As palavras que
acabámos de escutar no Evangelho podem nos ter chocado, podem provocar o nosso
escândalo, pois a perda de uma parte de nós, a mutilação de uma qualquer parte
de nós, não é agradável, não faz sentido ao nosso sentimento e percepção da
totalidade e plenitude. Fomos feitos para ser completos e procuramos toda a
vida completar-nos.
As palavras de Jesus
vão no entanto no sentido desta plenitude e totalidade, poderíamos dizer da
perfeição para que fomos criados, e por isso, mais que nos chocarem, as
palavras radicais de Jesus deviam despertar em nós a profunda verdade do nosso
ser, a necessidade de opções que são muitas vezes violentas para que possamos
viver plenamente a vida.
Para captarmos a amplitude
desta necessidade não podemos perder de vista um acontecimento que nos é
relatado neste mesmo capítulo do Evangelho de São Marcos e ao qual já fiz
referência no domingo passado, e que é a apresentação aos discípulos de um
jovem epiléptico e que eles não conseguem curar.
Hoje, contudo, os
discípulos são confrontados com alguém que não pertence ao grupo, mas que no
entanto é capaz de expulsar os demónios em nome de Jesus, coisa que eles não
foram capazes de fazer com o jovem epiléptico. Aparece assim uma ameaça às suas
pretensões, ao poder que julgavam que apenas a eles estava destinado, ao
monopólio religiosos a que se consideravam destinados pelo chamamento de Jesus.
Esta mesma questão está
também presente na leitura do Livro dos Números que escutámos, pois Josué
anuncia a Moisés que há dois homens a profetizar no acampamento, homens que não
tinham comparecido ao chamamento e portanto surgem aos olhos de Josué como
usurpadores, como ilegais, como uma concorrência desleal.
A esta visão restrita,
redutora, açambarcadora, tanto Moisés como Jesus opõem uma visão universal,
alargada, livre, pois têm consciência de que o ministério da profecia como das
curas é um dom de Deus, é uma capacidade que não provem do próprio que a exerce
mas lhe é confiada por alguém superior. Moisés alegra-se com a possibilidade de
todo o povo profetizar e Jesus intui que aquele homem tem afinal já consigo uma
relação de fé assente sobre o nome.
E à luz desta relação
qualquer gesto, qualquer palavra ou atitude, como o oferecimento de um simples
copo de água, adquire uma outra dimensão, entra na órbita da acção divina do
próprio Filho de Deus pelo poder inerente ao nome de Jesus. Não há assim
qualquer possibilidade de concorrência, de exercício ilegal, porque tudo
concorre para o bem, tudo concorre para a prossecução do projecto de Deus em
sintonia e complementaridade.
Contudo, há a
possibilidade de não ser assim, há a tentação do monopólio, a tentação do
encerramento e privatização dos dons, dos diversos meios e instrumentos que Deus
coloca ao serviço do homem para a realização do seu projecto de vida e para a
construção do Reino de Deus, tentação egoísta de que os discípulos são um
testemunho quando se queixam daquele que cura em nome de Jesus mas não pertence
ao grupo.
E é contra esta tentação
que Jesus fala, quando diz aos discípulos que é preferível entrar no Reino dos
Céus só com uma mão, um pé, ou um olho, a ser lançado na geena com os dois pés,
as duas mãos ou os dois olhos. De que lhes serve a pretensão de poder curar se
apenas é para satisfação e glória pessoal? Afinal de que serve ao homem ganhar
todo o mundo se perder a sua alma?
As mãos, os pés e os
olhos são membros do nosso corpo e membros fundamentais para a nossa relação
com os outros, e por essa razão Jesus os utiliza neste aviso que deixa à
navegação, à construção do projecto de vida e do seu seguimento.
As mãos, feitas para
dar, para entregar aos outros, para acariciar, para construir, podem ser
desviadas do seu fim, podem servir a violência, podem matar, podem também reter
aquilo que somos chamados a partilhar ou a confiar aos outros. As mãos que não
servem ao seu fim devem assim ser convertidas e para tal necessitam de um corte
com aqueles desejos que inviabilizam a sua realização plena.
Os pés, feitos para
nos levarem ao encontro do outro, são os membros da nossa autonomia e
liberdade, da nossa independência, e por isso quando não servem esse fim,
quando inviabilizam o seguimento de Jesus, o seguir em frente ao encontro do
irmão, quando nos estacam ou escravizam, devem ser purificados, cortados
naquilo que os impede e prende.
Os olhos, feitos para
apreciarem as belezas da criação divina, servem muitas vezes para só olhar o
mal, o que está errado, os defeitos, para uma apreciação errada da obra da
criação nos seus mais diversos elementos. Quantas vezes os olhos não são o
instrumento que nos levam aos juízos errados sobre os outros, às faltas de
caridade porque faltamos à justiça.
Outras vezes os olhos
vedam-se ao que está ao nosso lado, como na parábola do pobre Lázaro que nunca
foi visto pelo rico à sua porta senão depois de ter morrido e sentido o fogo da
condenação. São estes olhos que se torna necessário arrancar, para ver o outro
tal como ele é, filho de Deus e amado nas suas limitações e fraquezas, para ver
toda a beleza de Deus espelhada na sua obra.
As palavras radicais
de Jesus, confrontadas com a atitude egoísta dos discípulos e a liberdade dos
dons de Deus, desafiam-nos na nossa liberalidade, na nossa universalidade, na
nossa capacidade de perceber que tudo está ao serviço de Deus e que neste
serviço devemos eliminar, por muito que nos custe, o que desperta em nós a
inveja e a rivalidade que nos isolam e afastam do caminho em que Jesus nos
precede para a plenitude.
1 – Jovem possesso, detalhe “Transfiguração” de Raffaelo, Pinacoteca Vaticana.
2 – “A mão de Deus”, de Auguste Rodin, Rhode Island School of Design Museum.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarHoje gostei particularmente da homilia! Obrigada!
ResponderEliminarGrata, Caro Frei José Carlos, pela partilha da Homilia que teceu, esclarecedora e que nos desinstala, por recordar-nos que ..."tudo está ao serviço de Deus e que neste serviço devemos eliminar, por muito que nos custe, o que desperta em nós a inveja e a rivalidade que nos isolam e afastam do caminho em que Jesus nos precede para a plenitude." Obrigada, pela bela escultura de Auguste Rodin "A Mão de Deus". Bem-haja. Que o Senhor o ilumine e abençoe. Um abraço fraterno,
ResponderEliminarMais uma brilhante homilia bem exemplificativa do agir "in persona Christi" a que o Frei José Carlos já nos habituou. Ocorre-me neste momento invocar o Salmo 119;105 : "A tua palavra é farol para os meus passos e luz para os meus caminhos."
ResponderEliminarQue Deus o abençoe, Frei José Carlos.
Um fraterno abraço.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarFiquei maravilhada com a Homilia profundamente bela,esclarecedora,Meditação magnífica. Gostei muito da ilustrção,beleza da escultura . Que Deus o ilumine o abençõe e o proteja.Continuação de uma boa semana.Um bom descanso.Bem-haja,Frei José Carlos.
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