domingo, 11 de maio de 2014

Homilia do IV Domingo do Tempo Pascal

Este quarto domingo do Tempo Pascal marca uma inflexão na leitura do Evangelho, uma vez que deixamos de estar centrados nos relatos da manifestação de Jesus ressuscitado, como tem acontecido até hoje, e passamos a estar orientados para a grande festa do Pentecostes que encerra o Tempo Pascal. A leitura dos Actos dos Apóstolos, com o discurso de Pedro, abre-nos já esta perspectiva na medida em que Pedro apela à conversão e ao acolhimento do dom do Espirito Santo.
O discurso de Pedro nos Actos dos Apóstolos é também o ponto de partida para uma compreensão da mensagem deste domingo que chamamos do Bom Pastor e no qual a Igreja desde há cinquenta e um anos convida a rezar e a reflectir sobre as vocações.
Discurso que ocorre na manhã da festa do Pentecostes judaico, quando a comunidade celebrava o dom da Lei, dos mandamentos oferecidos ao povo por Deus para a sua glória. A festa e a memória do dom despertavam inevitavelmente a questão do Messias, e perante essa questão Pedro apresenta Jesus como a resposta que todos ansiavam.
O processo inerente ao discurso de Pedro, e ao relato dos Actos dos Apóstolos, dá-nos uma imagem do que podemos chamar o processo vocacional no seu sentido mais simples, abrangente. Face à novidade de Jesus, que Deus fez Senhor e Messias, o coração perturba-se, alegra-se, e dispõe-se a perguntar o que fazer. A resposta dada por Pedro conduz-nos obrigatoriamente a uma mudança de vida, a uma conversão, para que os pecados sejam perdoados e se possa acolher o dom do Espirito Santo.
Contudo, Pedro tem claro que há algo mais em jogo, que a resposta àquela perturbação que se gera no coração, e se pode compreender como um chamamento, acarreta uma dose de sofrimento, um seguimento nos passos que o próprio Jesus nos deixou como exemplo. A mudança de vida, a conversão, e a abertura ao dom do Espirito, implicam e exigem uma cruz e o seu acolhimento.
Este processo, e por esta razão, pode apresentar-se como temível, perigoso, desconfortável, e portanto sem grande capacidade de atracção, sobretudo nos tempos em que nos são oferecidas tantas oportunidades de felicidades, aparentemente sem qualquer tipo de esforço ou desgaste.
Mas é face a estas dificuldades que os Apóstolos nos previnem e animam quando nos dizem que Jesus caminha à nossa frente, tal como o pastor caminha à frente do seu rebanho, tal como porta que nos abre horizontes de liberdade.
Contudo, temos que ter presente que a imagem do pastor que a Carta de São Pedro introduz, e depois se desenvolve no Evangelho de São João através de uma simbiose imagética entre porta, voz e pastor, não é uma imagem romântica nem bucólica, mas uma imagem carregada de força, até de uma certa violência, pois o pastor dá a sua vida pelas ovelhas, está disposto a perder a vida pelas suas ovelhas, e a porta pela qual todos devem sair para seguir a voz do verdadeiro pastor é passagem obrigatória.
Nas parábolas e imagens que o Evangelho de São João nos apresenta do pastor está em jogo um conflito, uma disputa, que se traduz na voz que se segue e na liberdade desse mesmo seguimento. Jesus é a voz, a porta e o pastor, e o seu apelo é inequívoco e imperativo, mas o rebanho tem a liberdade de assumir e escutar essa voz, de a reconhecer e de atravessar a porta.
Podemos por isso perguntar-nos sobre a voz que escutamos, a voz que reconhecemos e procuramos seguir. Num mundo em que a tecnologia nos oferece uma quase total e imediata transmissão, que voz escutamos, reconhecemos e seguimos? E há muitas vozes que, e temos que o assumir honestamente, são mais ruido que vozes. Estaremos nós distraídos com o ruído de fundo e desatentos à voz que nos conhece e reconhece?
Por outro lado temos que questionar-nos sobre o uso da nossa liberdade, se optamos livremente por passar a porta e encontrar as pastagens que nos saciam e alimentam, ou pelo contrário permanecemos encerrados no nosso espaço, naquilo que hoje se denomina “zona de conforto”?
Passar a porta em Jesus significa transpor a nossa vida para os exemplos e modelos que ele próprio nos deixou com a sua vida, na sua experiência humana, significa assumir a nossa humanidade com o que ela comporta de divino e dom para a realização plena e feliz. Jesus fez-se homem para que nós pudéssemos ser filhos de Deus, para pela suas chagas sermos curados das nossas feridas, como nos diz a Carta de São Pedro.
Responder à pergunta “que havemos de fazer”, colocada pelos ouvintes de Pedro na manhã de Pentecostes, exige assim, e antes de mais fazer silêncio, colocar-se à escuta das vozes que enchem o nosso ouvido, e identificada a voz que nos desperta e alegra, que perturba saudavelmente o nosso coração, assumir segui-la, conscientes que este seguimento comporta uma satisfação da vitória sobre cada dificuldade vencida com a graça do Espirito Santo.
A porta abriu-se para cada um de nós na paixão amorosa de Jesus, mas compete-nos passar por ela através de uma opção e decisão realizada em total liberdade.

 
Ilustração:
1 – Pregação de São Pedro, Fresco de Masolino da Panicale na Capela Brancacci, Florença.
2 – Vitral do Bom Pastor na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Tarnobrzeg, Polónia

 

1 comentário:

  1. Caro Frei José Carlos,

    A maioria de cada um de nós, em momentos diversos da vida, perguntámos ou poderemos ter necessidade de questionar como seguir Jesus, como deixar-nos guiar pelo Bom Pastor, ou levar os mais novos, por vezes tão próximos, a tomar a decisão de livremente segui-Lo, caminho que sabemos que não é fácil, numa sociedade de promessas em que tudo é fácil e volatile, em que não temos tempo nem silêncio para o essencial.
    No texto da Homilia do IV Domingo do Tempo Pascal que teceu podemos encontrar a resposta a algumas das nossas dúvidas.
    Como nos salienta …” Jesus é a voz, a porta e o pastor, e o seu apelo é inequívoco e imperativo, mas o rebanho tem a liberdade de assumir e escutar essa voz, de a reconhecer e de atravessar a porta. (…)
    (…) Passar a porta em Jesus significa transpor a nossa vida para os exemplos e modelos que ele próprio nos deixou com a sua vida, na sua experiência humana, significa assumir a nossa humanidade com o que ela comporta de divino e dom para a realização plena e feliz.”…
    E, como nos recorda o primeiro passo a dar, à pergunta “que havemos de fazer”, é fazer silêncio para poder escutar e identificar …” a voz que nos desperta e alegra, que perturba saudavelmente o nosso coração, assumir segui-la, conscientes que este seguimento comporta uma satisfação da vitória sobre cada dificuldade vencida com a graça do Espirito Santo.”…
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha do texto da Homilia, profunda, maravilhosamente ilustrado, que nos dá força, confiança e esperança para transpormos a porta do Senhor que sabemos que é estreita, lembrando-nos que …” A porta abriu-se para cada um de nós na paixão amorosa de Jesus, mas compete-nos passar por ela através de uma opção e decisão realizada em total liberdade.”
    Que o Senhor o ilumine, o abençoe e o guarde.
    Votos de uma boa semana e de um bom dia.
    Um abraço mui fraterno e amigo,
    Maria José Silva

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