domingo, 26 de outubro de 2014

Homilia do XXX Domingo do Tempo Comum

Após a leitura do Evangelho deste domingo, no qual nos confrontamos com uma armadilha que é tecida para experimentar Jesus e uma resposta que todos conhecemos de memória, creio que podemos perguntar-nos se, face a esta resposta e à forma como a assumimos e vivemos, não nos situamos na pele daquele doutor da Lei.
Pode parecer-nos estranho, e até de difícil compreensão, como um doutor da Lei coloca esta questão a Jesus, quando ele e nós conhecemos os mandamentos da Lei de Deus, ou seja o que é verdadeiramente importante, o que deve ser tido em conta.
Contudo, não podemos deixar de ter presente que para além dos mandamentos da Lei, dada por Deus a Moisés no monte Sinai, havia ainda mais 248 preceitos e 365 proibições que regulavam a vida religiosa e comunitária do povo judeu.
Tendo diante de si alguém que reconhecem como mestre, os fariseus, através do doutor da Lei, desejam saber qual é para Jesus o preceito que determina a sua doutrina, o preceito a partir do qual constrói todo o edifício da sua doutrina, pois todos os mestres tinham um preceito que consideravam mais importante.
Ao deixar de lado o Decálogo dos mandamentos e ao responder com um texto que era recitado quotidianamente, a oração diária do Shema “Escuta Israel”, Jesus está não só a manifestar a hipocrisia e falsidade daquele que tem diante de si, mas a retirar toda e qualquer força obrigatória à literalidade da Lei.
Os preceitos e proibições, os mandamentos, estão ao serviço e são instrumentos de uma realidade muito mais importante, muito mais fundamental, uma realidade que constitui o próprio homem enquanto pessoa. É o amor a Deus e o amor ao próximo que definem o homem e a partir dele determinam e fundamentam todos os preceitos, todas as obrigações e proibições, todos os mandamentos.
A resposta de Jesus reporta-se ao âmago da revelação de Deus e por isso numa síntese fundamental une um mandamento que estava prescrito no Livro do Deuteronómio com um outro que estava prescrito no Livro do Levítico. São os dois alicerces de todos os outros mandamentos e preceitos, as duas vias de acesso a Deus
Assim, quando, tal como os fariseus e o doutor da Lei, procuramos privilegiar um preceito, procuramos encontrar um elemento acessório, um meio instrumental, para alicerçar a nossa vida e fidelidade à Palavra de Deus, acabamos por desviar-nos do que é verdadeiramente fundamental e deve de facto alicerçar a nossa vida e a nossa fé. Colocamos os meios como fins, esquecendo que o nosso princípio e o nosso fim são verdadeiramente o amor, o amor a Deus e aos irmãos.
A resposta de Jesus nesta junção do mandamento do amor a Deus e aos irmãos coloca-nos face a uma exigência que poderemos considerar louca, impossível, demasiado elevada para nós, mas que não pode deixar de ser tentada todos os dias, de modo a não desesperarmos de nós próprios, a não perdermos o sentido da nossa vida e realização.
Esta exigência, este desafio, é expresso por Jesus no tempo verbal futuro em que coloca o verbo amar, o que não significa um adiamento para mais tarde, mas uma oportunidade e uma possibilidade constantes que não podemos deixar de apreciar e procurar aproveitar. Amar apresenta-se-nos assim como verdadeiramente estrutural à nossa existência. Existimos para amar e sem amor morremos.
Por esta razão é necessário recomeçar, voltar a tentar sempre que nos estatelamos no chão do nosso egoísmo, ou nos deixamos vencer pela nossa auto-suficiência, pois não só a felicidade depende deste recomeçar, como também a nossa realização como homens e mulheres filhos de Deus.
E porque esta é uma verdade fundamental, o Papa João Paulo II não se cansou de repetir que o mundo necessitava descobrir o amor e que os cristãos necessitavam manifestá-lo e testemunhá-lo em todas as circunstâncias, pois o cristianismo é a religião do amor.
É o exemplo de que nos fala São Paulo quando se dirige aos Tessalonicenses e de que falava também o Papa Paulo VI quando nos alertava que o mundo necessita mais de testemunhas que de mestres, pois as testemunhas pela sua vida revelam uma verdade que os mestres podem ocultar com as suas palavras.
Amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todo o espírito e amar o próximo como a si mesmo é assim um processo, que apenas pode ser vivido em equilibro e profunda relação, uma vez que amar o outro é reconhecer nele a presença e a vida de Deus que somos convidados a amar com todas as nossas potências.
E como nos diz São João como poderemos dizer que amamos a Deus se somos incapazes de amar os irmãos?

 
Ilustração:
1 – “Jesus dialogando com Nicodemos”, de Jacob Jordaens.
2 – “As Sete Obras de Misericórdia Corporais”, de David Teniers, o Jovem, Dulwich Picture Gallery.

2 comentários:

  1. O único mandamento com que Jesus responde ao doutor da Lei e a cada um de nós é,sem sombra de dúvida, aquele que o mundo mais necessita - o Amor, um pedido do coração de todo o Homem. Mas, sabemos nós sempre como amar? Inter pars

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  2. Frei José Carlos,

    Grata,pela maravilhosa Meditação,profunda e rica de sentido para todos nós e que nos ajuda à nossa reflexão pessoal.Obrigada,pela beleza da ilustração que gostei muito.Que o Senhor o ilumine o guarde e o abençoe.Desejo-lhe uma boa semana com paz e alegria.Uma boa noite,Frei José Carlos.
    Um abraço Fraterno.
    AD

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