As leituras que
escutámos nesta Celebração dominical apresentam-nos um dos maiores e certamente
mais difíceis desafios do seguimento de Jesus, mas também um dos mais
gratificantes, se não o mais gratificante de todos.
Trata-se do desafio da
caridade no sentido da recuperação do outro, da integração do outro, da conversão
para a construção da fraternidade em que todos estamos envolvidos, e na qual
todos podemos ganhar na medida em que ganhamos e recuperamos o nosso irmão, ou
na qual todos podemos perder porque perdemos o nosso irmão.
Não é uma questão de
proselitismo, ou de percentagem estatística, não se trata do número de fiéis
que compõem as nossas comunidades, a Igreja, mas trata-se do estabelecimento ou
restabelecimento de uma realidade que é a unidade, que é a família ou o rebanho
de que Jesus tantas vezes falou com carinho e exigência e que tem o seu
fundamento no amor do Pai.
Num momento em que o
sincretismo doutrinal e o relativismo moral vão conquistando terreno mesmo
dentro das comunidades cristãs, da nossa vida de fé, não é nada fácil chamar o
outro e confrontá-lo com a necessidade da conversão, tal como nos é proposto
tanto pelo Evangelho como pelo texto do profeta Ezequiel.
Muitas vezes, e porque
aparentemente se nos apresenta como uma via mais fácil, enveredamos pelo
fanatismo, pelo moralismo e até pela intolerância face ao outro. São soluções
radicais, que frequentemente nos deixam de fora, sem qualquer compromisso,
quando pelo contrário a caridade de que nos fala o Evangelho nos compromete e
numa forma que toca a carne e o sangue.
Outra realidade que
nos dificulta o apelo do outro à conversão e à unidade é muitas vezes a
exigência e coerência que colocamos sobre os nossos ombros, como se fosse a nós
e à nossa forma que o outro devesse ser fiel. Colocamo-nos como paradigma,
quando afinal o paradigma é apenas um, Jesus Cristo, e é a esse que todos
devemos procurar ser fiéis.
Perante esta situação,
esta dificuldade gerada no nosso egocentrismo, cruzamos muitas vezes os braços e
calamos o apelo que nos é confiado e não devíamos silenciar. Não tendo a
fidelidade e a coerência requeridas como poderemos chamar o outro à atenção,
confrontá-lo com a verdade e a fidelidade devidas?
E contudo é
necessário, urgente, partindo até preferencialmente da nossa pobreza e da nossa
fragilidade, das nossas limitações e pecados, porque dessa forma tratamos de
ganhar o nosso irmão e tratamos de nos ganharmos a nós próprios. O outro poder
ser um apoio, um incentivo na minha conversão, na realização do meu projecto de
integração e unidade.
Neste sentido, convém
ter presente que o pecado é o rompimento de uma relação, o corte de um diálogo
que se mantém com um outro, e que portanto todo o diálogo restabelecido, a
palavra e a escuta, são os meios mais propícios para a restauração da relação.
Na medida em que nos inclinamos uns para os outros e partilhamos a palavra e a
escuta podemos restabelecer a relação e criar a unidade.
E é nesta unidade,
como irmãos, que podemos dirigir-nos a Deus e obter as graças solicitadas, uma
vez que nos encontramos em sintonia com a unidade que Deus é e vive. Reunidos
em seu nome, alcançamos o poder para pedir e ser escutados, porque reunidos
manifestamos e realizamos a sua presença entre nós.
Este desafio do apelo
à conversão, da caridade enquanto correcção fraterna, uma expressão clássica da
vida religiosa, não pode contudo ser deixado apenas para quando já ocorreu um
afastamento, quando já fomos ofendidos pelo outro, quando o outro já fez o mal.
A caridade e a
correcção fraterna não têm apenas uma dimensão curativa, não são unicamente um
remédio, elas têm uma dimensão preventiva que lhes é inerente e não podemos
descurar. Tal como diz Santo Agostinho, “quem ama corrige”, porque quem ama não
quer ver o mal do outro, a separação do outro, a perda do outro, e por isso
antes que o mal se declare procura combatê-lo.
Ao iniciarmos um novo
ano académico apresenta-se aqui para os pais, para as famílias, para as
comunidades educativas e para a as nossas comunidades eclesiais um grande
desafio e uma responsabilidade que todos devemos assumir. Antes que o mal
aconteça devemos preveni-lo, devemos estar atentos, porque a caridade implica
vigilância, e aos pequenos sinais de que algo não está bem ou não vai bem não
nos podemos silenciar nem olhar para o lado.
Se a caridade nos leva
em busca das ovelhas perdidas, ela deve também colocar-nos vigilantes para que
aquelas que estão sobre o nosso cuidado não se percam. O amor deve conduzir-nos
a essa atenção, a uma palavra, a uma exigência, de que seremos chamados a
prestar contas. A resposta de Caim após a morte do irmão: “serei eu guarda do
meu irmão”, deixou de ser possível depois da incarnação do Filho de Deus. Todos
estamos ao cuidado uns dos outros, somos guardas vigilantes da felicidade uns
dos outros.
“Ananias restabelecendo a visão de São Paulo”, Jean II Restout, Museu do Louvre.
Ser "guarda vigilante da felicidade dos outros" é um desafio nem sempre fácil porque exige a tal "caridade e correcção fraterna" que muitas vezes não sabemos dar e, menos ainda receber. E no entanto é condição para a unidade e o testemunho de membros desta Igreja pela qual Cristo se nos ofereceu. Inter Pars
ResponderEliminarFrei José Carlos,
ResponderEliminarGrata, pela bela Homilia profunda que nos ajuda à nossa reflexão.Gostei muito.Que o Senhor o ilumine o abençoe e o proteja.Desejo-lhe uma boa semana e bom descanso.
Um abraço fraterno.
AD