do I Domingo da Quaresma Ano B

Neste primeiro domingo da Quaresma o Evangelho apresenta-nos as tentações de Jesus, e estamos já tão habituados a este acontecimento que nem reparamos como o Evangelho de São Marcos se distancia nesta narração dos Evangelhos de São Mateus e São Lucas. O Evangelho de São Marcos diz-nos apenas que Jesus era tentado, não nos especificando quais as tentações que sofreu, como o fazem São Lucas e São Mateus que nos apresentam três tentações.
Esta simplicidade de São Marcos, a sua narração sintética, como já temos vindo a ver nos domingos anteriores, não é no entanto despojada de sentido, bem pelo contrário, ela quer colocar em evidência uma outra dimensão, uma outra face de Jesus, ou seja, procura uma vez mais mostrar como Jesus é o Filho de Deus, aquele no qual os seus interlocutores e leitores devem acreditar.
Desde o primeiro momento que a resposta à questão quem é este, está patente, Jesus é o Filho de Deus; mas torna-se necessário desenvolvê-la, especificá-la e fazê-la credível em todos os seus aspectos e dimensões àqueles que a desejam obter.
Assim, São Marcos não só coloca no momento do baptismo o Espirito a anunciar que aquele Jesus é o Filho muito amado do Pai, como nos diz que é o mesmo Espirito que conduz Jesus ao deserto, como se a experiência do baptismo não estivesse completa, como se fosse necessário mostrar algo mais do que já se tinha anunciado.
E de facto é isso que acontece com Jesus e com todos nós baptizados. Podemos dizer, usando as palavras da Carta de São Pedro que lemos, que se torna necessário evidenciar o compromisso para com Deus, que se torna necessário fazer a experiência da dimensão divina na nossa dimensão humana.
O ser filho muito amado de Deus, como todos somos, é algo que exige de nós uma atitude, um compromisso, uma vida diferente, um viver constante de combate entre as nossas forças mais negativas, mais inviabilizantes da nossa realização plena, e a graça divina, a força de vivermos para a plenitude como filhos de Deus.
Jesus vai ao deserto fazer essa experiência da passagem do Deus todo-poderoso, do Deus que tudo controla e ao qual tudo se submete, para o Deus que ama, que se entrega e aniquila, que se faz pequenino e pobre, poderíamos dizer como Maurice Zundel, o Deus mendigo. As três tentações que os evangelistas São Lucas e São Mateus nos apresentam nesta experiência do deserto são uma metáfora dessa grande tentação que afinal todos os homens sofrem, e hoje nós mais que nunca, que é a tentação de querer tudo, agora e de forma definitiva.
É a tirania do imediato absoluto, que não nos permite nem apreciar verdadeiramente o que temos e somos, nem nos deixa tempo para perceber como a vida e todas as realizações são um devir no tempo e no espaço.
São Marcos ao apresentar-nos uma experiência de Jesus no deserto diferente, mais centrada no Espirito e na concepção paradisíaca da vida, com essa imagem da convivência de Jesus com os animais e a ser servido pelos anjos, imagem que foi tão cara ao profeta Isaías, quer dizer-nos que mais importante que as tentações, que o que nos pode seduzir e distrair de Deus, é a sua presença, é a sua oferta de uma vida plena, é a dimensão primordial da intimidade com Deus. O combate contra o mal tem a vitória assegurada, e Jesus é a primeira testemunha disso.
Por esta razão, Jesus sai do deserto para ir anunciar que o tempo se cumpriu, que o Reino de Deus está próximo, e portanto torna-se necessário arrepender-se e acreditar no Evangelho, nessa boa nova que nos acompanha desde a criação, nessa aliança de paz que Deus estabeleceu com todos os homens e todos os seres após o dilúvio, como nos diz a leitura do Livro do Génesis. O homem não está sozinho a combater o mal, Deus está com ele e dá-lhe forças para o poder fazer com coragem e audácia.
Ao iniciarmos a Quaresma, a nossa caminhada de preparação para a Páscoa, podemos ser tentados a desanimar, logo após o primeiro ensaio, pois confrontamo-nos com as nossas fraquezas e infidelidades, com a nossa fraca vontade e as dificuldades de uma mudança, de uma conversão. Contudo, face a essa tentação, de tudo e já agora e bem feito, não podemos soçobrar, mas bem pelo contrário devemos olhar os nossos pequenos esforços com esperança e confiança pois Deus combate connosco.
Que o nosso propósito desta primeira semana da Quaresma seja um propósito de humildade, que não deseja nem aspira a coisas grandes e altas, a uma conversão mágica, mas que se dispõe a lutar com confiança permitindo que a graça de Deus também faça a sua parte em cada um de nós, tal como está expresso nesta oração encontrada numa leitura de viagem.
Senhor, o problema é teu, é por tua culpa que eu me encontro nesta situação. Desenrasca-te. Ocupa-te como deve ser, pois não é a mim que me compete. Tu mandaste-me andar sobre o mar, portanto és tu que tens que fazer com que o mar me suporte. (Adrien Candiard)

 
Ilustração:
1 – “As tentações de Jesus”, pintura de Arcabas, igreja de Saint Hugues le Chartreuse, Grenoble.
2 – “Baptismo e tentação de Jesus”, de Paolo Veronese, Pinacoteca de Brera.

1 comentário:

  1. Às vezes estamos esquecidos...onde está a vida diferente, o compromisso, a atitude de combate permanente entre as forças negativas que nos invadem e a graça que recebemos no Baptismo? E Deus quer-nos Seus filhos bem amados... Há toda uma Quaresma para viver tudo isto. Inter pars

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