quarta-feira, 1 de março de 2017

Homilia de Quarta-Feira de Cinzas

A leitura da Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios que escutámos terminava com as palavras, este é o tempo favorável, este é o dia da salvação. Ao iniciarmos a Quaresma nesta Quarta-Feira de Cinzas temos que assumir que este é também para nós o tempo favorável, um tempo propício a fazermos caminho ao encontro da Salvação.
Para nos ajudar a fazer este caminho a Igreja oferece-nos, a partir das palavras de Jesus no Evangelho de São Mateus, um conjunto de exercícios ou obras, como são a esmola, a oração e o jejum, para mais facilmente caminharmos em direcção à meta.
Para muitos são um sacrifício, exigem um esforço suplementar, uma disposição que parece ir em sentido contrário do que nos parece normal, um confronto duro e doloroso com aquilo que nos satisfaz e que nos é gratificante.
Contudo, temos que assumir que Jesus não nos pede nada que esteja para além das nossas forças, alguma coisa que se oponha à nossa realização. Assim sendo, a esmola, a oração e o jejum são movimentos de vida, são actividades que deviam fazer parte da nossa vida, do nosso quotidiano.
A Igreja ao propô-las na Quaresma cumpre o seu papel de mestra e sábia, pois oferece-nos um período, que poderíamos dizer experimental, para percebermos como são importantes e até inerentes à nossa própria condição humana estas actividades e movimentos.
A esmola como movimento interior, profundamente humano, descentra-nos de nós próprios, faz-nos olhar para o outro que pode estar mais próximo ou mais longe mas que compõe também a minha existência. Eu não sou sem o outro, o outro faz-me e eu faço o outro com aquilo que partilho com ele.
Podemos assumir a esmola como uma oferta pecuniária, uma partilha de bens, mas ao assumi-la como um movimento interior, humano, a esmola é uma entrega de mim ao outro, é uma disposição de complementaridade, de fraternidade. A esmola humana é a partilha de mim, do meu tempo, da minha palavra, do meu afecto, do meu interesse. Nestas condições a minha esmola torna-se mais que humana, torna-se divina, pois vivo o mesmo movimento de entrega de Deus ao fazer-se homem como nós.
A oração como movimento interior, actividade humana, obriga-me a olhar a minha finitude mas igualmente a beleza e a grandeza da obra da criação. Na oração eu existo para um Outro que é meu criador e meu redentor, que me fez semelhante a si e por amor se fez semelhante a mim, menos no pecado, para me poder devolver à marca indelével do seu amor eterno.
Na oração como movimento interior humano não cumprimos preceitos nem realizamos ritos, ainda que eles estejam presentes como marcos para não nos desviarmos do centro, mas vivemos na luz e na força que nos move a buscar uma perfeição, uma plenitude, que sentimos existir e à qual pertencemos. Como diz Santa Catarina de Sena, mergulhamos num oceano que nos apela a mergulhar cada vez mais fundo.
O jejum, como actividade profunda do ser humano, conduz-nos à relativização das nossas necessidades, dos nossos afectos e satisfações. O jejum mostra-nos o quanto verdadeiramente temos necessidade, como afinal é tão pouco o que nos alcança a felicidade, que não depende do conjunto dos bens mas da alegria que nos provoca o que possuímos. No jejum faço a experiência da minha finitude, da minha pobreza existencial enquanto dependente de factores externos de subsistência, mas também da riqueza existencial enquanto me relaciono com os outros.      
Por isso, e tal como nos alertava o Papa Francisco, o jejum que mais necessitamos não é o jejum de bens materiais, mas o jejum e a abstinência das palavras que podem ferir o outro, que não o deixam crescer e desenvolver, realizar-se em plenitude, o jejum de palavras que não nos dignificam, que nascem do nosso coração para humilhar e escravizar o outro. Afinal e como nos diz Jesus, não é o que entra pela boca do homem que o contamina, mas o que sai e nasce do coração com maus desejos.
Querendo lançar-nos nesta caminhada quaresmal, assumindo estes movimentos naturalmente, não podemos deixar de ter presentes duas realidades que nos são apontadas por São Paulo e pelo profeta Joel.
A realidade apontada por São Paulo prende-se com a iniciativa de Deus, com a reconciliação que Deus operou com todos os homens e mulheres e que portanto nos solicita um acolhimento sincero, franco, sem temor. As nossas obras, a nossa disposição para a conversão, são um caminhar ao encontro do que Deus nos oferece, do que já realizou por nós em Jesus Cristo seu Filho. Esta iniciativa divina deve assim animar-nos na confiança, no esforço exigido pelos movimentos.
Ânimo e confiança que são reforçados pelas palavras do profeta Joel, pois tal como ele diz ao povo de Israel, Deus pode deixar atrás de si uma bênção. Para o profeta, a conversão do povo, o acolhimento da clemência e compaixão de Deus acarreta consigo uma bênção divina, que não podemos deixar de agradecer.
A nossa caminhada Quaresmal no esforço e na confiança que lhe colocarmos, nas obras de conversão e encontro que realizarmos, vai ser uma experiência de graça, uma bênção de Deus. Procuremos pois ir confiantes, e ainda que em qualquer momento a caminhada se torne mais dura e árida, que caiamos na rotina e no desalento, não deixemos de acreditar que a bênção do Senhor nos precede e nos segue, é nela que nos movemos desde sempre.
 
Ilustração:
1 – “O jovem rico”, de Heinrich Hoffman, Riverside Church, New York.
2 – “Cristo no jardim das oliveiras”, de Heinrich Hoffman, Riverside Church. New York

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