domingo, 8 de dezembro de 2013

Homilia da Solenidade da Imaculada Conceição Domingo II do Advento

Neste segundo domingo do Advento celebramos em Portugal, por indulto especial da Santa Sé, a Solenidade da Imaculada Conceição, mistério da história da salvação que adquiriu em Portugal um significado particular quando após a restauração da independência em 1640 a nação foi colocada sob a protecção tutelar da Imaculada Conceição.
Desta forma neste segundo domingo do Advento não nos confrontamos com a figura extraordinária de João Baptista, com a sua pregação ardente e vigorosa à conversão, mas somos convidados a contemplar a anunciação do anjo Gabriel a Maria, que não deixa também de ser um convite à nossa conversão.
Neste sentido, a Liturgia da Palavra apresenta-nos na primeira leitura o texto do Livro do Génesis em que nos é narrado o encontro do homem com Deus após a transgressão do pecado. É um texto sem qualquer carácter histórico, poderíamos dizer que é um texto mítico, mas que ainda assim não deixa de ter presente, e bem presente, a dimensão humana na sua historicidade.
Não se trata portanto do pecado de um homem, do pecado de Adão, mas da situação em que toda a humanidade se encontra quando se afasta do plano de Deus, quando se centra em si própria e esquece os outros, nos quais está incluído o próprio Deus.
As perguntas de Deus no encontro com o homem são assim o ponto de partida para a revelação da situação do homem, num primeiro momento relativamente a si próprio e posteriormente face aos outros e a Deus representados pela mulher.
O medo e a vergonha que o homem sente por estar nu e se encontrar com Deus revelam que houve no seu interior uma ruptura, que há uma perturbação interior fruto da consciência de ter transgredido as normas dadas para habitar no paraíso. O homem manifesta assim a sua culpa, manifesta que o mal é fruto apenas da sua avareza, do seu desejo de ser como o seu criador, da sua reivindicação de autonomia.
Confrontado com a responsabilidade dos seus actos, num movimento de cobardia, o homem atira com as culpas para a mulher e através dela para o próprio Deus, pois se a mulher lhe apresentou o fruto proibido foi Deus que antes apresentou a mulher ao homem. Em suma, para o homem que transgride a culpa é de Deus.  
Esta libertação da culpa pessoal, da responsabilidade dos actos cometidos, a transferência para o outro, neste caso para a mulher, da responsabilidade, rompe a unidade inicial, quebra a solidariedade primordial quando o homem reconhece a mulher como carne da sua carne e ossos dos seus ossos, assim como quebra a relação com Deus que é o outro pleno, aquele a cuja semelhança o homem foi criado.
A transgressão de Adão e Eva que o Livro dos Génesis nos apresenta coloca-nos assim face à nossa tentação comum, à desresponsabilização dos nossos actos, com a consequente culpabilização dos outros, nos quais se inclui Deus.
Importa por isso perguntar, nesta caminhada de Advento, se o mal de que tantas vezes nos queixamos não é fruto da nossa acção irresponsável, da nossa culpabilização dos outros, do nosso egoísmo e auto-suficiência que nos encerra e isola.
São Paulo na Carta aos Romanos aponta-nos como remédio para a cura deste egoísmo e auto-suficiência a alimentação dos mesmos sentimentos de Jesus Cristo, a libertação dos nossos centrismos para que que nos possamos fixar nos outros. Trata-se de glorificar Deus pelo acolhimento e reconhecimento dos outros que são sua imagem e semelhança.
Neste sentido, a resposta de Maria ao anjo no momento da anunciação é para nós um exemplo e um estímulo, pois Maria acolhe a novidade da proposta que lhe é feita da parte de Deus assumindo toda a responsabilidade e todo o risco, não diferindo para ninguém nem para mais tarde a responsabilidade. Maria assume inteiramente o projecto de Deus e ao fazê-lo descentra-se totalmente de si própria e dos seus projectos pessoais para que deste modo o projecto de Deus possa livremente avançar.
Como todo o chamamento vocacional bíblico, e este é mais um deles, Maria não deixa de colocar dúvidas, não deixa de interrogar a viabilidade face às limitações de que tem consciência, mas é também aí que ela se manifesta cheia de graça, que é imaculada, pois nada reserva para si, nada opõe ao plano de Deus, pelo contrário oferece-se como aquela que está ao serviço do outro, totalmente ao serviço do outro.
Se João Baptista exortava os seus ouvintes a aplanarem os caminhos e veredas para a vinda do Senhor, Maria ao aceitar ser mãe do Salvador exorta-nos também a retirar da nossa vida e da nossa consciência tudo o que possa ser obstáculo à vinda do Senhor, à sua gestação no nosso coração e na nossa vida.
Somos convidados a ser acolhedores, a abrir as portas do nosso coração, da nossa vida, das nossas relações, para que Deus venha, para que Deus nasça, para que já não nos seja feita a pergunta como a Adão “onde estás”, mas nos seja dito “eu estou contigo até ao fim dos tempos”.

 
Ilustração:
1 – “Adão e Eva”, de Domenico Zampieri, Museu de Grenoble.
2 – “Anunciação”, de Rogier van der Weyden, Alte Pinakothek, Munique.

2 comentários:

  1. Caro Frei José Carlos,

    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homília do II Domingo do Advento em que celebrámos a Solenidade da Imaculada Conceição, texto esclarecedor e interessante. Profunda e bela Homília.
    Como nos salienta …”a resposta de Maria ao anjo no momento da anunciação é para nós um exemplo e um estímulo, pois Maria acolhe a novidade da proposta que lhe é feita da parte de Deus assumindo toda a responsabilidade e todo o risco, não diferindo para ninguém nem para mais tarde a responsabilidade.”…
    Saibamos aceitar o convite/desafio que nos faz para descentrar-nos a fim de que estarmos disponíveis …”a ser acolhedores, a abrir as portas do nosso coração, da nossa vida, das nossas relações, para que Deus venha, para que Deus nasça, para que já não nos seja feita a pergunta como a Adão “onde estás”, mas nos seja dito “eu estou contigo até ao fim dos tempos”.”
    Que o Senhor o cumule de todas as graças.
    Um abraço fraterno e amigo,
    Maria José Silva

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  2. Frei José Carlos,

    Agradeço-lhe a Homília da Solenidade da Imaculada Conceição e Domingo II do Advento,maravilhosamente bela,profunda e esclarecedora e pela beleza da sua ilustração. Fiquei maravilhada com a Liturgia da Palavra, que nos ajudou à nossa reflexão,no começo da segunda semana do Advento.Obrigada,Frei José Carlos,pelas palavras partilhadas,tão ricas de sentido,gostei.Que o Senhor o ilumine o proteja e o abençoe.Desejo-lhe uma boa noite.Bom descanso.Bem-haja.
    Um abraço fraterno.
    AD

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