domingo, 6 de dezembro de 2009

Homilia Domingo II do Advento

Em cada ano litúrgico encontramos no segundo domingo do Advento a figura de São João Baptista, o precursor do Messias, o enviado a anunciar a sua presença no meio de nós.
Comparando com os evangelistas Mateus e Marcos, Lucas não nos faz no seu Evangelho nenhuma descrição da figura física de João, nem da sua indumentária de pele de camelo ou vida austera e penitente no deserto. Pelo contrário, alarga os seus e nossos horizontes situando João no espaço e no tempo histórico, apresentando aqueles que politicamente governavam o mundo e religiosamente Jerusalém quando João começou a pregar o arrependimento no deserto.
Esta precisão do tempo, do espaço e do contexto político e religioso visa no Evangelho de São Lucas sublinhar a verdade dos acontecimentos, visa sublinhar que o que se relata não é um mito ou uma história para embalar crianças. Esta precisão histórica e política visa sublinhar que se está perante um acontecimento que é mais decisivo que os gestos daqueles governantes, um acontecimento que confronta aqueles mesmos gestos com a sua caducidade e mentira face à revelação de Deus.
A sobriedade descritiva do Evangelho São Lucas tem assim esse objectivo de nos centrar no que verdadeiramente é essencial na figura de João, ou seja, na Palavra que foi incumbido de anunciar. Essa Palavra diante da qual ele se situa, se situam os reis e os poderosos mencionados, e também nós somos convidados a situar-nos.
João recebe da Palavra Eterna a missão de profeta, mas só a leva a cabo no deserto. É necessário um contexto para creditar e certificar a missão atribuída por Deus. São necessários sinais e em João o grande sinal é o deserto. Como Oseias que desposou uma prostituta, a mandado de Deus, para mostrar ao povo santo a prostituição idolátrica a que se tinha votado, também João vai para o deserto para mostrar ao povo o caminho que devia seguir, o caminho da conversão.
O deserto é o mundo sem Deus, é um mundo sem vida, mas é nele que João se apresenta como enviado de Deus e como alguém com uma palavra de revelação. Esta localização geográfica obriga por si mesma a uma conversão, a uma alteração, porque para alguém ir ao deserto é necessário querer ir, é necessário colocar-se em marcha, fazer o percurso até lá. Aqueles judeus que iam ao encontro de João para o escutar tinham obrigatoriamente que abandonar os seus caminhos habituais para se poderem encontrar com ele, para poderem entrar no deserto e ouvir a sua pregação. Abriam-se desta forma a uma conversão possível.
Também nós temos os nossos desertos, os nossos mundos sem Deus e sem vida e necessitamos predispor-nos e obrigar-nos a ir até eles para nos encontrarmos com a revelação de Deus. Se os deixarmos esquecidos, encerrados na sua própria solidão e aridez não haverá possibilidade de conversão. Poderá acontecer-nos o mesmo que ao povo de Israel, que no deserto erigiu o seu touro de ouro para os governar e conduzir. Construíram um símbolo da pujança física, uma idolatria do corpo, um símbolo da produtividade, uma idolatria do dinheiro, um símbolo da fecundidade, uma idolatria da sexualidade, esquecendo-se que ao mesmo tempo e nesse mesmo deserto Deus lhes entregava a sua lei, os seus mandamentos de salvação. Também nós podemos incorrer na mesma tentação se não visitarmos os nossos desertos e nãos nos predispusermos a aceitar aí a Palavra da revelação de Deus.
Porque se o deserto é o mundo sem Deus, é também no deserto que Deus se revela, que Deus se nos pode fazer presente, como se fez presente na pregação de João. Foi ele e ali no deserto, que perante um homem de Nazaré apontou e disse “eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, eis aquele que eu anuncio e por quem tanto anseio, eis aquele que é o nosso salvador e deveis seguir porque eu já cumpri a minha missão.
A voz de João, o seu convite à conversão e mudança de vida, torna-se assim tão sinal profético como o próprio deserto onde João vive a experiência de Deus e cumpre a sua missão.
João fala no deserto, mas não fala de si, nem por si, nem dos outros como o pai sacerdote, a tribo ou os poderes instituídos. João fala da Palavra e pela Palavra, ele é a voz que grita no deserto que os caminhos devem ser aplanados e as veredas endireitadas. O grito de João junto ao Jordão no deserto é a voz da cólera de Deus, uma cólera totalmente distinta da nossa porque nasce da paixão amorosa de Deus pelas suas criaturas enquanto que a nossa nasce da inveja possessiva que nos habita e molda. A voz da cólera, o grito urgente da cólera de Deus traduzir-se-á de forma plena na encarnação do Filho, na Palavra feita carne para nossa salvação e nosso alimento, na Palavra do amor. João faz-se no deserto instrumento e eco dessa voz e ao fazê-lo abala o deserto, irrompe como uma força que coloca em causa o pressuposto e o adquirido. A voz desfaz o deserto.
Como João também nós somos chamados, e de modo especial no Advento, a gritar a presença da Palavra entre nós, a abalar os desertos que nos cercam e esperam uma voz de salvação. E como João não nos podemos contentar com as palavras sussurradas, com as vozes mansas, com as conversas de corredor, não nos podemos contentar em dizer apenas as nossas palavras, as que nos satisfazem ou agradam. O mundo, o deserto em que habitamos, necessita da provocação da Palavra, das palavras que nascem da cólera do amor de Deus por cada um de nós, precisa dos gritos da nossa voz de fé.
Peçamos ao Senhor a força do Espírito para fazermos da nossa vida e das nossas vozes revelação e eco da sua Palavra viva que vem até nós.


1 comentário:

  1. Frei José Carlos,
    Nesta sua homilia em que parte da localização no espaço e no tempo, pilares do facto histórico, para situar S. João Baptista no deserto, a metáfora da nossa vida vazia, predisposta porém à revelação de Deus, à conversão.
    Quanta esperança e quanta vontade de mudar em nós desperta ao fazer-nos pensar na distinção entre a cólera de Deus e a nossa.
    E cito-o: " O grito de João junto ao Jordão no deserto é a voz da cólera de Deus, uma cólera totalmente distinta da nossa porque nasce da paixão amorosa de Deus pelas suas criaturas enquanto que a nossa nasce da inveja possessiva que nos habita e molda.A voz da cólera, o grito urgente da cólera de Deus traduzir-se-á de forma plena na encarnação do Filho, na Palavra feita carne para nossa salvação e nosso alimento, na Palavra do amor. João faz-se no deserto instrumento e eco dessa voz e ao fazê-lo abala o deserto, irrompe como uma força que coloca em causa o pressuposto e o adquirido. A voz desfaz o deserto."
    Que tenhamos a força de fazer o silêncio para ouvir a voz que desfaz o deserto. Bem haja.
    GVA

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