domingo, 12 de março de 2017

Homilia do II Domingo da Quaresma

Todos os anos no segundo domingo da Quaresma somos confrontados com a narração da transfiguração de Jesus no alto do monte Tabor. Surpreendentemente, e apesar de só três discípulos terem presenciado este momento e de lhes ter sido dito para não revelarem nada a ninguém, os três evangelistas sinópticos narram este acontecimento como se fosse algo verdadeiramente significativo, demasiado importante para ser esquecido ou ficar apenas na privacidade de poucas testemunhas.
Sabemos que a transfiguração ocorre depois de Jesus ter anunciado aos discípulos a sua paixão e morte em Jerusalém, o futuro que o espera, e que se afasta bastante do que são as expectativas dos discípulos. Podemos dizer que a transfiguração é um apoio, um vislumbrar do que afinal está em jogo e vai para além do inevitável e trágico da morte, um incentivo a passar a barreira da dor e do sofrimento da perda do mestre.
Contudo, e sabendo também nós o pouco que os discípulos percebiam e intuíam da pessoa e missão de Jesus, é de todo plausível assumir que tão pouco perceberam alguma coisa do momento da transfiguração. Só as aparições do ressuscitado lhes terá permitido perceber o que afinal lhes tinha sido dado contemplar na transfiguração, a glória do Filho escondida na nossa roupagem humana.
E é esta uma das razões para a importância e significado dados pelos evangelistas ao momento da transfiguração, pois o que de facto está em jogo é a nossa humanidade, a humanidade onde habita a glória de Deus.
A assistência de um público numeroso àquele momento teria como consequência a busca do espectacular, do maravilhoso de Cristo, a busca de um super-homem, quando não é esse o objectivo da manifestação. Se tal tivesse acontecido Santo Ireneu perderia a oportunidade e as razões para dizer que a glória de Deus é o homem vivo, o homem vivo na sua humanidade e chamado a santificar essa humanidade assumindo plenamente a glória que o habita.
A transfiguração é de facto um vislumbre da glória divina, glória que habitou entre nós na pessoa e na carne de Jesus Cristo pelo mistério da encarnação, e que nos assumiu também ali naquele momento quando envolveu Pedro Tiago e João sob a mesma sombra. Todos participaram e foram assumidos na manifestação da glória, pois de contrário e como foi dito em outros momentos não teriam sobrevivido, pois ninguém pode ver a glória de Deus e viver.
Esta consciência do perigo de morte face à glória de Deus está patente no medo dos três discípulos envolvidos pela nuvem, no seu cair por terra, pois sabiam que não podiam ver a glória divina. Mas o medo torna-se maior e mais angustiante quando se percebe que a manifestação da glória divina acontece na pessoa de um homem, daquele Jesus que eles conheciam e admiravam mas que desconheciam na sua identidade divina, na sua glória natural.
Se pensarmos com um pouco de seriedade, não podemos deixar de assumir que de facto é assustador, até aterrador, pensar que a glória de Deus habita num homem, habita em cada um de nós, que há uma luz e uma força que estão para além de nós próprios e que nos assume e incorpora, mas que de certa maneira evitamos porque nos é mais fácil viver sem a assumir, sem a ter presente.
A transfiguração de Jesus é uma promessa da nossa transfiguração, podemos até dizer que é a sua antecipação ao realizar-se na humanidade de Jesus, mas que pela nossa fragilidade humana não nos é ainda permitido viver em plenitude.
Vivemos assim como Abraão num momento de promessa, de proposta divina, que exige sair da nossa terra, da nossa família, do nosso conhecido e da nossa zona de conforto para entrar numa dinâmica de passagem, de peregrinação, para entrar num processo que fará de nós mais do que somos e podemos ver agora.
Sermos testemunhas da transfiguração, assumi-la como um mistério que nos pertence, é entrar nessa dinâmica proposta a Abraão de ser mais, de ser uma bênção para todos os povos e todos os homens. Aquele que se sabe habitado pela glória divina não pode deixar de abençoar e procurar ser uma bênção para todos aqueles que com ele se cruzam. Paulo pede isso mesmo a Timóteo na leitura que escutámos, quando lhe afirma que fomos chamados à santidade pelo desígnio de Deus.
Nas circunstâncias da nossa vida com as suas dificuldades e limitações, a transfiguração vai realizando-se na medida em que vamos estando abertos e dispostos à graça de Deus, à escuta da palavra do Filho que nos revela a nossa identidade e o amor do Pai por cada um dos seus filhos. Nessa atitude cooperante com a graça, podemos descer do monte, das nossas experiências intimas com Deus que nos iluminam e fortalecem, e podemos encontrar-nos de rosto transfigurado pelo amor com os nossos irmãos que nos aguardam no seu sofrimento e nas suas necessidades.
Que a Palavra de Deus, escutada, meditada, rezada, nesta Quaresma, nos faça assumir a glória que nos habita e somos chamados a venerar em cada um dos nossos irmãos.

 
Ilustração:
“Transfiguração de Jesus”, de Francesco Zuccarelli, Lempertz Auctions.
“Abraão e os três anjos”, de Giovanni Battista Tiepolo, Museu do Prado.

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