O Evangelho de São Mateus
que escutámos apresenta-nos um acontecimento que de certa maneira nos pode
escandalizar e desconcertar, uma vez que nos confrontamos com um Jesus
distante, insensível às necessidades da mulher cananeia, o mesmo Jesus que em
outras situações sempre esteve atento e foi solícito para com aqueles que lhe pediam
ajuda.
Tal insensibilidade e
distância têm no entanto sentido se as analisarmos à luz dos acontecimentos que
precedem a passagem de Jesus às terras de Tiro e Sidónia e ao grande objectivo
pedagógico de Jesus para com os seus discípulos, formados alguns deles na
escola do farisaísmo.
Assim sendo, não
podemos deixar de ter presente que, antes de se retirar para Tiro e Sidónia, Jesus
tem um aceso debate com os fariseus sobre o puro e o impuro, sobre o que torna
o homem impuro face à lei e face aos olhos de Deus.
Ao retirar-se para as
terras pagãs, terras impuras nas quais se concentravam aqueles que tinham sido
expulsos aquando da conquista da terra prometida, Jesus protege-se de certa
forma dos fariseus que o poderiam perseguir em virtude das suas palavras, mas
coloca-se também em circunstância de provocar os discípulos face às palavras
proferidas.
O silêncio de Jesus
face ao pedido de socorro daquela mulher cananeia é assim pedagógico, um meio
para iluminar os discípulos, porque desde o primeiro momento que aquela mulher
se lhe dirige com palavras que não o podiam deixar insensível. Ao gritar por
Jesus como Senhor e Filho de David, a mulher cananeia, ainda que estrangeira,
manifesta já uma fé que os discípulos ainda não tinham alcançado e os fariseus do
debate precedente se recusavam a assumir.
O silêncio de Jesus e
a resposta face ao pedido dos discípulos para que atenda a mulher visa apenas
colocar esses mesmos discípulos face ao direito que a mulher tem ou não tem de
ser atendida. Afinal aquela mulher estrangeira tinha que ser considerada
impura, pelo facto de ser estrangeira, ou pelo contrário, pela fé e pela
misericórdia que manifestava nas suas palavras tinha o direito de ser
considerada pura, ainda que estrangeira e pagã? Voltamos à questão do debate com
os fariseus, ou seja, o que torna impuro o homem é o que é exterior ou o que
nasce no seu coração?
Como em tantas outras
situações os discípulos não perceberam nada, pelo contrário manifestam apenas
as suas raízes farisaicas, a sua preocupação face ao que os outros poderiam
pensar ao verem o mestre ser importunado e perseguido por uma mulher pagã em
altos berros. Estão preocupados com a imagem, com o que os outros podem pensar,
mais que com a verdadeira situação da mulher.
Diante deste impasse e
da incompreensão dos discípulos, Jesus não pode deixar de atender a mulher, uma
vez que ela manifesta nos seus gestos e nas suas palavras mais compaixão e misericórdia
que os seus discípulos. Ao dirigir-se a Jesus, que para ela era igualmente um
estrangeiro, a mulher rompe as barreiras da crença, dos preceitos religiosos,
da fronteira dogmática, para abrir uma oportunidade através da manifestação da
sua bondade.
Podemos dizer que,
pela sua compaixão para com a filha que sofre, a mulher contagia Jesus, vence
aquele que é manifestação de misericórdia pelo seu amor de mãe. O seu
sofrimento alcança Jesus que não pode permanecer distante nem insensível, ele
que também sofre com a rejeição por parte dos seus.
O encontro de Jesus
com a mulher cananeia é assim para cada um de nós, e antes de mais, um desafio
na abertura dos nossos preconceitos e exclusões, um desafio na saída das nossas
zonas de conforto, para nos encontrarmos com o outro.
O encontro de Jesus
com a cananeia é um desafio aos nossos juízos, à forma como tantas vezes
valorizamos os outros e nos deixamos encerrar pelos desvios dos outros, pelos
seus erros e faltas, por aquilo que podemos designar como os nossos “dogmas”, e
que inviabilizam a compreensão do outro e a misericórdia a que o Senhor nos
convida.
O encontro de Jesus
com a mulher cananeira é igualmente um desafio à nossa constância, à forma como
permanecemos fiéis, um desafio à nossa audácia nas súplicas que dirigimos a
Deus, as quais não podem distanciar-se da misericórdia e do amor, pois só
marcadas por esse timbre estão em consonância com Aquele a quem suplicamos e
pedimos ajuda.
Procuremos pois aproveitar
todos os obstáculos que se nos apresentam, os silêncios de Deus, para fazer crescer
e fortalecer a nossa relação com Ele, para pela compaixão e bondade para com os
outros manifestar a sintonia em que nos encontramos com a misericórdia divina
que vem em auxílio das nossas fraquezas. Confiança e audácia!
1 – A Cananeia num confessionário da igreja de Saint Gallen na Suíça.
2 – A Cananeia, iluminura das Très Riches Heures du Duc de Berry.
Caro Frei José Carlos,
ResponderEliminarComo começa por afirmar no texto da Homilia do XX Domingo do Tempo Comum o comportamento de Jesus face ao pedido da mulher cananeia e dos discípulos numa primeira abordagem não pode deixar de nos surpreender. O próprio diálogo entre ambos surpreende-nos, perspassado de certo humor. Mas como nos salienta, Jesus não fica indiferente ao pedido daquela mãe e, revela-se o Jesus que é, do Amor e da Misericórdia universal.
Não importa se a mulher cananeia é estrangeira, pagã, conhecedora profunda da Palavra de Deus, cumpridora de todos os rituais, impura aos olhos dos outros. A mulher cananeia pela forma como se dirige a Jesus mostra que é uma mulher de fé e de misericórdia como nos recorda no texto.
O excerto do Evangelho de São Mateus e a Homilia que teceu leva-nos a revermos os nossos julgamentos, as nossas ideias pré-concebidas, as nossas atitudes para com o nosso próximo. A pureza é interior. É pelo que afirmamos, pelas palavras que proferimos que nos tornamos “impuros”, as quais, por vezes, ferem mais do que de pedras invisíveis se tratasse. Revelamo-nos pelo que somos interiormente, no intímo do nosso ser e não pelo que dizemos ser ou possuir.
Como nos salienta ...” O encontro de Jesus com a cananeia é um desafio aos nossos juízos, à forma como tantas vezes valorizamos os outros e nos deixamos encerrar pelos desvios dos outros, pelos seus erros e faltas, por aquilo que podemos designar como os nossos “dogmas”, e que inviabilizam a compreensão do outro e a misericórdia a que o Senhor nos convida (…), à nossa constância, à forma como permanecemos fiéis, um desafio à nossa audácia nas súplicas que dirigimos a Deus, as quais não podem distanciar-se da misericórdia e do amor, pois só marcadas por esse timbre estão em consonância com Aquele a quem suplicamos e pedimos ajuda”....
Que o Senhor nos ensine a compaixão, o cuidado e a percorrer a estrada da misericórdia.
Grata, Frei José Carlos, pela partilha do texto da Homilia, profunda, esclarecedora, que nos desinstala, por nos exortar a …” aproveitar todos os obstáculos que se nos apresentam, os silêncios de Deus, para fazer crescer e fortalecer a nossa relação com Ele”…
Bem-haja. Que o Senhor o ilumine, o abençoe e o guarde.
Votos de boa semana. Bom descanso.
Um abraço mui fraterno,
Maria José Silva