domingo, 6 de setembro de 2009

Homilia Domingo XXIII do Tempo Comum

Quando dentro de momentos procedermos ao baptizado do Rafael concluiremos a celebração do sacramento com o rito do “Effheta”, uma invocação da graça de Deus para que dentro de pouco o Rafael possa não só ouvir a Palavra de Deus mas também testemunhá-la com a sua própria palavra.
É um rito do sacramento do baptismo que radica, na sua origem última, no trecho do Evangelho de São Marcos que acabámos de escutar, neste milagre da cura do surdo-mudo. Um milagre e um relato extremamente simples, mas ainda assim carregados de força simbólica e elaboração redacional, que não podemos deixar de elucidar.
Antes de mais e porque nos pode passar despercebido temos que ter presente o lugar geográfico em que se realizar esta cura. O evangelista diz-nos que ela aconteceu no território da Decápole, ou seja, na zona geográfica que qualquer judeu ortodoxo consideraria excluída da salvação divina. Era a região da inculturação greco-romana, onde os homens e as mulheres adoravam outros deuses, viviam de acordo com outros valores, em que as normas éticas eram outras completamente diferentes. O Deus de Israel não podia estar naquela terra de estrangeiros nem ter compaixão por aqueles homens e mulheres.
Mas para São Marcos é exactamente aí que Jesus vai realizar esta cura, vai fazer este milagre, mostrando assim que também os estrangeiros, aqueles que os herdeiros da antiga Aliança consideravam excluídos eram objecto da acção salvadora de Deus. Mostrando também que afinal Jesus não tinha vindo só para os seus mas para todos os povos que se dispusessem a acolhê-lo.
Para nós cristãos este aspecto do relato é importante, porque nos pode ajudar a ver que Deus vem ao nosso encontro mesmo nos nossos territórios mais paganizados, onde muitas vezes falta a presença salvadora de Deus. Vem ao nosso encontro naqueles aspectos da nossa vida onde muitas vezes não esperamos Deus, nos quais nem sequer suspeitamos que Deus pode passar e Ele passa para nos dar a oportunidade de o acolhermos.
Acentuando e sublinhando esta presença insuspeita temos aquele que é trazido a Jesus para ser curado, o surdo-mudo. A sua deficiência é por natureza marginalizadora, uma vez que não pode comunicar, mas no contexto da fé judaica e da revelação é uma deficiência ainda mais marginalizadora, excludente, na medida em que o surdo-mudo não pode ouvir a Palavra de Deus nem a pode proclamar. De certa forma aquele surdo-mudo é como se estivesse morto para a revelação, pois não podia conhecer a Palavra de Deus nem a podia transmitir a outrem. O surdo-mudo representa assim, como estrangeiros e estranhos ao povo judeu, a nossa condenação à morte no âmbito da antiga aliança do povo de Israel.
Contudo, é a esse morto para a Palavra que Jesus aceita não só impor as mãos como lhe é pedido, mas curá-lo definitivamente da sua doença, integrando-o para sempre no meio do povo e na história da salvação de que estava excluído pela sua condição de surdez e mudez. O Filho de Deus vem para resgatar os homens desta condição de morte, vem para nos restituir à vida.
E fá-lo com este surdo-mudo e com cada um de nós da mesma forma como se encontra explicitado neste relato do Evangelho de São Marcos. Primeiro retirando-nos da multidão, de modo a estabelecer uma intimidade connosco e depois recriando-nos com um gesto semelhante àquele que foi utilizado no momento da criação do primeiro homem.
Podemos imaginar a colocação das mãos de Jesus na cabeça do surdo-mudo, envolvendo-a como o oleiro que envolve o pedaço de barro para lhe dar a forma desejada, humedecendo-o com a sua saliva para que o esforço de moldagem não seja tão violento. Estamos perante um acto de criação e inevitavelmente somos reconduzidos ao momento primeiro da criação quando Deus formou o homem do pó da terra e lhe insuflou o seu espírito através do sopro da vida.
Jesus opera com esta cura do surdo-mudo uma nova criação, a mesma criação que dentro de momentos vais operar com o Rafael no baptismo. E nesse momento como naquele a força para a realização virá do alto, para onde Jesus elevou os olhos e para onde nós elevaremos as nossas preces. Quem opera em Jesus e quem opera no baptismo é o Espírito Santo, é o amor de Deus, que como nos diz Isaías vem sempre ao nosso encontro para nos curar e libertar, para nos dar uma vida nova desde que nos disponhamos a acolhê-lo.
Desta criação e vida nova resultam duas consequências que não podemos esquecer, e que nos são apresentadas pela leitura do profeta Isaías e da Carta de São Tiago. Antes de mais e à luz do que nos diz Isaías não podemos ser homens e mulheres temerosos, falhos de coragem e santa ousadia. Bem pelo contrário, porque sabemos e acreditamos que Deus veio ao nosso encontro, vem ao nosso encontro e virá sempre ao nosso encontro, estejamos nós dispostos a recebê-lo, devemos ser homens de esperança e confiança. Como dizia Santa Teresa, quem a Deus tem nada lhe falta, nada o pode perturbar.
A segunda consequência a retirar desta criação e à luz da Carta de São Tiago, é que não podemos nem devemos fazer acepção de pessoas, ainda que na nossa vida muitas vezes o façamos. O outro é sempre uma obra de Deus, seja ela mais perfeita ou menos perfeita, mais agradável ou menos agradável. Deus está presente e em muitos casos quase a pedir-nos que nos aventuremos nesse território estrangeiro e inóspito que é o outro com todos os seus defeitos e virtudes, para o encontrarmos a Ele.
Peçamos assim ao Senhor que nos visite nos nossos desertos e regiões barbarizadas e ao franquearmos as regiões dos outros nos dê a coragem para nos aventurarmos nelas sem medos nem preconceitos.

Sem comentários:

Enviar um comentário