Todos sabemos pelos
Evangelhos como Jesus viveu em tensão e conflito com os príncipes dos
sacerdotes e os anciãos do povo, como muitas vezes os seus encontros e
discussões foram verdadeiras provocações, tal como acontece no trecho do
Evangelho de São Mateus que acabámos de ler.
A provocação que hoje
nos é apresentada por São Mateus é fortíssima na medida em que Jesus está em
Jerusalém, no centro político e religioso, e desafia as autoridades a uma
conversão, a uma outra atitude face a Deus, a uma outra relação de fé, tomando
como termo de comparação as mulheres de má vida e os publicanos. Esta liberdade
e ousadia de Jesus, esta fidelidade à verdade, foram tidas em conta poucos dias
depois num processo de condenação e morte.
Esta provocação de
Jesus não deixa de nos alcançar ainda hoje a cada um de nós individual e
comunitariamente, na medida em que põe em evidência uma falha ou um vício em
que muitas vezes caímos, o da discrepância entre o que se diz e o que se faz, o
desastre da falsidade de vida.
Contudo, e é esse o
desafio pedagógico de Jesus, não podemos ficar apenas nessa evidência, mas a
partir dela, das constatações alcançadas, partir para uma outra atitude, para
uma outra forma de vida. A verdade das nossas limitações e falhas é no âmbito da
pedagogia de Jesus para que optemos e iniciemos um processo de conversão de
vida.
Neste sentido, é bom
que olhemos a parábola que Jesus apresenta a partir da perspectiva do pai,
daquele homem que tem dois filhos e que tem um papel muito discreto, pois
apenas lhes pede que saiam a trabalhar na sua vinha.
Esta discrição do pai
passa por não nos ser apresentada qualquer reacção face à recusa do filho em ir
trabalhar para a vinha. No seu silêncio o pai não responde à violência do filho
com outra violência, não sobe o tom de voz nem contrapõe qualquer represália. À
ruptura do filho, exposta na recusa, o pai não responde com a sua ruptura. Tal
como o pai do filho pródigo, também este deixa ir o filho, livremente, sem
censuras ou condenações.
Este silêncio do pai é
contudo o grande instrumento de conversão, de alteração de atitude, pois nesse
silêncio o filho descobre o amor do pai, o respeito pela sua atitude, a
liberdade que o pai concede ao filho. É na desobediência que o filho descobre o
pai, que descobre que aquele homem que lhe pede um serviço é alguém que o ama e
respeita, mesmo na sua recusa e revolta.
Ao reconsiderar e ir
trabalhar para a vinha, tal como pedido, o filho manifesta a sua filiação,
reconhece que aquele homem que lhe tinha pedido um serviço é afinal seu pai. A
sua atitude não é fruto de interesse ou conveniência, mas apenas de plena
concordância e total acolhimento do amor do pai. A filiação pressupõe uma
experiência de obediência, uma obediência vivida em consequência do amor que se
experimenta, e este filho faz essa experiência.
Ao contrário do outro
filho que, ainda que obediente no primeiro momento, se revela incapaz de fazer
a experiência da filiação, da relação amorosa com o pai. Encerrado na sua
fachada de obediência correcta mas falsa, da resposta certa para o momento
certo, numa atitude calculista, abusa da confiança e respeito do pai, pois sabe
de antemão que o pai o ama e nada lhe cobrará.
É esta atitude
hipócrita que lhe impede de perguntar porque são os filhos enviados em lugar
dos trabalhadores, o que há de importante para terem que ser os filhos a
tratar; é esta atitude que o impede de dizer não, mas o obriga a tratar o pai
por senhor, manifestando assim a impossibilidade de conhecer verdadeiramente
aquele que é o pai.
A parábola que Jesus
conta aos príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo revela-nos assim que
podemos cair na hipocrisia de dizer uma coisa e fazer outra, revela-nos a
duplicidade e falsidade que a nossa vida pode desenvolver, mas revela-nos algo
muito mais importante e significativo para a nossa relação com Deus.
O apelo a trabalhar na
vinha é um convite muito especial, um convite a uma missão que não pode ser entregue
aos trabalhadores, porque os servos não conhecem o seu senhor, mas que apenas é
entregue aos filhos porque só eles a podem realizar, a missão da manifestação
do amor do pai que radica da intimidade vivida.
Missão e manifestação
que não pode deixar de ter presente as nossas faltas, as nossas limitações e
fragilidades, porque como dizem os Padres do Deserto “aquele que reconhece as
suas faltas é mais forte que aquele que ressuscita um morto”. É o reconhecimento
da nossa mediocridade, da nossa marginalidade, que nos abre a porta da
conversão, da experiência amorosa de Deus Pai.
A nossa obediência
filial anda longe da perfeição, todos o reconhecemos, mas tal não nos deve
impedir de ver a beleza e a alegria da missão que nos é confiada ao nos ser
pedido que trabalhemos na vinha do Pai. Confortados com a compreensão do Pai
procuremos realizar não os nosso interesses mas os interesses dos outros, viver
com os mesmos sentimentos de Cristo Jesus que nos deixou o testemunho do amor
do Pai na experiência da obediência.
1 – “As vindimas”, de Max Slevogt, Museu Nacional de Varsóvia.
2 – “Os vindimadores”, de Pierre-Auguste Renoir, National Gallery of Art.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarGrata,pela profundidade da Homilia do XXVI Domingo do Tempo Comum,muito esclarecedora que nos ajuda à nossa reflexão.Obrigada,Frei José Carlos,por este texto maravilhoso e a última parte com que o terminou,foi com chave de ouro.Gostei muito.Também pela bela ilustração. Desejo-lhe uma boa tarde e continuação de uma boa semana.Que o Senhor o ilumine o guarde e o abençoe.
Um abraço fraterno.
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