
Assim, ao narrar a traição de Judas, ao dizer que foi ter com os príncipes dos sacerdotes para entregar Jesus por trinta moedas, o evangelista não deixa de frisar que Judas era um dos Doze, um do grupo dos discípulos de Jesus, um daqueles que tinha escolhido e chamado para andar consigo, que tinha partilhado da sua intimidade.
É desta realidade que se desenvolve a traição, mas é também desta realidade que nos podemos ver e nos podemos identificar com Judas. Como chamados por Jesus, cada um à sua maneira, no seu lugar e no seu tempo, fomos chamados com tudo aquilo que temos e somos, com os nossos costados menos bons e os outros melhores. Deus chama-nos a segui-lo na nossa condição, na nossa complexidade e totalidade, não apenas na nossa boa vida, santidade, ainda que seja para a santidade que ele nos chama e nos impele. Deus chama-nos inteiros e quer-nos inteiros para que a sua graça possa agir em nós e transformar-nos. Deus não nos quer super homens, ou super mulheres, quer-nos homens e mulheres que se querem assemelhar cada vez mais a ele.
E por essa razão, porque Deus não desiste de nos assemelhar a Ele, de nos estender a mão, mesmo quando o traímos, é que Jesus no jardim das oliveiras, quando Judas chega com a guarda para o prender, se lhe dirige chamando-o de amigo, “amigo a que vens?”
Tudo estava traçado, não havia volta atrás, mas ainda assim Jesus não desiste de estender a mão, não desiste de oferecer a Judas a sua misericórdia e o seu amor.
“Amigo…”, como é possível ainda chamá-lo de amigo?
Mas a verdade é que Jesus continuou a chamá-lo de amigo e continua a chamar-nos de amigos quando nas nossas fraquezas lhe somos infiéis e o atraiçoamos. E fá-lo porque sabe do que somos feitos, experimentou a nossa condição humana e por isso sabe como é fácil cairmos no desespero, no julgamento e na condenação de nós próprios impedindo-nos e inviabilizando-nos o caminho de regresso. É muito mais fácil permanecermos na nossa noite escura, nas nossas trevas a voltar à luz e ver aí a verdade de nós próprios e das nossas obras.
Contudo, e apesar das trevas, a luz teima em brilhar, teima em vir ao nosso encontro e por isso não podemos deixar de a acolher, porque não há nada, não há miséria maior que não possa ser resgatada por Deus, pelo mistério redentor de Jesus Cristo. Para tal necessitamos não só de uma santa dose de confiança na misericórdia de Deus mas também um reconhecimento e uma aceitação, um consentimento, dos nossos próprios limites no que concerne à fidelidade.
Necessitamos derrubar os nossos limites, as barreiras que construímos para nos protegermos e auto-justificarmos, para que Deus possa entrar, para que a sua misericórdia chegue até nós em toda a sua plenitude. Necessitamos despojar-nos de nós próprios para que Deus nasça ou ressuscite em nós.