terça-feira, 27 de abril de 2010

Homilia Domingo IV da Páscoa


A imagem do pastor, e do bom pastor, é nos apresentada pelo Evangelho deste quarto domingo do tempo pascal, uma imagem que para muitos, sobretudo para os mais novos, se pode tornar estranha, desconhecida, pois a nossa vida urbana e a cada vez maior industrialização da agropecuária tem levado ao desaparecimento desta profissão. Não surpreende por isso que, quando um jovem de dezasseis anos numa aldeia do norte diz que quer ser pastor, seja objecto de uma reportagem de um qualquer telejornal, como aconteceu ainda há pouco tempo.
No tempo de Jesus era uma tarefa comum, porque não só havia os pastores, aqueles que profissionalmente guardavam os rebanhos dos grandes senhores e proprietários, como também cada um, no seu ambiente familiar, fazia essa experiência, pois cada família tinha a sua ovelha ou a sua cabra e era necessário levá-la a pastar. Até há poucas décadas atrás em muitas famílias e meios rurais portugueses passava-se o mesmo.
Assim, quando Jesus fala do pastor e do bom pastor os seus ouvintes sabem do que está a falar, têm os mesmos referenciais, para além dos referenciais espirituais e religiosos que também lhes eram comuns. As pastagens verdes e as fontes cristalinas dos Salmos são apenas dois exemplos do muito que podiam ter como referência.
Mas na leitura deste quarto domingo, um trecho do extenso capítulo décimo no qual São João desenvolve esta imagem do pastor, importa salientar o ênfase que Jesus dá à voz, como ela é importante nesta relação do pastor com as ovelhas e do seguimento das mesmas atrás do pastor.
Em outras passagens do Evangelho de São João, Jesus assume-se como a Palavra do Pai, a Palavra que habitava junto do Pai e pela qual tudo tinha sido criado no princípio do mundo. Na criação essa Palavra fez-se voz, uma voz que ainda hoje ressoa aos nossos sentidos, mas que de alguma forma nos distrai da mensagem que veicula, tal é a sua diferença e diversidade. A imagem da expulsão do jardim do paraíso pode muito bem significar essa nossa perda de sintonia com toda a obra criadora e a Palavra que lhe está subjacente.
Por esta razão e para que não nos perdêssemos, desgarrássemos na noite escura dos nossos sentidos, a Palavra fez-se carne e veio habitar entre nós, uma vez mais fez-se voz para que a pudéssemos ouvir. A voz fez-se como nós, assumiu a nossa natureza para que não houvesse interferências nem perturbações na comunicação nem na mensagem que nos transmite, para que a escutássemos em verdadeira qualidade.
Por essa razão Jesus diz que conhece as suas ovelhas e conhece-as pelo seu nome. Conhece-as na medida em que se fez homem como nós, portanto conhece-nos nas nossas limitações e infidelidades, mas também nas nossas virtudes e aspirações de fidelidade; e conhece-nos pelo nosso nome, porque somos seus irmãos e obras da sua mão criadora, e também na medida em que escutando a sua voz nos colocamos em situação de uma relação pessoal e de intimidade com ele.
Escutando a sua voz e seguindo-o entramos num processo que conduz à vida eterna, um processo de salvaguarda, pois Jesus diz que ninguém poderá arrebatar da sua mão aqueles que o escutam, que escutam a sua voz, e o seguem, pois foi o Pai que lhos entregou.
Estas palavras de Jesus, esta garantia, devia deixar-nos uma liberdade de espírito que não é comum em nós, que não é frequente, bem pelo contrário até parece bem rara. Continuamos a infligir-nos sofrimentos, a carregar com pesos de culpas e pecados, esquecidos de que escutando a voz do pastor e seguindo-o já não somos nós que carregamos com essas culpas e esses pecados, pelo contrário, somos carregados aos ombros para que não fiquemos para trás, para que não nos sintamos abandonados nem sem forças para continuar. E quando nos desgarramos nas nossas infidelidades, cheios do pasto que encontramos pela frente, confiantes na protecção da nossa camada de lã, o pastor não desiste de nós e vem ao nosso encontro, vem em nossa busca. Não porque nos queira encerrar no aprisco, nos queira presos, mas porque quer que o sigamos e que nenhum de nós se perca. Ele segue à frente para nos mostrar o caminho, para espantar os lobos e nos defender de qualquer ataque.
No Cântico dos Cânticos a amiga do pastor amado pede que lhe indique o local onde leva a apascentar o rebanho e onde se recolhe ao meio-dia, para não andar errante atrás dos outros. O pastor recomenda-lhe que saia no encalço do rebanho e apascente as suas cabrinhas junto às cabanas dos pastores. É uma recomendação que também nos serve a nós, porque só nos podemos encontrar e seguir o verdadeiro pastor no encalço do conjunto do rebanho, ou seja, no corpo que é a Igreja, e apascentando as nossas cabrinhas, ou seja aquelas que são ainda as nossas dimensões menos purificadas, junto das lições e exemplos, dos textos e palavras, que nos são dados pelos pastores, por aqueles que de alguma fizeram já a experiência de passar pela porta que é o Pastor, o Caminho, a Verdade e a Vida.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,
    É realmente esclarecedor das nossas dúvidas e apaziguador das nossas ansiedades de pecadores o texto desta sua homilia ao iluminar-nos o caminho para uma liberdade de espírito no seguir dos passos do Pastor. E deleita-nos o Pastor porque é o Caminho, a Verdade e a Vida fruto do Amor infinito com que nos guarda e nos conduz à Vida Eterna.
    GVA

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  2. Boa noite Frei José Carlos,

    Na homilia do quarto domingo pascal, partindo do contexto original em que Jesus fala do “pastor e do bom pastor” salienta-nos um aspecto importante “o ênfase que Jesus dá à voz”, e da sua relevância “nesta relação do pastor com as ovelhas e do seguimento das mesmas atrás do pastor”. Vou citar alguns excertos que mais me sensibilizaram e fazem meditar:

    …”a Palavra fez-se carne e veio habitar entre nós, uma vez mais fez-se voz para que a pudéssemos ouvir.”

    …”Conhece-as na medida em que se fez homem como nós, portanto conhece-nos nas nossas limitações e infidelidades, mas também nas nossas virtudes e aspirações de fidelidade; e conhece-nos pelo nosso nome, porque somos seus irmãos e obras da sua mão criadora, e também na medida em que escutando a sua voz nos colocamos em situação de uma relação pessoal e de intimidade com ele.”

    E faz-nos mergulhar, meditando numa teoria da “libertação”, através de uma interpretação que diria “alegórica”: recorda-nos, confortando com a garantia que o “pastor não desiste de nós e vem ao nosso encontro, vem em nossa busca”, (…) “somos carregados aos ombros para que não fiquemos para trás, para que não nos sintamos abandonados nem sem
    forças para continuar.
    E se permite aos “ombros” e/ou ao “colo” como o pastor faz muitas vezes às “ovelhas” com um enorme carinho. Obrigada pelo incentivo que nos deixa e pela exortação final. Bem haja. MJS

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