domingo, 6 de setembro de 2015

Homilia do XXIII Domingo do Tempo Comum

O episódio que o Evangelho de São Marcos nos apresentou na leitura que escutámos situa-se entre dois outros acontecimentos que se desenrolam no meio pagão, na chamada Decápole, e que o evangelista reuniu de forma, poderíamos dizer, propositada.
O primeiro deles, quando Jesus se dirige para a Decápole, é o encontro com a mulher siro fenícia que vem ao seu encontro para que lhe cure a filha. Recordamos deste encontro o diálogo e a referência aos cachorrinhos que também comem das migalhas que caiem da mesa dos donos.
O terceiro acontecimentos é o segundo milagre da multiplicação dos pães, uma repetição em tudo semelhante ao primeiro que o Evangelho comporta, narrada no capítulo sexto, e cuja diferença se situa apenas, mas marcadamente, na localização geográfica.
Entre estes dois acontecimentos encontra-se o milagre da cura do surdo-mudo, estabelecendo como que uma ponte entre um e outro, ou desenvolvendo uma etapa que afinal é necessário ultrapassar para passar de uma realidade expressa no primeiro acontecimento para a realidade do terceiro.
Estes acontecimentos, e a narração conjunta propositadamente concebida pelo evangelista, vêm ao encontro de um desafio que se colocou à igreja nascente, aos apóstolos, e que de certa maneira também se colocou a Jesus na sua pregação, que é o desafio da dimensão universal da salvação.
No diálogo com a mulher siro fenícia percebemos a dificuldade de Jesus, até uma certa relutância, pois não se deve deitar aos cães o pão dos filhos. Nos Actos dos Apóstolos, e nas Cartas de São Paulo esta dificuldade está também expressa e percebemos como muitas vezes os apóstolos titubearam entre a aceitação e a recusa da manifestação da palavra da salvação aos pagãos.
O Evangelho de São Marcos ao apresentar este conjunto de milagres na região da Decápole vai ao encontro da dimensão universal da salvação, dimensão que Jesus assume já neste milagre da cura do surdo-mudo e que é expressa de forma lapidar, total neste Evangelho de Marcos, pelo centurião romano aos pés da cruz, quando diz “este é verdadeiramente Filho de Deus”.
Diante das dificuldades da igreja face ao desafio dos pagãos, São Marcos recolhe nesta trilogia o exemplo de Jesus, apontando o caminho a seguir assim como a metodologia a desenvolver. Partimos assim dum apelo, duma necessidade expressa na voz da mulher siro fenícia, para a acção do anúncio, da evangelização expressa no gesto de curar a surdez e a mudez, para finalmente encontrarmos a participação plena na partilha do pão, na celebração da eucaristia.
É o caminho da fé, a passagem da fome de Deus à satisfação dessa fome, passagem na qual é necessário colocar-se à escuta para poder dar uma resposta. Resposta que Jesus não exige a nenhum daqueles que se abeiram dele nesta terra de pagãos, nem da mulher siro fenícia, nem do surdo-mudo, mas que espera face à sua própria resposta aos pedidos apresentados por cada um.
O acolhimento desenvolvido por Jesus das diversas realidades e necessidades deveria provocar naqueles que se encontravam com ele uma transformação, uma resposta que não se verbalizava em palavras, mas se tornava concreta e real em mudança de vida, em conversão de atitudes e comportamentos.
Este é, ainda hoje, o desafio que se nos coloca quando nos abeiramos de Jesus, quando nos dirigimos a Deus para apresentar as nossas necessidades ou dificuldades. Necessitamos escutar, abrir os olhos e os ouvidos, abrir-nos a outras realidades, a uma presença e transcendência que vai para além de nós e que está presente nos outros e na natureza, nos quais Deus, o totalmente Outro, se faz presente.
Só de olhos e ouvidos bem abertos poderemos ver que Deus vem ao nosso encontro, que vem para fazer justiça como nos recordava a leitura de Isaías, uma justiça que é salvação. Contudo, e numa sociedade como a nossa, em que somos cada vez mais absorvidos por uma quantidade tremenda de informação, de palavras, de ruido de fundo, há necessidade de, por momentos, fechar os olhos e os ouvidos, tornar-se cego e surdo, para poder escutar a voz de Deus que é suave como a brisa da tarde.
É também este exercício e esta disciplina diária do silêncio e da cegueira que nos permite ver o outro tal como ele é, que nos permite não fazer juízos nem acepção de pessoas, numa sociedade tantas vezes estratificada e assente sobre sinais exteriores de riqueza ou poder como é a nossa.
O olhar interior, o silêncio, o encontro consigo próprio, faz-nos ver como todos somos pobres, como todos necessitamos da graça de Deus que vem ao nosso encontro. Esta interioridade ajuda-nos a fazer com que as nossas realizações sejam admiráveis, a estarem marcadas pelo Deus que nos toca no coração.

 
Ilustração:
“Jesus curando um surdo-mudo”, de Bartholomeus Breenbergh, Museu do Louvre.   

2 comentários:

  1. Como é difícil reconhecer que se é pobre e se necessita "das migalhas da graça" que a mulher implora para a filha!... Naturalmente, porque não é fácil criar o clima de silêncio e de interioridade que nos permite encontrar e acolher Deus. É o esforço que temos que treinar todos os dias...Inter Pars

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  2. Boa tarde, Onde poderei obter mais informações sobre o modo de vida dos dominicanos e sobre a forma de me tornar dominicano?

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