sábado, 3 de abril de 2010

Noite de contemplação

Tudo está consumado, o sofrimento terminou e o espectáculo também. Aos poucos retiram-se os espectadores de lugar reservado e todos os que tinham vindo arrastados pela confusão e pelo desejo mórbido de ver o outro na sua agonia. Ficam apenas os que cumprem o seu serviço e aqueles poucos que muito amam.
Junto dos condenados os poucos soldados que guardam ainda os corpos, são os que estão de serviço, e apenas desejam que tudo se despache para poderem voltar a casa. A noite vai caindo com uma força surpreendente e o vento tempestuoso parece querer correr com eles.
Junto da cruz de Jesus, sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria mulher de Cléofas e Maria Madalena. Três mulheres que estão ali, ainda que afastadas pela soldadesca, desde que tudo começou. E junto delas um jovem, João, o discípulo amado, um amigo, um irmão e agora um filho. É um grupo estranho, pois é um grupo frágil, sem poder e sem força, um grupo inesperado e imprevisível junto de tanta violência e brutalidade. O contraste é gritante.
Quando os soldados descem da cruz o corpo de Jesus recebem-no com todo o carinho e cuidado, como se fosse o maior tesouro que existe à face da terra. É necessário sepultá-lo, colocá-lo naquele sepulcro novo que se vislumbra por detrás das costas, mas antes disso há ainda coisas a fazer como limpar o corpo e prestar-lhe as últimas homenagens imagináveis e possíveis face ao momento.
Maria, a mãe, segura a cabeça do filho e ternamente limpa-lhe o sangue da coroa de espinhos que lhe colocaram na cabeça. O seu filho, o seu menino, volta aos seus braços, não já cheio de promessas mas com o destino traçado e a missão cumprida. Tudo estava consumado e agora nos seus braços naquele corpo morto acolhe os outros filhos, aqueles que lhe tinham sido entregues em João, naquele jovem tão forte e corajoso. O corpo que segura ternamente nos seus braços já é o corpo dos outros filhos, o corpo da Igreja da qual também ela é filha. Segura também e cuida zelosamente por aquele corpo que será alimento para todos os que acreditarem que ele pode ser alimento de vida.
Maria, sua irmã e mulher de Cléofas, ajuda a limpar o corpo. É mais uma daquelas mulheres que tem acompanhado o grupo dos discípulos. Está ali porque necessita certificar-se de tudo para poder contar ao seu marido. São informações preciosas, porque, ainda que o não saiba, quando mais tarde Cléofas se encontrar a caminho de Emaús com um forasteiro desconhecido e reconhecido, serão estas informações que ele poderá apresentar e confrontar para anunciar a verdade do sucedido. Maria certifica-se do corpo morto, do fim dos projectos de uns quantos que acompanharam Jesus na expectativa e na esperança de um poder e uma ascensão social.
Maria Madalena limpa os pés de Jesus, esses pés junto dos quais ela tinha sido lançada um dia como pecadora, pés que dizem alguns também beijou e limpou com as suas próprias lágrimas e perfumou com uma exorbitância de perfume puro. Madalena cuida os pés daquele que tanto caminhou para nos resgatar a todos da condição de pecadores, para nos erguer da nossa humilhação.
João segura a mão de Jesus, aquela mão que ternamente um dia lhe tinha feito sinal para ir ver onde e como morava, a mão que o tinha chamado para ser discípulo. Segura a mão que poucas horas antes tinha entregue o bocado de pão molhado a Judas, o traidor, a mão que cravada no madeiro se tinha feito fonte para todas as graças, a mão que o afagara quando na ceia da Páscoa repousara sobre aquele peito que agora contempla desfalecido e sem vida.
Junto deste grupo uma outra figura estranha, um intruso se assim se pode dizer, um intruso que contempla aquilo que o grupo faz. E mais não pode fazer que contemplar porque séculos os separam. São Domingos contempla esta cena e estas figuras porque a sua Ordem está presente em cada uma destas figuras, elas representam a vida que os seus irmãos são chamados a viver, a vida da contemplação, de oração, do estudo e da pregação. Tudo está ali e tudo é necessário para compreender o mistério, aquele corpo entregue para sepultar e o cuidado que lhe é prestado.
Como São Domingos, a sua presença é um convite a isso, contemplemos o mistério que nesta noite se nos apresenta, cheio de sombras e escuridão mas também cheio de amor revelador e iluminador.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    Leio e releio o texto que nos oferece para saborear a beleza das palavras mas também para meditar mais uma vez na crueldade do acto e da cena e do seu significado(como alguns aspectos do comportamento humano continuam a repetir-se hoje ...)e que passo transcrever, se me permite: ..."Maria, a mãe, segura a cabeça do filho e ternamente limpa-lhe o sangue da coroa de espinhos que lhe colocaram na cabeça. O seu filho, o seu menino, volta aos seus braços, não já cheio de promessas mas com o destino traçado e a missão cumprida." ...O corpo que segura ternamente nos seus braços já é o corpo dos outros filhos, o corpo da Igreja da qual também ela é filha. Segura também e cuida zelosamente por aquele corpo que será alimento para todos os que acreditarem que ele pode ser alimento de vida." ..."Madalena cuida os pés daquele que tanto caminhou para nos resgatar a todos da condição de pecadores, para nos erguer da nossa humilhação. ..."João segura a mão de Jesus, aquela mão que ternamente um dia lhe tinha feito sinal para ir ver onde e como morava, a mão que o tinha chamado para ser discípulo. Segura a mão que poucas horas antes tinha entregue o bocado de pão molhado a Judas, o traidor, a mão que cravada no madeiro se tinha feito fonte para todas as graças, a mão que o afagara quando na ceia da Páscoa repousara sobre aquele peito que agora contempla desfalecido e sem vida."...

    Transpondo séculos, introduz na contemplação uma outra figura a de São Domingos ..."porque a sua Ordem está presente em cada uma destas figuras, elas representam a vida que os seus irmãos são chamados a viver, a vida da contemplação, de oração, do estudo e da pregação."

    Termina lembrando-nos que "o mistério que nesta noite se nos apresenta, cheio de sombras e escuridão é também cheio de amor revelador e iluminador".Que belas palavras, assertivas, sempre que necessário, que sensbilidade! Muito obrigada por esta partilha.MJS

    P.S. Bom dia Frei José Carlos,
    Obrigada pela compreensão que ajudou a tranquilizar-me. E sou eu que agradeço tudo o que tenho aprendido convosco,
    presencialmente, "on-line". É essa a razão porque continuo os meus esforços para convidar outros(as) a participarem nas vossas eucaristias e outras acções. Bem haja.MJS

    ResponderEliminar
  2. Frei José Carlos,
    As suas palavras aqui divulgadas acompanharam-nas durante a Quaresma e a Semana Santa questionando-nos, sugerindo exames de consciência, motivando-nos para o silêncio, para a meditação, guiando-nos na compreensão de todo este tempo,o que nos ajudou a vivê-lo mais profundamente.
    Hoje toca-nos com a descrição da realidade dos que passam insensivelmente e a dos que muito amam Aquele que dera a vida por nós e jaz nos braços de sua Mãe.D’Ele destaca o rosto da missão cumprida, o corpo que será alimento de vida, a mão que acaricia, que acena chamando para que O sigam, os pés que caminharam pela nossa redenção.
    E pela mão de S. Domingos convida-nos a compreender o mistério desta noite.
    Mais uma vez se nos revela como filho de S. Domingos pelo que nos deixa compreender da sua vida contemplativa, de oração, de estudo e de pregação que partilha connosco.
    Bem haja.
    GVA

    ResponderEliminar