domingo, 16 de fevereiro de 2014

Homilia do VI Domingo do Tempo Comum

A leitura do livro de Ben-Sira que escutámos dizia-nos que diante do homem estão a vida e a morte, e que compete ao homem fazer a sua escolha. Deus deixa aos homens, a cada um de nós, a liberdade de optar, de fazer a sua escolha, de optar pela vida ou pela morte, de optar pelo bem ou pelo mal.
Provavelmente não nos apercebemos disso durante a leitura, mas o autor do texto bíblico, Ben-Sira, termina o seu pensamento dizendo que Deus deixa esta liberdade aos homens porque é grande a sua sabedoria. Ou seja, Deus é sábio nesta liberdade que concede aos homens de fazerem a sua opção.
Para muitos dos nossos irmãos esta liberdade é um obstáculo, certamente até para nós em alguma ocasião já foi, e pensámos como seria bom que Deus nos mostrasse o caminho claro a seguir, a resposta correcta a dar.
Nesses momentos esquecemos que afinal a resposta já foi dada, já nos foi oferecida, e que depende da nossa vontade segui-la, lutar por ela na liberdade que nos é concedida. De facto, Deus ofereceu-nos a vida, e como diz Ben-Sira não nos mandou fazer o mal nem nos deu licença para cometer o pecado.
Esta opção pela vida que Deus nos oferece, que Deus nos propõe, foi confirmada e de certa forma reorientada para o verdadeiro centro por Jesus Cristo, pela sua vida e pelas suas palavras, como as que escutámos no Evangelho de São Mateus que lemos nesta celebração.
Por isso, não nos podemos admirar que Jesus tenha dito que não veio para revogar a Lei ou os profetas, mas bem pelo contrário para os completar, para os levar à perfeição, à orientação fundamental que o tempo e as circunstâncias históricas e humanas tinham desvanecido.
Quando lemos os Evangelhos percebemos pelos gestos e palavras de Jesus que três realidades, ou três grandes problemas marcaram a sua acção, a saúde para os doentes, a alimentação dos pobres e as relações humanas. Poderíamos dizer que eram os eixos fundamentais do seu programa político, se o tivesse tido.
Na leitura do Evangelho de hoje encontramos evidenciado de modo particular a questão das relações humanas, uma realidade intrínseca e fundamental à opção pela vida que somos convidados por Deus a assumir e a viver.
Assim, num primeiro momento, Jesus aborda a incompatibilidade da fé e dos seus elementos expressivos face ao conflito e aos enfrentamentos humanos. Como diz, não nos podemos apresentar diante do altar com a nossa oferta se não estamos em paz com algum dos nossos irmãos.
Face ao culto e à sua necessidade humana como expressão da relação com o divino, Jesus antepõe a pessoa humana, o outro com quem não podemos deixar de estar em paz. Poderíamos dizer que Jesus assume já o homem como o verdadeiro templo de Deus, o templo e o altar no qual se deve prestar a verdadeira adoração a Deus.
Assim, quando cuidamos o outro, os homens e mulheres que vivem connosco, não só estamos a fazer a opção pela vida, que Deus nos convida, mas a centrar-nos no verdadeiramente fundamental, que é o homem como imagem de Deus, como oferta de relação divina.
Num segundo momento, Jesus apresenta-nos a incompatibilidade da fé, da opção pela vida, face ao desejo do que não nos pertence, face à cobiça. Desejar o que não nos pertence opõe-se à valorização do que temos e somos, à falta de reconhecimento e agradecimento dos dons com que fomos cumulados, da própria vida que nos foi oferecida.
E este desejo é ainda mais subversivo, mais destrutivo, na medida em que não só cobiçamos as coisas dos outros, mas cobiçamos e desejamos o próprio outro. Há como que uma apropriação que não nos compete, pois o outro é fundamentalmente de Deus, e uma oferta de Deus à nossa vida.
Assim, quando Jesus nos diz que devemos cortar os membros que são ocasião de pecado, o olho, a mão ou o pé, está a incentivar-nos a essa liberdade de não querermos apossar-nos dos outros, ao reconhecimento do outro como totalmente outro, à sacralidade que devemos manifestar e ter para com o outro enquanto imagem única e irrepetível de Deus.
Por fim Jesus manifesta a incompatibilidade da fé e da opção pela vida com a necessidade de juramento, com a necessidade de acreditarmos a nossa palavra pela acção ou pela palavra de outrem. Para Jesus a nossa verdade deve ser explícita, a nossa fé e opção de vida devem estar de tal modo traduzidas que sejam evidentes por si mesmas, sem qualquer necessidade de suporte exterior.
É a verdade pessoal, a verdade de vida, que se opõe à mentira, à duplicidade com que tantas vezes somos confrontados ou nas quais nos vamos enredando. E uma opção de fé pela vida, de forma livre, não pode prescindir nunca dessa verdade que nos torna mais humanos e igualmente mais divinos.
Fazer a opção pela vida e procurar ser fiel a essa opção, com tudo o que ela acarreta, é afinal uma sabedoria que nos está destinada desde o princípio dos tempos, uma sabedoria que não é deste mundo, como diz São Paulo aos Coríntios, mas que sabemos pelo Espirito Santo nos alcançará uma felicidade inimaginável.
Deus na sua sabedoria deixa-nos a liberdade de escolher porque sabe que em nós habita esse desejo eterno de felicidade e portanto, ainda que nos possamos equivocar, nunca deixaremos de buscar o fim para que fomos criados, a felicidade eterna.
Procuremos pois viver sabiamente em liberdade e responsabilidade com aqueles que nos rodeiam e Deus que habita em todos nós.

 
Ilustração:
1 – “O Jovem entre a virtude e o vício”, de Paolo Veronese, Museu do Prado
2 – “A invejosa”, de Natale Schiavoni.   

3 comentários:

  1. A liberdade que Deus nos dá é simultaneamente uma força e uma fragilidade. Com ela podemos errar e afastarmo-nos de Deus; mas, ao mesmo tempo, podemos procurá-Lo e à Felicidade eterna, até ultrapassando os nossos limites. Inter Pars

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  2. Nem sempre é fácil entender que foi a infinita sabedoria de Deus que escolheu para nós a liberdade porque Ele sabia que sempre acabaríamos por procurar a felicidade, mesmo que fosse pelo processo de tentativa e erro. CR1

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  3. Caro Frei José Carlos,

    “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). A pureza de coração é condição prévia para olharmos para cada um de nós e para o próximo, como um templo de Deus, uma manifestação da beleza divina.
    Bem-aventurados os que não turvam o seu olhar interior e exterior e que escolhem a vida, optando pelo bem, a que Deus nos convida, em liberdade e responsabilidade. E, tudo começa pela verdade, como nos recorda no texto da Homilia do VI Domingo do Tempo Comum que elaborou. ...” Para Jesus a nossa verdade deve ser explícita, a nossa fé e opção de vida devem estar de tal modo traduzidas que sejam evidentes por si mesmas, sem qualquer necessidade de suporte exterior.
    É a verdade pessoal, a verdade de vida, que se opõe à mentira, à duplicidade com que tantas vezes somos confrontados ou nas quais nos vamos enredando. E uma opção de fé pela vida, de forma livre, não pode prescindir nunca dessa verdade que nos torna mais humanos e igualmente mais divinos.”…
    Peço-Te, Senhor, que no peregrinar da vida, nos ilumines os caminhos desta Aventura constante que é a vida, acreditando que como Filhos amados, somos capazes de vencer os nossos limites, as nossas fragilidades, com humildade.
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, profunda, maravilhosamente ilustrada, e como nos exorta …” Procuremos pois viver sabiamente em liberdade e responsabilidade com aqueles que nos rodeiam e Deus que habita em todos nós.”
    Que o Senhor o cumule de todas as bençãos.
    Um abraço mui fraterno e amigo,
    Maria José Silva

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