Estamos a iniciar a
Quaresma, este tempo litúrgico que a Igreja e Deus nos oferecem de preparação
para a celebração da Páscoa da Ressurreição do Senhor.
E neste primeiro
domingo, nesta primeira paragem da caminhada, os textos bíblicos convidam-nos a
pensar e a meditar uma realidade profundamente intrínseca à nossa condição
humana, as tentações, as diversas possibilidades de ruptura com Deus que nos
podem conduzir ao pecado ou que nos podem fortalecer na fidelidade ao mesmo
Deus.
O Evangelho de São
Mateus que escutámos apresenta-nos as tentações de que Jesus foi alvo, quando
depois do baptismo no rio Jordão se dirigiu ao deserto. São possibilidades de
ruptura, ofertas à sua liberdade de opção, tentações que o desafiam na
revelação que Deus Pai tinha feito no momento do baptismo, “Este é o meu Filho
muito amado”.
A primeira tentação
coloca-se ao nível da satisfação, da satisfação das próprias necessidades sem a
colaboração de outrem. Como todos sabemos, na nossa autonomia e liberdade
desejamos não depender de nada nem de ninguém, e é neste sentido que a tentação
apresentada a Jesus de transformar as pedras em pão acontece.
É a possibilidade de
ruptura com Deus, e até com os outros, no âmbito da confiança, da consciência
da dependência mutua. Satisfazendo as nossas próprias necessidades, quer seja
de pão, quer seja de amor, não necessitamos dos outros, e como tal vivemos
sozinhos e só para nós próprios, negando que é a relação com o outro que nos
constrói como pessoas.
Jesus é profundamente
assertivo nesta questão e na resposta ao desafio tentador, pois face à tentação
de auto satisfação contrapõe a necessidade da Palavra de Deus, de uma palavra e
de uma relação. O homem não vive só de pão, mas da Palavra que sai da boca de
Deus.
Esta tentação de
satisfação pelos próprios meios e falta de confiança em Deus reflecte-se também
no desejo de acumular, de ter mais que o necessário, de ter uma garantia e
segurança para o dia seguinte, como aconteceu com o povo de Israel no deserto
com o maná.
Contudo, e ainda que o
povo apanhasse mais do que necessitava para se alimentar nada chegava ao dia
seguinte. Tal circunstância tinha o objectivo de despertar no povo a total
confiança em Deus, a confiança na sua protecção, mas tal não se veio a
verificar, como tantas vezes também não se verifica na nossa vida.
A segunda tentação que
se apresenta a Jesus, e que se coloca também a cada um de nós, continua no
mesmo âmbito da confiança, mas agora no sentido do abuso de confiança, daquilo
que podemos chamar de chantagem psicológica a Deus.
A tentação apresentada
a Jesus considera a possibilidade de agir sobre Deus, de obter de Deus sob
pressão o cuidado e o necessário em virtude da filiação divina ou do amor que
Deus tem pelos seus filhos. Deus é colocado à prova no seu amor, no seu cuidado
e atenção para com os homens, como se alguma vez pudesse deixar de estar atento
ou descuidado.
Tal provocação não
deixa de significar uma ruptura, uma vez que não só coloca em causa o cuidado e
amor de Deus, mas sobretudo porque atribui a Deus uma dimensão de menoridade,
de manipulação que lhe retira a dignidade inerente.
Jesus consciente da
possibilidade desta ruptura assume com humildade a sua liberdade, a sua
autonomia, e a transcendência de Deus, que cuida dos seus filhos, que os ama,
mas que não é passível de ser manietado como um joguete ou usado como um kit de
emergência.
Na impossibilidade de
provocar a ruptura com Deus através da quebra de confiança, através da
deturpação das que podemos chamar mediações, a última tentação vai directa ao
coração da questão e desafia Jesus na recusa do divino, na negação de Deus e da
sua paternidade.
É a mentira que
encontramos desde a primeira tentação, o engodo que leva o homem a pensar que
Deus é seu inimigo, que Deus lhe coarcta a sua liberdade, e portanto só pode
ser verdadeiramente homem de costas voltadas para Deus, constituindo-se como
deus. O culto que o homem recusa a Deus passa a ser prestado a si próprio ou a
outras realidades inferiores.
Jesus recusa a oferta
da idolatria, a oferta da sua autonomia longe do Pai, assumindo que só na total
dependência do Pai encontra a sua realização, encontra o seu sentido
existencial. Como filho necessita do pai e como homem necessita do seu criador
como referentes para a sua existência.
A liturgia deste
primeiro domingo da Quaresma apresenta-nos assim a raiz dos nossos pecados, a
recusa da paternidade amorosa de Deus. Neste sentido, sempre que colocamos em
causa a bondade de Deus, a sua misericórdia, a sua providência, sempre que
perdemos a confiança na sua acção e protecção e nos deixamos dominar pelo medo
e pela suspeita estamos a abrir a porta à tentação e à ruptura com Deus.
Necessitamos por isso
estar atentos, vigilantes, e sobretudo cultivar em nós e naqueles que nos
rodeiam um espirito de confiança, dessa confiança que fala São Paulo quando nos
diz que pela justiça de um só nos chega a todos a justificação.
Que o Senhor crie em
nós um coração puro e faça nascer em nós um espirito firme para proclamar os
louvores do seu amor paterno.
Ilustração:
1 – “A tentação de
Jesus”, de Carl Heinrich Bloch, Capela de Frederiksborg Palace, Copenhaga.
2 – “A Tentação de
Jesus”, de Nikolai Ge, Museus Russos.
Frei José Carlos;
ResponderEliminarGrata,pela excelente partilha da Homília do primeiro domingo da Quaresma,tão profunda,que nos dá força para prosseguir esta caminhada de preparação e de conversão,para a Páscoa. Como nos diz o Frei José Carlos...Que o Senhor crie em nós um coração puro e faça nascer em nós um espírito firme para proclamar os louvores do seu amor paterno.Obrigada,pelas belas palavras partilhadas que gostei muito,e pela beleza da ilustração.Que o Senhor o ilumine o guarde e o proteja.Votos de uma santa Quaresma.Desejo-lhe uma boa noite e uma boa semana com paz e alegria.
Um abraço fraterno.
AD
Caro Frei José Carlos,
ResponderEliminarComo nos afirma no texto da Homília do I Domingo da Quaresma …” nesta primeira paragem da caminhada, os textos bíblicos convidam-nos a pensar e a meditar uma realidade profundamente intrínseca à nossa condição humana, as tentações, as diversas possibilidades de ruptura com Deus que nos podem conduzir ao pecado ou que nos podem fortalecer na fidelidade ao mesmo Deus. (…) e
(…) sempre que colocamos em causa a bondade de Deus, a sua misericórdia, a sua providência, sempre que perdemos a confiança na sua acção e protecção e nos deixamos dominar pelo medo e pela suspeita estamos a abrir a porta à tentação e à ruptura com Deus.” …
As tentações assumem características diferentes mas cada uma delas pode conduzir-nos a uma ruptura com Deus, com os outros, a recusar a Luz, o Amor divino, a confiança, a esperança.
Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, profunda, pela importância da sua reflexão, maravilhosamente ilustrada, por exortar-nos a …” estar atentos, vigilantes, e sobretudo cultivar em nós e naqueles que nos rodeiam um espirito de confiança, dessa confiança que fala São Paulo quando nos diz que pela justiça de um só nos chega a todos a justificação.”…
Que o Senhor o cumule de todas as bençãos.
Um abraço mui fraterno e amigo,
Maria José Silva