quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cristãos do Contra

No editorial deste mês de Setembro da revista “Le Monde des Religions”, Frédéric Lenoir comenta um ensaio recentemente publicado em França, e da autoria de Jean-Pierre Denis, intitulado “Porque o cristianismo provoca escândalo”. Creio que é suficientemente interessante, e até provocador, para tomar algumas notas, enquanto esperamos que o livro nos chegue às mãos e possamos confirmar o que se ensaiou.
Assim, não podemos deixar de assumir que a contra cultura “libertinária” que nasceu do Maio de 68 é hoje a cultura que nos domina a todos, é a cultura dominante, enquanto que o cristianismo se transformou em algo verdadeiramente periférico, não sei se verdadeiramente uma contra cultura periférica, ou apenas algo periférico.
A contra cultura, que se desenhou no Maio de 68 de uma forma embrionária, evoluiu das margens e da periferia para o centro, tornou-se norma, ganhando aos poucos as consciências, as mentalidades e os consensos sociais, atingindo mesmo e ainda que imperceptivelmente um nível elevado de controlo social. Não temos, por acaso, algum pudor, para não dizer medo, em assumir algumas ideias e posições menos politicamente correctas?
Simetricamente a esta evolução e ocupação cultural o cristianismo foi sendo relegado para a esfera do privado, colocado à margem, gerando aquilo que todos nós sabemos e que habitualmente apelidamos de descristianização. A forma mais visível, todos temos isso claro, é o despovoamento das nossas assembleias dominicais e das nossas igrejas. Mas essa é apenas a ponta do iceberg, porque a questão é mais profunda e não só cultural mas creio que também ontológica.
E neste ponto temos que ter presente e também assumir, que de facto e apesar de dois mil anos de história e de uma época a que chamamos “cristandade”, o nosso mundo e a nossa história deixam muito a desejar em termos de cristianismo. É verdade que temos as catedrais e os mosteiros, a arte e a filosofia, os símbolos e as organizações, o respeito e os direitos do homem, um património cultural e social inquestionável; mas temos também a intolerância, as organizações rígidas e obsoletas, as perseguições e as guerras, uma moral bastantes vezes estreita e constrangedora, uma história e um presente nos quais se mesclam a beleza e o horror, a humanidade e a desumanidade.
Será que não abandonámos a liberdade e a bondade subversiva que marca a mensagem de Jesus, no que diz respeito à moral, à religião e ao poder? Será que a partir do século IV com a associação ao poder e ao governo imperial não se gerou uma confusão enorme entre o que é ser seguidor de Jesus Cristo, cristão na mais radical acepção da palavra, e cristão enquanto membro de um igreja, de uma confissão religiosa, de um grupo social cultural dominante?
Neste sentido, a descristianização em que todos nos inserimos e da qual todos temos consciência pode de facto ser uma bênção de Deus, pode ser uma nova oportunidade para um seguimento mais fiel e verdadeiro de Jesus Cristo, um renascimento da fé à luz dos Evangelhos, na qual o amor do próximo e o amor de Deus serão colunas angulares, na qual uma resistência ao consumismo materialista conduzirá a um novo humanismo e a uma conservação ecológica da casa natural em que vivemos. Necessitamos abandonar os esquemas estereotipados, os espartilhos que nos colocamos em nome e em defesa de uma fé, que a bem da verdade é mais uma consciência ou concepção colectiva, corporativista, que verdadeiramente a consequência de uma experiência pessoal e profunda do mistério amoroso de Deus vivida no seio da comunidade dos irmãos.
Para a prossecução deste renascimento, desta reconstrução cristã, para aproveitar a oportunidade, Jean-Pierre Denis propõe cinco pontos de desenvolvimento: reanimar a cultura, objectar de consciência, ligar o tempo, ultrapassar o visível, refundar o sentido. Projecta-se desta forma um cristão contra cultural, chamado do contra, que não se envergonha dos seus valores e princípios, nem reivindica qualquer poder ou autoridade, mas que se define essencialmente pelo seu poder de objecção face aos desafios e propostas do seu tempo.
O Cristianismo crítico é um cristianismo de objecção, objecção de consciência, objecção pelo testemunho, objecção pela experiência e objecção pela esperança.”
Aproximamo-nos assim de São Paulo e do escândalo que os primeiros cristãos provocavam aos seus contemporâneos, aproximamo-nos da fidelidade de que os mártires dos primeiros séculos são o exemplo mais puro.
Como disse ao início, estas são apenas notas, apontamentos que exigem uma leitura mais aprofundada do ensaio de Jean-Pierre Denis e uma reflexão mais madura das várias propostas aí apontadas. Contudo, e face ao interesse e desejo de todos nós por uma maior fidelidade à liberdade subversiva de Jesus, deixo estas notas para alimentar a partilha e a reflexão.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    O tema complexo que hoje partilha connosco e propõe como reflexão faz parte de um dos grandes desafios, talvez o maior que a Igreja enfrenta há várias décadas e que os cristãos menos “acomodados” debatem, em público e/ou em privado. Se me permite, eu diria, que a questão é anterior a Maio de 68, a Karl Marx, Lenine, Estaline ou Mao Tsé –Tung.
    Na realidade, os acontecimentos de Maio de 68 marcam um virar de página, uma fractura com a sociedade anterior, com efeitos no campo politico, económico, social, cultural e religioso (Daniel Cohn-Bendit, Deputado Europeu, dirá “Não resta nada de 68” ...). A sociedade mudou radicalmente e novos fenómenos se registaram no campo demográfico, com novas atitudes geracionais, grandes transformações políticas ocorreram com a queda do muro de Berlim, verificaram-se novos avanços da ciência e da tecnologia, cujos resultados foram incorporados pela sociedade ... Para quem viveu estes acontecimentos, e alguns acontecimentos nacionais, antes e depois do 25 de Abril de 74, talvez se compreenda, sem aceitar, a questão que coloca ... “Não temos, por acaso, algum pudor, para não dizer medo, em assumir algumas ideias e posições menos politicamente correctas?”
    Paralelamente, muitos de nós, não conseguimos assumir a nossa posição como cristãos. Noutro comentário havia falado deste fenómeno. Não assumimos a nossa fé, no seio da família, com os amigos, no trabalho... Como afirma ...” o cristianismo se transformou em algo verdadeiramente periférico, não sei se verdadeiramente uma contra cultura periférica, ou apenas algo periférico.”
    Permita-me que cite esta passagem, extraída do último Capítulo do livro “Ir à Igreja, porquê?, pág. 285, de Frei Timothy Radcliffe” … Mas, muitas vezes, os cristãos parecem tolhidos pelo medo, recusam-se a sair pela porta que Jesus abriu. Receamos dizer o que pensamos. Talvez tenhamos medo de confessar a nossa fé ao mundo e de expressar as nossas dúvidas uns aos outros. Receamos, porventura, aparecer como excêntricos na nossa sociedade secular ou como desleais à linha “partidária” da nossa Igreja, trancados numa pequena sala eclesiástica “do andar de cima”. Receamos, quiçá, perder a nossa identidade aconchegante e deixar que o Espírito Santo nos empurre para fora do ninho. Mas “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (GL 5,1)” …
    Não pretendo fazer nenhum “libelo” mas houve atitudes, comportamentos por parte de certos sectores da Igreja Católica e , de alguns de nós, entre os quais me incluo, que rejeitamos posições dogmáticas personificadas numa Instituição que se recusava e recusa a analisar, a compreender as transformações que se operararam na sociedade ( é o momento de perguntar, Frei José Carlos, se estou a ser correcta?) e que explicam, parcialmente, a situação actual.
    …”É verdade que temos as catedrais e os mosteiros, a arte e a filosofia, os símbolos e as organizações, o respeito e os direitos do homem, um património cultural e social inquestionável; mas temos também a intolerância, as organizações rígidas e obsoletas, as perseguições e as guerras, uma moral bastantes vezes estreita e constrangedora, uma história e um presente nos quais se mesclam a beleza e o horror, a humanidade e a desumanidade.”
    Obrigada por esta partilha que nos interroga e que nos faz acreditar que é possível seguir a Jesus Cristo como verdadeiros discípulos, dando como exemplo os Seus Ensinamentos, sem receio, e vivendo-os, no quotidiano, para que se possa construir uma Humanidade mais fraterna, mais justa, mais solidária.
    Bem haja, Frei José Carlos.
    Um abraço fraterno, MJS

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  2. Frei José Carlos,
    Parabéns por esta nova apresentação do seu blogue que acabei de ler. O tema escolhido é também de grande interesse para nós e fruto de grande coragem no acordar das nossas consciências, apelando também à partilha e a reflexão. Vou estar atenta à chegada da obra, de preferência na versão linguística original, o que me leva a aprender por diversas vertentes.
    Um abraço sempre amigo,
    GVA

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