quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Uma cananeia começou a gritar: Senhor Filho de David tem misericórdia de mim! (Mt 15,22)

Terminada a discussão com os fariseus e escribas sobre o preceito da pureza, Jesus retira-se para a região de Tiro e da Sidónia, para a região dos infiéis e pagãos. Há como que uma retirada estratégica face ao conflito previsível com as autoridades religiosas, que tinham vindo de Jerusalém para aferir da doutrina daquele que chamavam “Filho de David”.
Contudo, esta passagem à terra dos pagãos, reforçada pelo aparecimento da mulher cananeia, é mais que uma retirada estratégica ou de segurança, ela insere-se na linha de outras passagens, como a dos profetas Elias e Eliseu que igualmente se encontram com mulheres necessitadas de auxílio.
E a referência explícita da cananeia, dessa mulher da terra de Canaan, remete o episódio para um tempo histórico ainda mais primitivo, para uma referência a essa terra hostil e idólatra que era necessário conquistar depois da passagem pelo deserto e para que o povo eleito aí se pudesse instalar.
O encontro de Jesus com a cananeia e respectivo diálogo, depois do milagre da multiplicação dos pães e do encontro e discussão com os escribas e fariseus sobre os ritos de pureza, é assim um acontecimento que nos remete uma vez mais para as fronteiras intransponíveis da religião judaica e para a infidelidade da missão do povo escolhido.
Assim percebemos que, face ao apelo da cananeia “Filho de David”, Jesus não tenha respondido, não tenha sequer abrandado o passo para a atender, obrigando os discípulos a intervir no sentido de lhe dar uma resposta. De facto, o título dado pela cananeia, mais que um elogio, era um assumir de uma tradição histórica e religiosa que não assumia nem aceitava aquele por quem ela chamava. Os escribas e fariseus que pouco antes tinham vindo de Jerusalém não o tinham reconhecido, nem sequer estavam dispostos a abdicar das suas verdades para o reconhecerem. Bem pelo contrário, o fito do encontro era a morte.
Por outro lado, o título de “Filho de David” contradizia o pedido feito da mulher, criava ou recriava a fronteira que os separava e tornava incomunicáveis. Os herdeiros de David estavam destinados a conquistar e destruir a terra e o povo a que aquela mulher pertencia, e portanto qualquer pedido era impossível de resposta.
Neste sentido, e face à intervenção dos discípulos tocados pela compaixão para com aquela mulher, Jesus faz uma afirmação que poderá ser considerada como um insulto, um acto tremendo de desprezo por aquela mulher e a sua situação, “não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorros”.
Jesus, ou o evangelista Mateus, assume com este insulto o pensamento judaico sobre os estrangeiros e de modo particular sobre o povo da terra de Canaan, um poço idólatra, infiel, impuro, pelo qual a consideração não era maior que a dos cachorros. Uma vez mais a predilecção e a eleição de Israel como povo eleito joga aqui a sua contradição e infidelidade, porque um povo que devia ter sido conquistado para Deus foi pelo contrário ostracizado e abandonado à sua situação de infiel.
Contudo, é perante esta realidade e desprezo que a mulher revela a sua grande fé, a sua esperança naquele profeta que se refugia na terra infiel. Se o povo eleito não os tinha reconhecido, não os considerava no plano divino de salvação, ela como imagem do povo infiel acolhia a salvação que podia advir desse povo. E assim, já não é o pão que está em questão, o pão dos eleitos e dos filhos que é importante, mas as migalhas que podem sobrar e cair da mesa, o dom que pode ser dispensado a todos, mesmo àqueles que são indignos.
A cananeia revela assim uma fé mais pura e universal que a dos escribas e fariseus, revela uma consideração pelo dom do pão, ou pelas migalhas do pão, enquanto sinal de salvação, que aqueles mesmos que tinham sido alimentados não tinham sido capazes de ter.
“É grande a tua fé mulher e portanto faça-se como desejas”, respondeu Jesus à cananeia. É grande a fé desta mulher porque universal, porque aberta a todos, e porque humilde na capacidade de assumir a imagem negativa e desprezível que os mesmos judeus tinham dela.
Assim, desaparecem os eleitos e os excluídos, os fiéis e os infiéis, os puros e os impuros, sobrando apenas o homem, representado nesta cananeia como ser necessitado de apoio divino, que se alcança na medida em que humildemente se reconhece igual a todos os outros e sem qualquer direito de predilecção.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    No texto da Meditação que partilha connosco ao falar-nos do encontro de Jesus com a mulher cananeia salienta-nos que Jesus veio para todos, no centro está o Homem, a humanidade inteira, sem qualquer preferência, sem eleitos. E é também da importância da fé, da perseverança e da humildade de cada um de nós que nos fala, reveladas nesta mulher que necessita de auxílio, de apoio divino.
    Como nos diz, Frei José Carlos, ...” A cananeia revela assim uma fé mais pura e universal que a dos escribas e fariseus, revela uma consideração pelo dom do pão, ou pelas migalhas do pão, enquanto sinal de salvação, que aqueles mesmos que tinham sido alimentados não tinham sido capazes de ter.
    É grande a tua fé mulher e portanto faça-se como desejas”, respondeu Jesus à cananeia. É grande a fé desta mulher porque universal, porque aberta a todos, e porque humilde na capacidade de assumir a imagem negativa e desprezível que os mesmos judeus tinham dela.”…
    Que no nosso processo de transformação, o Senhor nos ajude, dando-nos um coração puro e uma mente livre de preconceitos, para que possamos participar na construção de um mundo mais fraterno, mais justo.
    Obrigada, Frei José Carlos, pela partilha desta importante Meditação, que nos ajuda a perceber que os problemas que hoje vivemos, não são inéditos, mas que nos fortalece e encoraja com a Palavra do Senhor e com as palavras que connosco partilha. Bem-haja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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