Este quarto domingo do
Tempo Pascal marca uma inflexão na leitura do Evangelho, uma vez que deixamos
de estar centrados nos relatos da manifestação de Jesus ressuscitado, como tem
acontecido até hoje, e passamos a estar orientados para a grande festa do Pentecostes
que encerra o Tempo Pascal. A leitura dos Actos dos Apóstolos, com o discurso
de Pedro, abre-nos já esta perspectiva na medida em que Pedro apela à conversão
e ao acolhimento do dom do Espirito Santo.
O discurso de Pedro
nos Actos dos Apóstolos é também o ponto de partida para uma compreensão da
mensagem deste domingo que chamamos do Bom Pastor e no qual a Igreja desde há
cinquenta e um anos convida a rezar e a reflectir sobre as vocações.
Discurso que ocorre na
manhã da festa do Pentecostes judaico, quando a comunidade celebrava o dom da
Lei, dos mandamentos oferecidos ao povo por Deus para a sua glória. A festa e a
memória do dom despertavam inevitavelmente a questão do Messias, e perante essa
questão Pedro apresenta Jesus como a resposta que todos ansiavam.
O processo inerente ao
discurso de Pedro, e ao relato dos Actos dos Apóstolos, dá-nos uma imagem do
que podemos chamar o processo vocacional no seu sentido mais simples,
abrangente. Face à novidade de Jesus, que Deus fez Senhor e Messias, o coração
perturba-se, alegra-se, e dispõe-se a perguntar o que fazer. A resposta dada
por Pedro conduz-nos obrigatoriamente a uma mudança de vida, a uma conversão,
para que os pecados sejam perdoados e se possa acolher o dom do Espirito Santo.
Contudo, Pedro tem
claro que há algo mais em jogo, que a resposta àquela perturbação que se gera
no coração, e se pode compreender como um chamamento, acarreta uma dose de
sofrimento, um seguimento nos passos que o próprio Jesus nos deixou como
exemplo. A mudança de vida, a conversão, e a abertura ao dom do Espirito,
implicam e exigem uma cruz e o seu acolhimento.
Este processo, e por
esta razão, pode apresentar-se como temível, perigoso, desconfortável, e
portanto sem grande capacidade de atracção, sobretudo nos tempos em que nos são
oferecidas tantas oportunidades de felicidades, aparentemente sem qualquer tipo
de esforço ou desgaste.
Mas é face a estas
dificuldades que os Apóstolos nos previnem e animam quando nos dizem que Jesus
caminha à nossa frente, tal como o pastor caminha à frente do seu rebanho, tal
como porta que nos abre horizontes de liberdade.
Contudo, temos que ter
presente que a imagem do pastor que a Carta de São Pedro introduz, e depois se
desenvolve no Evangelho de São João através de uma simbiose imagética entre
porta, voz e pastor, não é uma imagem romântica nem bucólica, mas uma imagem
carregada de força, até de uma certa violência, pois o pastor dá a sua vida
pelas ovelhas, está disposto a perder a vida pelas suas ovelhas, e a porta pela
qual todos devem sair para seguir a voz do verdadeiro pastor é passagem
obrigatória.
Nas parábolas e
imagens que o Evangelho de São João nos apresenta do pastor está em jogo um
conflito, uma disputa, que se traduz na voz que se segue e na liberdade desse
mesmo seguimento. Jesus é a voz, a porta e o pastor, e o seu apelo é inequívoco
e imperativo, mas o rebanho tem a liberdade de assumir e escutar essa voz, de a
reconhecer e de atravessar a porta.
Podemos por isso
perguntar-nos sobre a voz que escutamos, a voz que reconhecemos e procuramos
seguir. Num mundo em que a tecnologia nos oferece uma quase total e imediata
transmissão, que voz escutamos, reconhecemos e seguimos? E há muitas vozes que,
e temos que o assumir honestamente, são mais ruido que vozes. Estaremos nós
distraídos com o ruído de fundo e desatentos à voz que nos conhece e reconhece?
Por outro lado temos
que questionar-nos sobre o uso da nossa liberdade, se optamos livremente por
passar a porta e encontrar as pastagens que nos saciam e alimentam, ou pelo
contrário permanecemos encerrados no nosso espaço, naquilo que hoje se denomina
“zona de conforto”?
Passar a porta em
Jesus significa transpor a nossa vida para os exemplos e modelos que ele
próprio nos deixou com a sua vida, na sua experiência humana, significa assumir
a nossa humanidade com o que ela comporta de divino e dom para a realização
plena e feliz. Jesus fez-se homem para que nós pudéssemos ser filhos de Deus,
para pela suas chagas sermos curados das nossas feridas, como nos diz a Carta
de São Pedro.
Responder à pergunta “que
havemos de fazer”, colocada pelos ouvintes de Pedro na manhã de Pentecostes,
exige assim, e antes de mais fazer silêncio, colocar-se à escuta das vozes que
enchem o nosso ouvido, e identificada a voz que nos desperta e alegra, que
perturba saudavelmente o nosso coração, assumir segui-la, conscientes que este
seguimento comporta uma satisfação da vitória sobre cada dificuldade vencida
com a graça do Espirito Santo.
A porta abriu-se para
cada um de nós na paixão amorosa de Jesus, mas compete-nos passar por ela
através de uma opção e decisão realizada em total liberdade.
1 – Pregação de São Pedro, Fresco de Masolino da Panicale na Capela Brancacci, Florença.
2 – Vitral do Bom Pastor na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Tarnobrzeg, Polónia
Caro Frei José Carlos,
ResponderEliminarA maioria de cada um de nós, em momentos diversos da vida, perguntámos ou poderemos ter necessidade de questionar como seguir Jesus, como deixar-nos guiar pelo Bom Pastor, ou levar os mais novos, por vezes tão próximos, a tomar a decisão de livremente segui-Lo, caminho que sabemos que não é fácil, numa sociedade de promessas em que tudo é fácil e volatile, em que não temos tempo nem silêncio para o essencial.
No texto da Homilia do IV Domingo do Tempo Pascal que teceu podemos encontrar a resposta a algumas das nossas dúvidas.
Como nos salienta …” Jesus é a voz, a porta e o pastor, e o seu apelo é inequívoco e imperativo, mas o rebanho tem a liberdade de assumir e escutar essa voz, de a reconhecer e de atravessar a porta. (…)
(…) Passar a porta em Jesus significa transpor a nossa vida para os exemplos e modelos que ele próprio nos deixou com a sua vida, na sua experiência humana, significa assumir a nossa humanidade com o que ela comporta de divino e dom para a realização plena e feliz.”…
E, como nos recorda o primeiro passo a dar, à pergunta “que havemos de fazer”, é fazer silêncio para poder escutar e identificar …” a voz que nos desperta e alegra, que perturba saudavelmente o nosso coração, assumir segui-la, conscientes que este seguimento comporta uma satisfação da vitória sobre cada dificuldade vencida com a graça do Espirito Santo.”…
Grata, Frei José Carlos, pela partilha do texto da Homilia, profunda, maravilhosamente ilustrado, que nos dá força, confiança e esperança para transpormos a porta do Senhor que sabemos que é estreita, lembrando-nos que …” A porta abriu-se para cada um de nós na paixão amorosa de Jesus, mas compete-nos passar por ela através de uma opção e decisão realizada em total liberdade.”
Que o Senhor o ilumine, o abençoe e o guarde.
Votos de uma boa semana e de um bom dia.
Um abraço mui fraterno e amigo,
Maria José Silva