A imagem que
frequentemente nos é transmitida pelos Evangelhos sobre os escribas e os
doutores da Lei é que as suas aproximações a Jesus têm sempre como objectivo
apanhá-lo em algo de errado, são armadilhas estendidas à boa vontade de Jesus.
O encontro que o
Evangelho de São Marcos nos relata na leitura deste domingo poderia também ser
entendido nesse sentido, mas tal não corresponde exactamente à verdade, porque
afinal o escriba apresenta a Jesus uma questão que tem por objectivo obter uma
resposta esclarecedora para a sua situação pessoal.
A questão que o
escriba coloca a Jesus era uma questão que perpassava pela consciência e pela
vivência da fé de todo o judeu, uma vez que face a seiscentos e treze
mandamentos inscritos na lei mosaica era certamente difícil discernir qual o
mais importante, o que prevalecia sobre os outros.
Havia certamente
conflitos entre os diversos mandamentos, como podemos constatar quando Jesus confronta
a obrigação do repouso no sábado com a necessidade da ajuda ao próximo; pelo
que a necessidade de estabelecer prioridades sobre o cumprimento dos
mandamentos era importante e é isso que preocupa o escriba que se dirige a
Jesus. Afinal ele quer saber qual é o primeiro mandamento.
Jesus não vacila um
segundo na resposta a dar a este homem sedento de fidelidade e por isso em vez
de enumerar um mandamento, de colocar a primazia sobre um mandamento, enuncia
dois que coloca em situação de igualdade, em complementaridade, o mandamento do
amor a Deus e o mandamento do amor ao próximo.
Certamente para nossa
grande surpresa, Jesus não inova em nada, não arrisca algo diferente do que era
conhecido e património da fé comum, e por isso imediatamente obtém a
concordância do escriba. De facto a formulação apresentada por Jesus, a união
do amor a Deus com o amor ao próximo fazia já parte da herança espiritual, da
doutrina profética e da Lei de Moisés.
Neste sentido, não
podemos deixar de ter presente que Jesus começa a responder ao escriba
apresentando a oração que todo o judeu devia rezar pelo menos três vezes ao dia
e que tinha adquirido um significado tal que havia pequenos objectos para a fazerem
presente no dia-a-dia. Era a oração do livro do Deuteronómio que a primeira
leitura deste domingo nos apresenta e se encontrava à entrada de casa ou se
trazia amarrada ao braço.
Uma oração, um texto,
que tinha tal significado que mesmo na sua visibilidade textual tinha características
próprias. O alfabeto hebraico não tem letras maiúsculas, mas neste texto tanto
a última letra da primeira palavra como a última letra da última palavra são
traçadas em tamanho superior, em maiúscula, evidenciando assim a radicalidade
do texto escrito e lido.
Por outro lado as duas
letras que enquadram o texto formam uma palavra que significa testemunho, dar
testemunho, o que obrigava inevitavelmente a perceber o mandamento do amor a
Deus como algo a testemunhar, como um dever sagrado que necessariamente devia
ser transmitido ao mundo e vivido de forma concreta.
Estamos assim neste
encontro, e nesta resposta de Jesus ao escriba, diante de uma bela acção
pedagógica, de uma forma de evangelização e transmissão da fé que nos desafia
verdadeiramente, que nos deixa algumas pistas para a nossa própria situação e
acção.
O que Jesus fez com o
escriba e o que somos também convidados a fazer na transmissão da fé, na
descoberta de Jesus, é o confronto das mesmas realidades pessoais, sociais,
históricas, com o projecto de Deus e com o mandamento do amor.
Neste sentido, não
podemos deixar de partir do humano, da vida concreta, dos valores que ainda
norteiam os nossos irmãos, como a justiça, a liberdade, a fraternidade, o
serviço ao próximo, entre outros, e que necessitam ser iluminadas pelo amor de
Deus para serem percebidos e vividos à luz desse mesmo amor.
Uma vez mais voltamos
à necessidade de perceber que as diversas realidades da nossa vida são alertas,
oportunidades, para a nossa realização, para a nossa plenitude, e que só a alcançamos
verdadeiramente quando cunhamos essas diversas realidades com o Espirito de
Deus. Deus fez-nos para ele e o nosso coração não tem repouso enquanto não
descansa nele, não se satisfaz nele.
Os homens e mulheres
do nosso tempo carregam consigo muitas dúvidas, muitas questões, procuram um sentido
para as suas vidas e muitas vezes necessitam de nós cristãos não um enunciado
de fórmulas ou um discurso moral, mas a iluminação da presença de Deus nas
mesmas realidades que vivem e que os angustiam. Como um cristal bonito necessitam
de um raio de luz que os faça brilhar.
Procuremos pois, com o
auxílio do Espirito Santo, encontrar em nós e desvelar nos nossos irmãos e
irmãs a presença do amor de Deus que tudo toca e tudo retorna ao seu verdadeiro
valor e dimensão divina.
Ilustração: “Nicodemos
e Jesus num terraço”, de Henry Ossawa Tanner, Academia de Belas Artes da
Pensilvânia.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarO texto da Homilia do XXXI Domingo do Tempo Comum que teceu é profundo, importante, belo, maravilhosamente ilustrado. Como nos salienta ...” Jesus não vacila um segundo na resposta a dar a este homem sedento de fidelidade e por isso em vez de enumerar um mandamento, de colocar a primazia sobre um mandamento, enuncia dois que coloca em situação de igualdade, em complementaridade, o mandamento do amor a Deus e o mandamento do amor ao próximo.(…)
(...) De facto a formulação apresentada por Jesus, a união do amor a Deus com o amor ao próximo fazia já parte da herança espiritual, da doutrina profética e da Lei de Moisés.(…)
(…) O que Jesus fez com o escriba e o que somos também convidados a fazer na transmissão da fé, na descoberta de Jesus, é o confronto das mesmas realidades pessoais, sociais, históricas, com o projecto de Deus e com o mandamento do amor.
Neste sentido, não podemos deixar de partir do humano, da vida concreta, dos valores que ainda norteiam os nossos irmãos, como a justiça, a liberdade, a fraternidade, o serviço ao próximo, entre outros, e que necessitam ser iluminadas pelo amor de Deus para serem percebidos e vividos à luz desse mesmo amor. (…)
É fácil amar os amigos, perdoar as ofensas dos que são ou foram injustos para connoscos, mas é necessário uma verdadeira transformação de ambas as partes para voltar a acolhê-los com amor. Vai mais além do perdão. Está subjacente a relação que soubemos ou pudemos criar.
Que o Senhor venha em nosso auxílio para viver verdadeiramente o mandamento do amor até à sua perfeição.
Grata, Frei José Carlos, pelas palavras partilhadas, por exortar-nos a que …” Procuremos pois, com o auxílio do Espirito Santo, encontrar em nós e desvelar nos nossos irmãos e irmãs a presença do amor de Deus que tudo toca e tudo retorna ao seu verdadeiro valor e dimensão divina.”
Que o Senhor o ilumine, abençoe e proteja.
Votos de uma boa semana. Bom descanso.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva