Como diria o padre
Dâmaso, que habitualmente costuma presidir a esta celebração dominical, temos
diante de nós três textos fantásticos, três leituras que nos confrontam com
realidades que frequentemente nos custam a assumir e a viver, três leituras que
são profundamente provocadoras no nosso processo de conversão e fidelidade à
palavra de Jesus.
Assumimos que a
primeira provocação nos é colocada pelo texto do Evangelho de São Marcos, um
texto e uma provocação que se tornam mais visíveis quando temos em conta todo o
contexto que o precede.
O capítulo nono do
Evangelho de São Marcos, no qual se insere o excerto que lemos nesta
celebração, inicia-se com a transfiguração de Jesus, ao qual acresce
imediatamente a recomendação do sigilo, de nada do sucedido ser comentado até à
ressurreição dos mortos. Recomendação rapidamente violada, uma vez que os
discípulos discutem entre si o que significaria ressuscitar dos mortos.
É no contexto desta
discussão que os discípulos são confrontados com um pedido de cura, com um jovem
epiléptico que lhes é apresentado para que o curem, e ao qual não conseguem
fazer nada, tendo que Jesus intervir uma vez mais para que a cura e o milagre
aconteçam. É na intimidade de casa que ficam a saber a causa da sua impotência
face à situação do jovem epiléptico, a falta de jejum e oração.
Mas, como se isto não
bastasse para os deixar em completa confusão, perdidos diante do que viam,
Jesus anuncia-lhes ainda o seu fim trágico, começa a prepará-los para a sua
condenação e morte, que se vai perspectivando no horizonte face à missão que
tinha assumido, face a essa consciência, de que o Livro da Sabedoria nos fala,
de que o justo é sempre uma afronta e uma acusação para aqueles que não procedem
de acordo com a justiça e a verdade.
Compreendemos assim a
discussão dos discípulos no caminho, porque não só tinham as acções de Jesus,
mas também as suas palavras, a intimidade que viviam com o Mestre mas
igualmente o seu distanciamento, as expectativas humanas de poder e realização
e a ameaça de frustração dessas expectativas. Como não discutir quem seria o
maior, quem seria o mais apto para realizar os mesmos milagres, o que tinha
mais poder, até o que lhe poderia suceder no caso de se concretizar a ameaça de
morte?
A provocação do
Evangelho encadeia-se neste aspecto com a provocação da leitura da Carta de São
Tiago, na referência às paixões que desenvolvem invejas, rivalidades, conflitos
e por fim o próprio processo de eliminação do outro que se torna uma ameaça ou
um obstáculo à satisfação das paixões. Os discípulos encontravam-se nesta
situação, neste perigo, manifestando o seu lado mais obscuro, e para nossa
grande surpresa o texto do Evangelho não tem qualquer pudor em colocar em
evidência a debilidade humana dos discípulos.
Poderíamos assumir
esta debilidade humana, este lado negro da nossa condição, como uma não pequena
provocação do Evangelho, pois obriga-nos a olhar para as nossas paixões, para o
que nos move nas rivalidades que criamos, nos conflitos que geramos, nos
processos de morte em que nos envolvemos. Contudo, a grande provocação do
Evangelho é a operada por Jesus ao colocar diante dos discípulos, e afinal
diante de cada um de nós, uma criança como modelo de grandeza, como exemplo do
verdadeiro serviço ao Reino de Deus.
Aquele que quiser ser
o maior deve assim assumir a sua pequenez, as suas debilidades e fraquezas, os
seus defeitos e paixões, deve ter consciência delas para que não só as possa
combater, mas sobretudo colocar diante de Deus, de modo a que até das coisas
menos boas Deus se possa servir para realizar as boas.
Esta é a sabedoria que
vem do alto, uma sabedoria que é pura, pacífica, generosa, cheia de
misericórdia, e que deve ser o grande objecto das nossas preces, pois não está
em causa a satisfação das nossas paixões e desejos, mas a sua transformação, a
sua adequação ao fim último a que estão verdadeiramente destinados.
Face a esta realidade
e dinâmica percebemos facilmente que ser servo, ser como uma criança, não é
para alguns momentos, não é uma situação agendável para algumas circunstâncias,
mas que é um estado de vida, uma condição de vida, uma constante que deve
permanecer em todas as circunstâncias.
Profunda provocação do
Evangelho que nos alcança a todos, quer nos momentos de contemplação no alto do
Tabor, quando o Senhor se transfigura diante dos nossos olhos, quer nos
desafios de milagres, quando nos apelam a uma acção de solidariedade ou
transformação da vida do outro, quer no silêncio e na solidão do calvário,
quando é necessário permanecer até ao último suspiro completamente confiantes
na presença de Deus Pai.
Confiança que nos
anima e fortalece mas provoca os outros, tanto para a sua partilha como para a
sua prova, pois o homem justo, o homem de paz, aquele que vive com a sabedoria
do alto é sempre um aguilhão para os outros, que o podem querer seguir, imitar,
mas que também se podem querer ver livres dele e da sua provocação.
A vida sem hipocrisia,
verdadeira, alicerçada na nossa condição humana e iluminada pela encarnação do
Filho de Deus, fortalecida pela confiança de que o Senhor não deixa de nos
socorrer em todos os momentos, manifesta a nossa condição de filhos de Deus, o
serviço do Reino a que fomos convidados a confiar as nossas forças e
capacidades. Que as arrisquemos viver tal como as crianças diante de um jogo
novo!
1 – “Cristo e a criança”, de Carl Bloch, Igreja de São Nicolau, Holbaek, Dinamarca.
2 – “Órfãos”, de Thomas Benjamin Kennington, Tate Britain Gallery.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarAo ler e reler o texto que propôs para reflexão da Homilia do XXV Domingo do Tempo Comum,tâo profundo e muito esclarecedor, fiquei maravilhada com a beleza da Meditaçâo e pela ilustraçâo maravilhosamente bela que muito gostei.Obrigada, Frei José Carlos, que o Senhor o ilumine o proteja e o abençôe.Continuaçâo de uma boa semana.Uma boa tarde e um bom descanso.
AD