domingo, 5 de março de 2017

Homilia do I Domingo da Quaresma

Estamos a celebrar o primeiro domingo da Quaresma e como acontece em cada ano, neste primeiro domingo, somos confrontados com a experiência de Jesus no deserto. A Igreja propõe-nos, ao iniciar este tempo e caminhada de preparação para a Páscoa, essa experiência, essa realidade como processo a viver nestes quarenta dias.
Ao assumir esta proposta, este desafio, temos que admitir que seria muito mais fácil viver a experiência do deserto se nos mudássemos para o Saara ou um outro deserto à face da terra. A simples mudança já nos alteraria, já nos obrigaria a novas atitudes, a outra postura, pois sabemos como mudar de casa, mudar de cidade, mudar de emprego nos altera os esquemas, nos obriga a uma reconfiguração externa e interna.
Contudo, não podemos fazer essa migração física, não nos podemos isolar, não podemos ir ao deserto e temos que o encontrar e desenvolver no nosso interior, na nossa alma, de forma espiritual, o que se torna mais difícil. Acresce a esta dificuldade o facto de que o deserto quente das areias é inóspito, mas o nosso deserto interior não o é menos, pois conduzidos pelo Espirito confrontamo-nos com as feras das nossas tentações.
As tentações que sofremos no deserto são contudo nossas conhecidas, como diz Santo Agostinho, são nossas amigas de velha data, partilham a nossa vida no quotidiano. No deserto aparecem contudo mais violentas, uma vez que ficam expostas ao vazio, despidas dos seus disfarces e roupagens do quotidiano.
As tentações que Jesus sofre no deserto e que o Evangelho nos apresenta são as tentações de todos os homens e mulheres, mas de modo mais incisivo são as tentações daqueles que se sabem filhos de Deus, e que são astuciosamente interpelados na sua relação com Aquele que consideram Pai. É nesta relação, e na sua intensidade, que satanás tenta interferir, que nos tenta desviar do fundamental.
A primeira tentação de Jesus, podemos dizer que é a tentação da auto-suficiência, da confiança nos bens que temos, do que nos alimenta na nossa satisfação. É a tentação de nos confinarmos à satisfação material, física, sem perceber que é na palavra e pela palavra que nos realizamos. Podemos ter muitos bens mas se nos falta uma palavra amiga, de conforto, de incentivo, até de desafio, não somos ninguém.
Contudo, como assumidos filhos de Deus, a tentação vai mais além, ultrapassa a mera questão material e de identidade pela palavra do outro. A resposta de Jesus mostra-nos que somos tentados na nossa disponibilidade para acolher a palavra que sai da boca de Deus, uma palavra criadora, redentora, uma palavra de vida.
No nosso quotidiano vamos desleixando essa palavra viva, vamos ficando insensíveis, afinal temos tanto mais com que nos preocupar. No deserto essa palavra aparece como uma faca de dois gumes que corta o que está a mais, que poda, que ilumina, que fere e cura a ferida. A palavra de Deus dá-nos a vida, oferece-nos um caminho de vida e felicidade e não podemos deixar de a acolher, de nos alimentarmos dela no nosso dia-a-dia.
Outra tentação que Jesus sofre no deserto é a tentação do poder, mas de um poder que obriga a dobrar-se, a ajoelhar-se e a perder a dignidade e a identidade. Pela força do mal, pelo egoísmo e narcisismo dos homens, esta tentação vai minando o nosso mundo profissional e muitas vezes até o nosso mundo relacional. Pisamos os outros ou obrigamos os outros a uma perda de dignidade pela subjugação, pela calúnia, pela mentira; perdemo-nos a nós próprios atrás das máscaras e da duplicidade de vida que construímos.
Como filhos de Deus esta tentação ataca-nos com o preconceito de que é humilhante ajoelhar-se diante de Deus, acreditar no seu poder, manifestar a nossa fé, ainda que fraca e inconstante. É a tentação do respeito humano, dos pudores para não ofender o outro, ou não o provocarmos com a nossa fé, a tentação do politicamente correcto.
E contudo, e como escreveu Etty Hillesum nos corredores da morte do regime nazista, nada é tão digno e sublime para o homem como ajoelhar-se diante de Deus, porque nessa humildade, nessa atitude de fraqueza, se revela a maior força, a da mão de Deus que nos ergue da nossa miséria à sua divinidade.
Face a esta tentação não podemos deixar de dizer como sabiamente respondeu, fruto da sua própria experiência pessoal, D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, “de joelhos diante de Deus e de pé diante dos homens”.
A tentação mais subtil que Jesus experimenta na sua passagem pelo deserto é a tentação da absolutização da acção de Deus, a tentação de aprisionar Deus nas suas palavras e promessas, como se o homem não tivesse liberdade e vontade, inteligência e experiência para encontrar respostas para as situações, como se Deus tivesse que fazer o trabalho do homem.
No jardim das oliveiras Jesus volta a sofrer esta tentação, ao ver o quanto significa o cálice que tem que beber, mas é perante este mesmo cálice que assume na sua liberdade fazer a vontade do Pai, beber o cálice até ao fim, até à entrega do espirito. Não há aqui preguiça, subterfúgios, desculpas, reivindicação, apenas uma conformidade de vontades. Eu faço a minha parte porque Deus Pai faz a sua, acontece a paixão e a morte e na manhã do terceiro dia a ressurreição.
Esta tentação é verdadeiramente subtil, e ronda a nossa vida nas suas mais diversas dimensões, pois ainda não aceitámos com toda a fé que a parte de Deus já está realizada, a sua obra ficou completa na obediência do Filho. A morte veio pelo pecado cometido na liberdade, a nossa justificação e salvação veio pela obediência livremente aceite.
A nossa caminhada quaresmal, a nossa tentativa de deserto, é assim um processo que nos deve ajudar e exercitar a confrontar-nos com as nossas tentações, a assumir que mais que deuses, como foi sugerido pela serpente à primeira mulher, somos homens e mulheres amados e dignificados pelo seu criador nessa mesma condição, através da redenção operada pelo seu Filho Unigénito no mistério da Encarnação.
Procuremos pois viver dignamente a nossa humanidade, com tudo o que ela encerra de bom e de belo, pois ao vivê-la com dignidade plena realizamos a verdadeira glória de Deus, somos a expressão viva e perfeita da sua obra mais amada.  

 
Ilustração:
1 – “A tentação de Jesus”, de Félix Joseph Barrias, Philbrook Museum of Art, Tulsa, EUA.
2 – “Oração de Jesus no jardim das oliveiras”, de Giulio Cesare Procaccini, Museu do Prado.

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