sexta-feira, 26 de março de 2010

A força da palavra

Os judeus agarraram em pedras para apedrejar Jesus, estavam não só insatisfeitos com as suas palavras mas completamente chocados e ofendidos por ele se ter feito um com Deus e como Deus. As suas palavras eram uma blasfémia para os seus ouvidos e para a sua religião.
Pergunto-me quantas vezes não reagimos como estes judeus, quantas vezes não consideramos as palavras de Jesus ofensivas, porque nos provocam na nossa infidelidade, na nossa mediocridade, nos ofendem na nossa vaidade egocêntrica e idolátrica.
Perante esta ameaça, este perigo, Jesus confronta-os com as suas obras, deixa de lado a sua palavra e apresenta-lhes o que tinha feito, as curas, os milagres, tudo de extraordinário que muitos deles tinham presenciado ou conheciam por ouvir dizer. Ele tinha feito as coisas bem, tinha feito coisas boas, porque o queriam apedrejar, porque o condenavam?
De facto, e como reconhecem aqueles que tinham pegado em pedras, perante as obras não havia nada a dizer, não havia condenação possível, as obras eram de facto boas, e certamente nada mais se passaria se por detrás delas não houvesse uma palavra, uma palavra de autoridade que se assumia como vinda de Deus, como sendo Deus. Esta era a questão e é a questão ainda para nós.
Porque a realização das nossas obras, obras boas, pode não provocar muito mais que um resultado positivo. Há como que um resultado esperado, contabilizável. Podemos ver isso de alguma forma nas campanhas de solidariedade, em que nos fixamos nos números e no volume, em que a nossa implicação fica de certa forma à superfície. São obras boas e desejáveis, mas são obras que necessitam uma palavra de vida, implicativa, para que possam ser algo mais, um sinal, um signo, como se discute nesta polémica de Jesus com os judeus.
E essa palavra de vida é-nos dada pelo próprio Jesus nesta mesma discussão quando, fazendo referência ao Salmo 82, diz que somos deuses e portanto devíamos agir de acordo com essa natureza.
“Até quando julgareis injustamente e favorecereis a causa dos ímpios? Defendei o oprimido e o órfão, fazei justiça ao humilde e ao pobre. Libertai o oprimido e o necessitado, e defendei-os das mãos dos pecadores. Todos vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo.” (Salmo 82,3-4.6)
A autoridade e o significado das nossas obras radica nesta consciência da divindade que nos é comum, e na medida em que a assumirmos as nossas obras boas serão boas mas também significativas, sinais de uma outra realidade que nos é comum e que só os olhos do coração à luz da fé podem ver.
Foram assim as obras de Jesus e por isso eram um motivo de reconhecimento mas também um motivo para a sua condenação. É fácil praticar as obras quando elas nos ajudam, nos satisfazem e realizam, quando nos deixam envaidecidos pelo bem que praticámos, é contudo muito mais difícil praticar essas mesmas obras quando elas exigem uma renúncia da nossa vaidade, uma aniquilação de nós próprios para que sejam mais que uma obra boa, um sinal de outra realidade, uma redenção para o outro e para nós.
Temos que rever as nossas obras, as menos boas e as boas, para as confrontar com a significatividade divina que lhes devia ser inerente.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,
    Este excerto que transcrevo vem tão ao encontro do que sinto e do que me interrogo em relação àquilo que faço neste momento. Pergunto-me o que fica ao fim do dia, se só a dádiva gratuita do meu tempo, de mim própria...O agradecimento do que sofre, o longo desabafo em busca de consolo e compreensão será sinal de redenção para o outro e para mim? Ofereço tudo ao Pai desinteressadamente?
    "É fácil praticar as obras quando elas nos ajudam, nos satisfazem e realizam, quando nos deixam envaidecidos pelo bem que praticámos, é contudo muito mais difícil praticar essas mesmas obras quando elas exigem uma renúncia da nossa vaidade, uma aniquilação de nós próprios para que sejam mais que uma obra boa, um sinal de outra realidade, uma redenção para o outro e para nós."
    Bem haja por tudo.
    GVA

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  2. Frei José Carlos,

    Deixa-nos como interrogação e meditação que ..." A autoridade e o significado das nossas obras radica nesta consciência da divindade que nos é comum, e na medida em que a assumirmos as nossas obras boas serão boas mas também significativas, sinais de uma outra realidade que nos é comum e que só os olhos do coração à luz da fé podem ver". Mas ... recorda-nos que é "muito mais difícil praticar essas mesmas obras quando elas exigem uma renúncia da nossa vaidade, uma aniquilação de nós próprios para que sejam mais que uma obra boa, um sinal de outra realidade, uma redenção para o outro e para nós." Que difícil este "despojamento" da nossa vaidade, mesquinhez, mediocridade, dos nossos eventuais interesses, quando sabemos e/ou podemos ser solidários! Que longo caminho a percorrer para procedermos como Jesus. Bem haja por nos ajudar a reflectir sobre as nossas atitudes e comportamentos.MJS

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