domingo, 9 de março de 2014

Homília do I Domingo da Quaresma

Estamos a iniciar a Quaresma, este tempo litúrgico que a Igreja e Deus nos oferecem de preparação para a celebração da Páscoa da Ressurreição do Senhor.
E neste primeiro domingo, nesta primeira paragem da caminhada, os textos bíblicos convidam-nos a pensar e a meditar uma realidade profundamente intrínseca à nossa condição humana, as tentações, as diversas possibilidades de ruptura com Deus que nos podem conduzir ao pecado ou que nos podem fortalecer na fidelidade ao mesmo Deus.
O Evangelho de São Mateus que escutámos apresenta-nos as tentações de que Jesus foi alvo, quando depois do baptismo no rio Jordão se dirigiu ao deserto. São possibilidades de ruptura, ofertas à sua liberdade de opção, tentações que o desafiam na revelação que Deus Pai tinha feito no momento do baptismo, “Este é o meu Filho muito amado”.
A primeira tentação coloca-se ao nível da satisfação, da satisfação das próprias necessidades sem a colaboração de outrem. Como todos sabemos, na nossa autonomia e liberdade desejamos não depender de nada nem de ninguém, e é neste sentido que a tentação apresentada a Jesus de transformar as pedras em pão acontece.
É a possibilidade de ruptura com Deus, e até com os outros, no âmbito da confiança, da consciência da dependência mutua. Satisfazendo as nossas próprias necessidades, quer seja de pão, quer seja de amor, não necessitamos dos outros, e como tal vivemos sozinhos e só para nós próprios, negando que é a relação com o outro que nos constrói como pessoas.
Jesus é profundamente assertivo nesta questão e na resposta ao desafio tentador, pois face à tentação de auto satisfação contrapõe a necessidade da Palavra de Deus, de uma palavra e de uma relação. O homem não vive só de pão, mas da Palavra que sai da boca de Deus.
Esta tentação de satisfação pelos próprios meios e falta de confiança em Deus reflecte-se também no desejo de acumular, de ter mais que o necessário, de ter uma garantia e segurança para o dia seguinte, como aconteceu com o povo de Israel no deserto com o maná.
Contudo, e ainda que o povo apanhasse mais do que necessitava para se alimentar nada chegava ao dia seguinte. Tal circunstância tinha o objectivo de despertar no povo a total confiança em Deus, a confiança na sua protecção, mas tal não se veio a verificar, como tantas vezes também não se verifica na nossa vida.
A segunda tentação que se apresenta a Jesus, e que se coloca também a cada um de nós, continua no mesmo âmbito da confiança, mas agora no sentido do abuso de confiança, daquilo que podemos chamar de chantagem psicológica a Deus.
A tentação apresentada a Jesus considera a possibilidade de agir sobre Deus, de obter de Deus sob pressão o cuidado e o necessário em virtude da filiação divina ou do amor que Deus tem pelos seus filhos. Deus é colocado à prova no seu amor, no seu cuidado e atenção para com os homens, como se alguma vez pudesse deixar de estar atento ou descuidado.
Tal provocação não deixa de significar uma ruptura, uma vez que não só coloca em causa o cuidado e amor de Deus, mas sobretudo porque atribui a Deus uma dimensão de menoridade, de manipulação que lhe retira a dignidade inerente.
Jesus consciente da possibilidade desta ruptura assume com humildade a sua liberdade, a sua autonomia, e a transcendência de Deus, que cuida dos seus filhos, que os ama, mas que não é passível de ser manietado como um joguete ou usado como um kit de emergência.
Na impossibilidade de provocar a ruptura com Deus através da quebra de confiança, através da deturpação das que podemos chamar mediações, a última tentação vai directa ao coração da questão e desafia Jesus na recusa do divino, na negação de Deus e da sua paternidade.
É a mentira que encontramos desde a primeira tentação, o engodo que leva o homem a pensar que Deus é seu inimigo, que Deus lhe coarcta a sua liberdade, e portanto só pode ser verdadeiramente homem de costas voltadas para Deus, constituindo-se como deus. O culto que o homem recusa a Deus passa a ser prestado a si próprio ou a outras realidades inferiores.
Jesus recusa a oferta da idolatria, a oferta da sua autonomia longe do Pai, assumindo que só na total dependência do Pai encontra a sua realização, encontra o seu sentido existencial. Como filho necessita do pai e como homem necessita do seu criador como referentes para a sua existência.
A liturgia deste primeiro domingo da Quaresma apresenta-nos assim a raiz dos nossos pecados, a recusa da paternidade amorosa de Deus. Neste sentido, sempre que colocamos em causa a bondade de Deus, a sua misericórdia, a sua providência, sempre que perdemos a confiança na sua acção e protecção e nos deixamos dominar pelo medo e pela suspeita estamos a abrir a porta à tentação e à ruptura com Deus.
Necessitamos por isso estar atentos, vigilantes, e sobretudo cultivar em nós e naqueles que nos rodeiam um espirito de confiança, dessa confiança que fala São Paulo quando nos diz que pela justiça de um só nos chega a todos a justificação.
Que o Senhor crie em nós um coração puro e faça nascer em nós um espirito firme para proclamar os louvores do seu amor paterno.
 
Ilustração:
1 – “A tentação de Jesus”, de Carl Heinrich Bloch, Capela de Frederiksborg Palace, Copenhaga. 
2 – “A Tentação de Jesus”, de Nikolai Ge, Museus Russos.
 

2 comentários:

  1. Frei José Carlos;

    Grata,pela excelente partilha da Homília do primeiro domingo da Quaresma,tão profunda,que nos dá força para prosseguir esta caminhada de preparação e de conversão,para a Páscoa. Como nos diz o Frei José Carlos...Que o Senhor crie em nós um coração puro e faça nascer em nós um espírito firme para proclamar os louvores do seu amor paterno.Obrigada,pelas belas palavras partilhadas que gostei muito,e pela beleza da ilustração.Que o Senhor o ilumine o guarde e o proteja.Votos de uma santa Quaresma.Desejo-lhe uma boa noite e uma boa semana com paz e alegria.
    Um abraço fraterno.
    AD

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  2. Caro Frei José Carlos,

    Como nos afirma no texto da Homília do I Domingo da Quaresma …” nesta primeira paragem da caminhada, os textos bíblicos convidam-nos a pensar e a meditar uma realidade profundamente intrínseca à nossa condição humana, as tentações, as diversas possibilidades de ruptura com Deus que nos podem conduzir ao pecado ou que nos podem fortalecer na fidelidade ao mesmo Deus. (…) e
    (…) sempre que colocamos em causa a bondade de Deus, a sua misericórdia, a sua providência, sempre que perdemos a confiança na sua acção e protecção e nos deixamos dominar pelo medo e pela suspeita estamos a abrir a porta à tentação e à ruptura com Deus.” …
    As tentações assumem características diferentes mas cada uma delas pode conduzir-nos a uma ruptura com Deus, com os outros, a recusar a Luz, o Amor divino, a confiança, a esperança.
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, profunda, pela importância da sua reflexão, maravilhosamente ilustrada, por exortar-nos a …” estar atentos, vigilantes, e sobretudo cultivar em nós e naqueles que nos rodeiam um espirito de confiança, dessa confiança que fala São Paulo quando nos diz que pela justiça de um só nos chega a todos a justificação.”…
    Que o Senhor o cumule de todas as bençãos.
    Um abraço mui fraterno e amigo,
    Maria José Silva

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