domingo, 23 de fevereiro de 2014

Homilia do VII Domingo do Tempo Comum

Meus queridos irmãos
Terminada a Liturgia da Palavra não podemos deixar de assumir que nos encontramos face a face com três textos verdadeiramente revolucionários, profundamente paradigmáticos, pelo que encerram de desafio e necessidade de transformação de vida.
São três textos, três leituras, que evidenciam uma evolução, de certa forma até três paradigmas de como o homem se pode conceber na sua relação com os outros e com Deus, que aparece sempre como referência constituinte dessa realidade paradigmática.
A leitura do Livro do Levítico apresenta-nos o mandamento do amor ao próximo, mandamento que se insere naquilo que poderíamos chamar o Decálogo da Santidade. Tal como Deus é santo os homens são também chamados a ser santos, mas essa santidade não é algo estranho ou inacessível ao homem, bem pelo contrário está ao seu alcance na medida do mesmo amor ao próximo.
No contexto histórico em que este mandamento aparece podemos dizer que se trata de uma verdadeira revolução, não só porque alarga o conceito de santidade para além do âmbito cultual e ritual, mas porque o aproxima da própria condição do homem e das suas relações com os outros.
Esta revolução, que representa o mandamento ao próximo, fica contudo limitada, na medida em que o próximo é apenas aquele que faz parte do povo ou da tribo, aqueles que hoje podemos dizer que são como nós, pensam como nós, estão nos nossos círculos fechados de relações.
Tendo por pano de fundo esta realidade diferencial, Jesus apresenta o mandamento do amor ao inimigo, essa perfeição divina que se oferece a cada um de nós, e que Jesus proclama ao concluir o chamado Sermão da Montanha, que ocupa o quinto capítulo do Evangelho de São Mateus e que temos vindo a meditar nos últimos domingos.
Face à lei de Talião, em que há um equilíbrio equivalente face ao desejo de vingança, em que o homem funciona como se de um espelho se tratasse, repetindo simétrica e mimeticamente a violência dos outros, Jesus vem afirmar o fim do círculo vicioso da violência ao propor a novidade do dom e da liberdade como ante respostas à violência e ao mal.
Quando o mais fácil e natural é a reacção primária, é o olho por olho, dente por dente, Jesus vem propor o desequilíbrio das equivalências, vem propor a oferta antecipada da paz, a criatividade do amor, que vai para além do necessário.
O homem encontra assim a sua perfeição à semelhança divina, na medida em que livremente se oferece, em que se faz dom, e é capaz de estar a lado do outro para além do necessário e do expectável. É na sua liberdade e na sua oferta generosa que o homem é capaz de antecipar e combater os gestos e as palavras de violência.
A revolução do amor aos inimigos que Jesus apresenta não se traduz por isso num pacifismo, numa desvalorização da existência dos inimigos, numa postura de não-violência, mas traduz-se em iniciativas que visam inviabilizar a violência e o mal e conduzir ao conhecimento e reconhecimento do outro como pessoa.
E neste sentido não podemos deixar de ter presente a grande novidade que nos é oferecida pela Carta de São Paulo aos Coríntios ao dizer que somos templos de Deus e que o Espirito Santo habita em nós.
Se o mandamento do amor ao próximo nos desafia nos gestos e palavras face aos nossos irmãos; se o mandamento do amor aos inimigos nos desafia face àqueles que nos são estranhos e até opostos; o reconhecimento do outro, qualquer que ele seja, como templo de Deus, como morada divina, desafia-nos de uma forma absoluta em todas as realidades, uma vez que o outro é a presença visível de Deus, a oferta e a necessidade de veneração divina que nos é comum a todos.
Esta consciência da habitação divina na nossa humanidade desafia-nos na questão do aborto, da eutanásia, do eugenismo, das guerras, mas também da exploração laboral, da prostituição, da violência doméstica, do cuidado e assistência aos mais idosos, entre tantas outras realidades da nossa sociedade.
Não se trata já de sermos apenas santos como Deus é Santo, ou de ser somente perfeitos como Deus Pai é perfeito, mas de sermos morada da divinidade, de sermos filhos de Deus, todos e cada um de nós, nas suas mais diversas circunstâncias e estados de vida, de sermos de Cristo, e como Cristo é de Deus, de sermos de Deus.
Libertos das ilusões da sabedoria e das ofertas de imortalidade deste mundo, procuremos viver a loucura do amor, confiantes de que todas as coisas presentes e futuras nos pertencem, mas nós nãos lhes pertencemos porque verdadeiramente e em profundidade somos de Deus.

 
Ilustração:
1 – “Amor Fraterno”, de William-Adolphe Bouguereau, Museu de Belas Artes de Boston.
2 – “A Criação do Homem”, por Miguel Ângelo, Capela Sistina, Vaticano.

2 comentários:

  1. Ser de Deus e amá-Lo infinitamente, amando também o próximo que é habitação de Deus, como nós,
    é a loucura que se nos apresenta e se nos impõe todos os dias. Vivê-la, eis a questão! Inter pars

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  2. Caro Frei José Carlos,

    Jesus subiu à Montanha e disse aos discípulos: “Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos (maltratam) e perseguem (Mt 5,44). Este apelo de Jesus, o mandamento do amor ao inimigo, é certamente o mais difícil de realizar no quotidiano de cada um de nós. E, sabemos que são os alicerces da construção da paz para a humanidade, nas várias dimensões, que só o amor nos pode transformar e levar a amar um inimigo, a perdoar. Que difícil, “amar um inimigo”, mas não podemos deixar de tentar, tantas vezes quantas as necessárias, e ser capaz de dar, muitas vezes, o primeiro passo, com a ajuda de Jesus Cristo, com a oração! E, não podemos julgar quem não é capaz de consegui-lo.
    Permita-me que cite alguns excertos do texto da Homília do VII Domingo do Tempo Comum que teceu e que me tocam.
    …”O homem encontra assim a sua perfeição à semelhança divina, na medida em que livremente se oferece, em que se faz dom, e é capaz de estar a lado do outro para além do necessário e do expectável. É na sua liberdade e na sua oferta generosa que o homem é capaz de antecipar e combater os gestos e as palavras de violência.(…)
    (...)Se o mandamento do amor ao próximo nos desafia nos gestos e palavras face aos nossos irmãos; se o mandamento do amor aos inimigos nos desafia face àqueles que nos são estranhos e até opostos; o reconhecimento do outro, qualquer que ele seja, como templo de Deus, como morada divina, desafia-nos de uma forma absoluta em todas as realidades, uma vez que o outro é a presença visível de Deus, a oferta e a necessidade de veneração divina que nos é comum a todos.(…)
    (…)Não se trata já de sermos apenas santos como Deus é Santo, ou de ser somente perfeitos como Deus Pai é perfeito, mas de sermos morada da divinidade, de sermos filhos de Deus, todos e cada um de nós, nas suas mais diversas circunstâncias e estados de vida, de sermos de Cristo, e como Cristo é de Deus, de sermos de Deus.”…
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homília, profunda, que nos desinstala, que nos leva a ir mais além, para um processo de transfomação difícil, que urge conseguirmos, com a força e a ajuda de Cristo e com a participação de cada um de nós, em todas as dimensões, por recordar-nos que …”A revolução do amor aos inimigos que Jesus apresenta (…) traduz-se em iniciativas que visam inviabilizar a violência e o mal e conduzir ao conhecimento e reconhecimento do outro como pessoa.”…
    Bem-haja. Que o Senhor o cumule de todas as bençãos.
    Votos de uma boa semana. Bom descanso.
    Um abraço mui fraterno e amigo,
    Maria José Silva

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