domingo, 17 de agosto de 2014

Homilia do XX Domingo do Tempo Comum

O Evangelho de São Mateus que escutámos apresenta-nos um acontecimento que de certa maneira nos pode escandalizar e desconcertar, uma vez que nos confrontamos com um Jesus distante, insensível às necessidades da mulher cananeia, o mesmo Jesus que em outras situações sempre esteve atento e foi solícito para com aqueles que lhe pediam ajuda.
Tal insensibilidade e distância têm no entanto sentido se as analisarmos à luz dos acontecimentos que precedem a passagem de Jesus às terras de Tiro e Sidónia e ao grande objectivo pedagógico de Jesus para com os seus discípulos, formados alguns deles na escola do farisaísmo.
Assim sendo, não podemos deixar de ter presente que, antes de se retirar para Tiro e Sidónia, Jesus tem um aceso debate com os fariseus sobre o puro e o impuro, sobre o que torna o homem impuro face à lei e face aos olhos de Deus.
Ao retirar-se para as terras pagãs, terras impuras nas quais se concentravam aqueles que tinham sido expulsos aquando da conquista da terra prometida, Jesus protege-se de certa forma dos fariseus que o poderiam perseguir em virtude das suas palavras, mas coloca-se também em circunstância de provocar os discípulos face às palavras proferidas.
O silêncio de Jesus face ao pedido de socorro daquela mulher cananeia é assim pedagógico, um meio para iluminar os discípulos, porque desde o primeiro momento que aquela mulher se lhe dirige com palavras que não o podiam deixar insensível. Ao gritar por Jesus como Senhor e Filho de David, a mulher cananeia, ainda que estrangeira, manifesta já uma fé que os discípulos ainda não tinham alcançado e os fariseus do debate precedente se recusavam a assumir.
O silêncio de Jesus e a resposta face ao pedido dos discípulos para que atenda a mulher visa apenas colocar esses mesmos discípulos face ao direito que a mulher tem ou não tem de ser atendida. Afinal aquela mulher estrangeira tinha que ser considerada impura, pelo facto de ser estrangeira, ou pelo contrário, pela fé e pela misericórdia que manifestava nas suas palavras tinha o direito de ser considerada pura, ainda que estrangeira e pagã? Voltamos à questão do debate com os fariseus, ou seja, o que torna impuro o homem é o que é exterior ou o que nasce no seu coração?
Como em tantas outras situações os discípulos não perceberam nada, pelo contrário manifestam apenas as suas raízes farisaicas, a sua preocupação face ao que os outros poderiam pensar ao verem o mestre ser importunado e perseguido por uma mulher pagã em altos berros. Estão preocupados com a imagem, com o que os outros podem pensar, mais que com a verdadeira situação da mulher.
Diante deste impasse e da incompreensão dos discípulos, Jesus não pode deixar de atender a mulher, uma vez que ela manifesta nos seus gestos e nas suas palavras mais compaixão e misericórdia que os seus discípulos. Ao dirigir-se a Jesus, que para ela era igualmente um estrangeiro, a mulher rompe as barreiras da crença, dos preceitos religiosos, da fronteira dogmática, para abrir uma oportunidade através da manifestação da sua bondade.
Podemos dizer que, pela sua compaixão para com a filha que sofre, a mulher contagia Jesus, vence aquele que é manifestação de misericórdia pelo seu amor de mãe. O seu sofrimento alcança Jesus que não pode permanecer distante nem insensível, ele que também sofre com a rejeição por parte dos seus.
O encontro de Jesus com a mulher cananeia é assim para cada um de nós, e antes de mais, um desafio na abertura dos nossos preconceitos e exclusões, um desafio na saída das nossas zonas de conforto, para nos encontrarmos com o outro.
O encontro de Jesus com a cananeia é um desafio aos nossos juízos, à forma como tantas vezes valorizamos os outros e nos deixamos encerrar pelos desvios dos outros, pelos seus erros e faltas, por aquilo que podemos designar como os nossos “dogmas”, e que inviabilizam a compreensão do outro e a misericórdia a que o Senhor nos convida.
O encontro de Jesus com a mulher cananeira é igualmente um desafio à nossa constância, à forma como permanecemos fiéis, um desafio à nossa audácia nas súplicas que dirigimos a Deus, as quais não podem distanciar-se da misericórdia e do amor, pois só marcadas por esse timbre estão em consonância com Aquele a quem suplicamos e pedimos ajuda.
Procuremos pois aproveitar todos os obstáculos que se nos apresentam, os silêncios de Deus, para fazer crescer e fortalecer a nossa relação com Ele, para pela compaixão e bondade para com os outros manifestar a sintonia em que nos encontramos com a misericórdia divina que vem em auxílio das nossas fraquezas. Confiança e audácia!

 
Ilustração:
1 – A Cananeia num confessionário da igreja de Saint Gallen na Suíça.
2 – A Cananeia, iluminura das Très Riches Heures du Duc de Berry.

1 comentário:

  1. Caro Frei José Carlos,

    Como começa por afirmar no texto da Homilia do XX Domingo do Tempo Comum o comportamento de Jesus face ao pedido da mulher cananeia e dos discípulos numa primeira abordagem não pode deixar de nos surpreender. O próprio diálogo entre ambos surpreende-nos, perspassado de certo humor. Mas como nos salienta, Jesus não fica indiferente ao pedido daquela mãe e, revela-se o Jesus que é, do Amor e da Misericórdia universal.
    Não importa se a mulher cananeia é estrangeira, pagã, conhecedora profunda da Palavra de Deus, cumpridora de todos os rituais, impura aos olhos dos outros. A mulher cananeia pela forma como se dirige a Jesus mostra que é uma mulher de fé e de misericórdia como nos recorda no texto.
    O excerto do Evangelho de São Mateus e a Homilia que teceu leva-nos a revermos os nossos julgamentos, as nossas ideias pré-concebidas, as nossas atitudes para com o nosso próximo. A pureza é interior. É pelo que afirmamos, pelas palavras que proferimos que nos tornamos “impuros”, as quais, por vezes, ferem mais do que de pedras invisíveis se tratasse. Revelamo-nos pelo que somos interiormente, no intímo do nosso ser e não pelo que dizemos ser ou possuir.
    Como nos salienta ...” O encontro de Jesus com a cananeia é um desafio aos nossos juízos, à forma como tantas vezes valorizamos os outros e nos deixamos encerrar pelos desvios dos outros, pelos seus erros e faltas, por aquilo que podemos designar como os nossos “dogmas”, e que inviabilizam a compreensão do outro e a misericórdia a que o Senhor nos convida (…), à nossa constância, à forma como permanecemos fiéis, um desafio à nossa audácia nas súplicas que dirigimos a Deus, as quais não podem distanciar-se da misericórdia e do amor, pois só marcadas por esse timbre estão em consonância com Aquele a quem suplicamos e pedimos ajuda”....
    Que o Senhor nos ensine a compaixão, o cuidado e a percorrer a estrada da misericórdia.
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha do texto da Homilia, profunda, esclarecedora, que nos desinstala, por nos exortar a …” aproveitar todos os obstáculos que se nos apresentam, os silêncios de Deus, para fazer crescer e fortalecer a nossa relação com Ele”…
    Bem-haja. Que o Senhor o ilumine, o abençoe e o guarde.
    Votos de boa semana. Bom descanso.
    Um abraço mui fraterno,
    Maria José Silva

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