Neste segundo domingo
da Quaresma a Liturgia da Palavra, através do Evangelho de São Mateus,
convida-nos a contemplar o mistério da transfiguração de Jesus. Mistério que
podemos situar na caminhada quaresmal como uma garantia para atravessarmos os
momentos de sofrimento e dor da paixão e morte de Jesus. A transfiguração
revela e anuncia já a glória de Jesus ressuscitado.
Contudo, se
contemplarmos este mistério à luz do chamamento de Abraão, que a leitura do
Livro do Génesis nos apresenta, e à luz do chamamento à santidade de que fala
São Paulo na segunda Carta a Timóteo, não podemos restringir o mistério da
transfiguração exclusivamente a Jesus. O mistério da transfiguração diz-nos
respeito a todos.
Neste sentido importa
antes de mais tomar consciência que o acontecimento do monte Tabor, a
transfiguração, revela um homem, uma pessoa totalmente dada a Deus, pessoa que
os três discípulos perceberam e puderam contemplar quando Jesus se colocou em
oração.
Foi nesse momento e
nessa experiência que se revelou a profunda união de Jesus com Deus Pai, que se
manifestou a luz que irradia dessa mesma união, luz que certamente alguns de
nós já experimentámos no brilho dos olhos e na alegria luminosa do corpo de
alguém que reza verdadeiramente.
Esta experiência, que
fazemos nas nossas limitações humanas, Jesus viveu-a em plenitude e totalidade,
mostrando-nos através dela que é possível na nossa condição humana, nas nossas
limitações, também chegar a vivê-la.
A transfiguração de
Jesus no monte Tabor revela-nos assim o que o mesmo Jesus assumiu em outro
lugar e depois São Paulo não deixou de reiteradamente assinalar, que o nosso
corpo é templo de Deus, é habitação de Deus, e portanto é na nossa carne humana
que se manifesta a glória de Deus.
O que aconteceu com
Jesus na transfiguração é afinal a revelação do que é verdadeiramente o corpo
humano, o corpo humano segundo os desígnios da criação divina, um espaço e um
modo da habitação de Deus. Deus vive no homem, Deus criou o homem para a sua
habitação mais perfeita.
A transfiguração não
se trata assim apenas de um prodígio, de um mistério, mas da revelação do que
somos à luz do projecto de Deus, do que é cada homem quando acolhe o convite de
Deus e se assume como morada de Deus.
Neste sentido, o corpo
humano é o que nos liga definitivamente a Deus, uma vez que o corpo humano de
Jesus, o corpo que assumiu ao fazer-se homem como os homens excepto no pecado,
foi habitado pela presença de Deus, foi presença de Deus entre os homens. E na
transfiguração de Jesus todos os corpos humanos foram transfigurados, ou,
usando uma linguagem moderna, foram reconfigurados com o seu programa inicial
de serem habitação de Deus.
Esta condição, esta
natureza, coloca-nos desafios e compromissos que não podem deixar de ser tidos
em conta, como o cuidado com o nosso corpo, a atenção que lhe prestamos. Não um
cuidado idolátrico, como se o nosso corpo fosse o nosso deus, mas como templo
de Deus, e portanto digno de toda a veneração e atenção. Um cuidado exigente
que conduz à manifestação da divindade que o habita e transfigura.
Por outro lado, esta
condição transfigurada do nosso corpo conduz-nos a uma santidade, como nos
convida São Paulo, que não abdica do corpo e das suas potencialidades e
fragilidades, a uma vida espiritual que não pode ser uma fuga do corpo ou do
mundo, uma desencarnação.
Com a transfiguração,
mesmo a dor e o sofrimento são possibilidades da manifestação gloriosa da
presença de Deus em nós. E por isso São Boaventura num Sermão sobre Santa Maria
Madalena diz que, se há algo que os homens podem oferecer a Deus, e os anjos
amam ardentemente mas são incapazes de oferecer na sua natureza espiritual, são
as suas lágrimas humanas.
Por outro lado, a
transfiguração que a partir de Jesus nos transfigura possibilita-nos as
oportunidades de sermos bênção para os outros, tal como Abraão foi para todos
os povos. Pelo nosso corpo humano podemos abençoar e levar a bênção de Deus a
todos aqueles que se encontram connosco, podemos ser medianeiros da presença
viva de Deus.
Neste tempo da
Quaresma, em que a Igreja nos convida à oração, ao jejum, e à esmola,
procuremos viver essas mediações como formas de nos encontrarmos e nos
consciencializarmos da habitação de Deus em nós e nos nossos irmãos. A esmola
proporciona-nos a possibilidade de ser bênção, o jejum de tomarmos consciência
das nossas idolatrias corporais, e a oração de purificar a presença da luz
divina em cada um de nós.
Procuremos pois
vivê-las de forma mais intensa e consciente das suas potencialidades
transfigurantes.
1 – “Transfiguração”, de Lodovico Carracci.
2 – Desenhos de Rafaello Sanzio para a Transfiguração.
Caro Frei José Carlos,
ResponderEliminarOntem quando tive oportunidade de ler o texto da Homília do II Domingo da Quaresma que teceu senti uma profunda alegria pela interpretação que faz da experiência da transfiguração de Jesus em articulação com a condição humana, a sua reconfiguração, e consequentemente, a importância do corpo humano e os “cuidados necessários”, sem “idolatrias”, mas como o “habitat” que desejamos que seja a morada, o templo de Deus. Sabendo muito pouco, considero que o texto que elaborou é profundo, singular. Não é abstracto. Toca-nos na nossa condição humana.
Permita-me que respigue algumas passagens do texto que me tocam.
…”O mistério da transfiguração diz-nos respeito a todos.
Neste sentido importa antes de mais tomar consciência que o acontecimento do monte Tabor, a transfiguração, revela um homem, uma pessoa totalmente dada a Deus, …”
…”A transfiguração de Jesus no monte Tabor revela-nos assim o que o mesmo Jesus assumiu em outro lugar e depois São Paulo não deixou de reiteradamente assinalar, que o nosso corpo é templo de Deus, é habitação de Deus, e portanto é na nossa carne humana que se manifesta a glória de Deus.”
…”Deus vive no homem, Deus criou o homem para a sua habitação mais perfeita.
A transfiguração não se trata assim apenas de um prodígio, de um mistério, mas da revelação do que somos à luz do projecto de Deus, do que é cada homem quando acolhe o convite de Deus e se assume como morada de Deus.
Neste sentido, o corpo humano é o que nos liga definitivamente a Deus, uma vez que o corpo humano de Jesus, o corpo que assumiu ao fazer-se homem como os homens excepto no pecado, foi habitado pela presença de Deus, foi presença de Deus entre os homens.”…
Grata, Frei José Carlos, pela partilha do texto da Homília, corajoso, desafiante e desafiador, por recordar-nos que …” Pelo nosso corpo humano podemos abençoar e levar a bênção de Deus a todos aqueles que se encontram connosco, podemos ser medianeiros da presença viva de Deus”. …
Obrigada pelas ilustrações. Que o Senhor o cumule de todas as bênçãos.
Votos de um bom dia, de uma boa semana.
Um abraço mui fraterno e amigo,
Maria josé Silva