sábado, 6 de agosto de 2011

Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João (Mt 17,1)

Ao sabermos que Jesus se retirou para um monte apenas com Pedro, Tiago e João, e diante deles se transfigurou, a primeira ideia que nos vem à cabeça é a de predilecção, de um certo favoritismo destes discípulos face aos demais que não tiveram esta oportunidade, e que de acordo com as recomendações de Jesus só muito mais tarde vieram a saber do sucedido.
Podemos contudo questionar esta predilecção, perguntar-nos se a escolha de Jesus foi feita pela positiva ou pela negativa, se este favoritismo não se prende mais com a ambição interior de cada um destes discípulos, ambição que necessitava ser confrontada de uma forma extraordinária.
Pedro é neste sentido verdadeiramente paradigmático, uma vez que quando é convidado a subir ao monte e a testemunhar a transfiguração, vem de uma conversa em que é repreendido por Jesus por causa de o querer afastar do caminho trágico de Jerusalém. Pedro, a quem tinha sido dado o poder do governo, tinha-se já deixado seduzir pela glória desse mesmo poder, não percebendo que o poder derivava do serviço mais que do cargo.
Assim, não estranha que se proponha imediatamente a construir três tendas para que Jesus, Moisés e Elias pudessem permanecer ali, no alto do monte. Pedro tenta sujeitar o invisível aos seus interesses, à sua ambição de o caminho de Jesus não terminar em Jerusalém de uma forma trágica.
Pedro, que tinha escutado Jesus falar da realeza, e de uma forma sarcástica da realeza de Herodes, não percebeu que as palavras e proposta de Jesus iam no sentido contrário da sua concepção, porque era o serviço e a obediência que garantia a verdadeira realeza e poder.
Tiago e João, ainda que indirectamente, estão envolvidos pela mesma concepção, pois a sua mãe não se esquecerá de pedir para cada um deles um lugar de proeminência no governo que esperam que Jesus instaure em Jerusalém. A manifestação que testemunharam no alto do monte não lhes serviu assim de muito para alterar as ideias e aspirações.
Neste sentido, poderíamos dizer que a transfiguração no alto do monte Tabor foi um rotundo fracasso, pois nem Pedro, nem Tiago e João perceberam que Jesus se transfigurava diante deles para que abdicassem das ideias de poder e glória que transportavam, e assumissem que o verdadeiro poder e glória, que eles ali antecipadamente podiam vislumbrar, era consequência da aceitação obediente do aniquilamento e da perda de vida.
Mas apesar do fracasso primário, a transfiguração realiza outra missão que é extremamente importante, e não podemos deixar de ter em conta; não só porque influiu na vida dos discípulos, e influi na nossa também como discípulos, mas sobretudo porque processa uma viragem na vivência da relação pessoal com Jesus.
Assim, à visão e aos dados objectivos alcançados pelo acompanhamento e pela partilha do dia a dia, os discípulos são convidados pela voz do Pai a sobrepor a escuta, o sentido da audição. Este é o meu Filho muito amado, escutai-o! Os discípulos estão a ver o Filho, podem vê-lo na sua glória, mas para o compreenderem verdadeiramente devem escutá-lo.
Uma vez mais a revelação procura superar as vias da idolatria, potenciadas pela visão e toda a visibilidade dos gestos, curas e milagres. Não é aí que verdadeiramente reside a novidade da presença divina, mas na palavra, na atenção dada ao que o outro diz e nos possibilita de relação através do que diz. São João percebeu isto claramente quando nos transmitiu que “a Palavra se fez carne”.
Resulta daqui um desafio tremendo para os discípulos, para qualquer discípulo e em qualquer tempo, porque a via da apropriação de Deus é a escuta mais que a visão. E para escutar necessitamos calar, necessitamos silêncio, necessitamos recolher-nos do ruído do mundo e do nosso próprio ruído, para que a voz se faça ouvir e a Palavra se faça carne.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Leio e reflicto no texto da Meditação que partilha connosco. É importante e interessante a forma como nos demonstra que a transfiguração de Jesus no monte Tabor não foi um verdadeiro fracasso para os discípulos, ainda que numa primeira leitura tal se pudesse concluir.
    Como nos salienta, ...”apesar do fracasso primário, a transfiguração realiza outra missão que é extremamente importante, e não podemos deixar de ter em conta; não só porque influiu na vida dos discípulos, e influi na nossa também como discípulos, mas sobretudo porque processa uma viragem na vivência da relação pessoal com Jesus.
    Assim, à visão e aos dados objectivos alcançados pelo acompanhamento e pela partilha do dia a dia, os discípulos são convidados pela voz do Pai a sobrepor a escuta, o sentido da audição. Este é o meu Filho muito amado, escutai-o! Os discípulos estão a ver o Filho, podem vê-lo na sua glória, mas para o compreenderem verdadeiramente devem escutá-lo.” …
    Obrigada por nos deixar como reflexão e desafio a afirmação que nos faz que ...” para os discípulos, para qualquer discípulo e em qualquer tempo, a via da apropriação de Deus é a escuta mais que a visão. E para escutar necessitamos calar, necessitamos silêncio, necessitamos recolher-nos do ruído do mundo e do nosso próprio ruído, para que a voz se faça ouvir e a Palavra se faça carne.”
    Obrigada, Frei José Carlos, pela partilha desta profunda Meditação que ilustrou de forma tão bela. Bem-haja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva
    P.S. Permita-me que partilhe um poema para rezar.

    POBRES E SILENCIOSOS DIANTE DE TI

    Faltam-nos, por vezes, palavras para rezar.Estamos diante de Ti, Senhor, sem saber bem, numa pobreza que dói.
    Abrimos e fechamos as mãos num monólogo mudo, levantamos o nosso olhar estilhaçado, sentimo-nos perdidos
    naquela desmesurada distância da parábola do Filho Pródigo …
    Não te peço, Senhor, que elimines de imediato esta carência. Peço que a ilumines. Que não receemos permanecer pobres e silenciosos, diante de Ti. Fazendo oração com os fragmentos, os retalhos, os soluços … Com o peso daquilo que nos esmaga. Pois é verdade que na hora do sofrimento Tu nos escutas, e na desolação não deixas de ouvir a nosssa voz.

    (In, “Um Deus que Dança”, Itinerários para a oração, José Tolentino Mendonça)

    ResponderEliminar