domingo, 27 de setembro de 2015

Homilia do XXVI Domingo do Tempo Comum

As palavras que acabámos de escutar no Evangelho podem nos ter chocado, podem provocar o nosso escândalo, pois a perda de uma parte de nós, a mutilação de uma qualquer parte de nós, não é agradável, não faz sentido ao nosso sentimento e percepção da totalidade e plenitude. Fomos feitos para ser completos e procuramos toda a vida completar-nos.
As palavras de Jesus vão no entanto no sentido desta plenitude e totalidade, poderíamos dizer da perfeição para que fomos criados, e por isso, mais que nos chocarem, as palavras radicais de Jesus deviam despertar em nós a profunda verdade do nosso ser, a necessidade de opções que são muitas vezes violentas para que possamos viver plenamente a vida.
Para captarmos a amplitude desta necessidade não podemos perder de vista um acontecimento que nos é relatado neste mesmo capítulo do Evangelho de São Marcos e ao qual já fiz referência no domingo passado, e que é a apresentação aos discípulos de um jovem epiléptico e que eles não conseguem curar.
Hoje, contudo, os discípulos são confrontados com alguém que não pertence ao grupo, mas que no entanto é capaz de expulsar os demónios em nome de Jesus, coisa que eles não foram capazes de fazer com o jovem epiléptico. Aparece assim uma ameaça às suas pretensões, ao poder que julgavam que apenas a eles estava destinado, ao monopólio religiosos a que se consideravam destinados pelo chamamento de Jesus.
Esta mesma questão está também presente na leitura do Livro dos Números que escutámos, pois Josué anuncia a Moisés que há dois homens a profetizar no acampamento, homens que não tinham comparecido ao chamamento e portanto surgem aos olhos de Josué como usurpadores, como ilegais, como uma concorrência desleal.
A esta visão restrita, redutora, açambarcadora, tanto Moisés como Jesus opõem uma visão universal, alargada, livre, pois têm consciência de que o ministério da profecia como das curas é um dom de Deus, é uma capacidade que não provem do próprio que a exerce mas lhe é confiada por alguém superior. Moisés alegra-se com a possibilidade de todo o povo profetizar e Jesus intui que aquele homem tem afinal já consigo uma relação de fé assente sobre o nome.
E à luz desta relação qualquer gesto, qualquer palavra ou atitude, como o oferecimento de um simples copo de água, adquire uma outra dimensão, entra na órbita da acção divina do próprio Filho de Deus pelo poder inerente ao nome de Jesus. Não há assim qualquer possibilidade de concorrência, de exercício ilegal, porque tudo concorre para o bem, tudo concorre para a prossecução do projecto de Deus em sintonia e complementaridade.
Contudo, há a possibilidade de não ser assim, há a tentação do monopólio, a tentação do encerramento e privatização dos dons, dos diversos meios e instrumentos que Deus coloca ao serviço do homem para a realização do seu projecto de vida e para a construção do Reino de Deus, tentação egoísta de que os discípulos são um testemunho quando se queixam daquele que cura em nome de Jesus mas não pertence ao grupo.
E é contra esta tentação que Jesus fala, quando diz aos discípulos que é preferível entrar no Reino dos Céus só com uma mão, um pé, ou um olho, a ser lançado na geena com os dois pés, as duas mãos ou os dois olhos. De que lhes serve a pretensão de poder curar se apenas é para satisfação e glória pessoal? Afinal de que serve ao homem ganhar todo o mundo se perder a sua alma?
As mãos, os pés e os olhos são membros do nosso corpo e membros fundamentais para a nossa relação com os outros, e por essa razão Jesus os utiliza neste aviso que deixa à navegação, à construção do projecto de vida e do seu seguimento.
As mãos, feitas para dar, para entregar aos outros, para acariciar, para construir, podem ser desviadas do seu fim, podem servir a violência, podem matar, podem também reter aquilo que somos chamados a partilhar ou a confiar aos outros. As mãos que não servem ao seu fim devem assim ser convertidas e para tal necessitam de um corte com aqueles desejos que inviabilizam a sua realização plena.
Os pés, feitos para nos levarem ao encontro do outro, são os membros da nossa autonomia e liberdade, da nossa independência, e por isso quando não servem esse fim, quando inviabilizam o seguimento de Jesus, o seguir em frente ao encontro do irmão, quando nos estacam ou escravizam, devem ser purificados, cortados naquilo que os impede e prende.
Os olhos, feitos para apreciarem as belezas da criação divina, servem muitas vezes para só olhar o mal, o que está errado, os defeitos, para uma apreciação errada da obra da criação nos seus mais diversos elementos. Quantas vezes os olhos não são o instrumento que nos levam aos juízos errados sobre os outros, às faltas de caridade porque faltamos à justiça.
Outras vezes os olhos vedam-se ao que está ao nosso lado, como na parábola do pobre Lázaro que nunca foi visto pelo rico à sua porta senão depois de ter morrido e sentido o fogo da condenação. São estes olhos que se torna necessário arrancar, para ver o outro tal como ele é, filho de Deus e amado nas suas limitações e fraquezas, para ver toda a beleza de Deus espelhada na sua obra.
As palavras radicais de Jesus, confrontadas com a atitude egoísta dos discípulos e a liberdade dos dons de Deus, desafiam-nos na nossa liberalidade, na nossa universalidade, na nossa capacidade de perceber que tudo está ao serviço de Deus e que neste serviço devemos eliminar, por muito que nos custe, o que desperta em nós a inveja e a rivalidade que nos isolam e afastam do caminho em que Jesus nos precede para a plenitude.

 
Ilustração:
1 – Jovem possesso, detalhe “Transfiguração” de Raffaelo, Pinacoteca Vaticana.
2 – “A mão de Deus”, de Auguste Rodin, Rhode Island School of Design Museum.

5 comentários:

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  2. Hoje gostei particularmente da homilia! Obrigada!

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  3. Grata, Caro Frei José Carlos, pela partilha da Homilia que teceu, esclarecedora e que nos desinstala, por recordar-nos que ..."tudo está ao serviço de Deus e que neste serviço devemos eliminar, por muito que nos custe, o que desperta em nós a inveja e a rivalidade que nos isolam e afastam do caminho em que Jesus nos precede para a plenitude." Obrigada, pela bela escultura de Auguste Rodin "A Mão de Deus". Bem-haja. Que o Senhor o ilumine e abençoe. Um abraço fraterno,

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  4. Mais uma brilhante homilia bem exemplificativa do agir "in persona Christi" a que o Frei José Carlos já nos habituou. Ocorre-me neste momento invocar o Salmo 119;105 : "A tua palavra é farol para os meus passos e luz para os meus caminhos."
    Que Deus o abençoe, Frei José Carlos.
    Um fraterno abraço.

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  5. Frei José Carlos,

    Fiquei maravilhada com a Homilia profundamente bela,esclarecedora,Meditação magnífica. Gostei muito da ilustrção,beleza da escultura . Que Deus o ilumine o abençõe e o proteja.Continuação de uma boa semana.Um bom descanso.Bem-haja,Frei José Carlos.
    AD

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