domingo, 12 de junho de 2011

Entre o Coro e o decoro

Um dos frades mais velhos da minha comunidade de Lisboa, que viveu durante alguns anos da sua formação em Espanha, costuma dizer que os espanhóis não têm grandes cânticos litúrgicos, que neste aspecto da liturgia deixam muito a desejar.
Como não tenho formação musical, e alguns dos meus irmãos de comunidade dizem que desafino, nunca anui ao seu comentário nem tão pouco o contrariei, pois nas muitas vezes que tenho passado e estado por Espanha, e por diversos lugares de Espanha, tenho encontrado o que habitualmente também encontro em Portugal, gente que canta, umas vezes melhor outras vezes pior.
No entanto hoje, e depois da experiência das Vésperas em gregoriano da Abadia de Silos do dia de ontem, vivi uma dessas experiências que nos fazem pensar que algumas vezes o silêncio é muito mais rico e animador que aquilo que estamos a ouvir ao coro que quer animar a celebração da Eucaristia.
Era uma celebração de Pentecostes, carregada de significado pela solenidade, mas mais ainda porque reunia um conjunto de aldeias numa romaria que tradicionalmente fazem nesta altura. Pelo que me contaram, desde o século dezassete que devido a uma epidemia de peste e a uma praga de gafanhotos que dizimavam a população e as culturas, que os povos das aldeias vizinhas peregrinam aqui, trazendo os seus pendões e estandartes para implorarem a protecção de São Domingos.
Este ano a celebração, presidida pelo pároco de uma das aldeias vizinhas, era animada pelo coro dessa paróquia, um conjunto de simpáticas senhoras, que acredito se empenharam em dar o seu melhor, mas que infelizmente deixaram muito a desejar. Em vez de animar a celebração eram como que uma perturbação, pois os cânticos condiziam mais com uma celebração infantil, de um grupo de catequese do primeiro ano, do que com a celebração de um povo em peregrinação, um povo que luta pela sua terra e pelas suas tradições, orgulhoso das suas tradições e dos seus pendões.
Não posso deixar de assumir que estou habituado na minha comunidade e nas celebrações comunitárias do convento a um tipo especial de música, onde prevalece o ritmo de Taizé e os belos cânticos litúrgicos do dominicano francês André Gouzes. Mas para além deles, gosto de ouvir os cânticos que o pequeno coro da minha paróquia natal canta, cânticos tradicionais ou já suficientemente conhecidos para que toda a assembleia participe cantando. Num espaço e noutro sentimo-nos envolvidos, participantes, ainda que não saibamos cantar ou não percebamos nada de latim
Hoje, contudo, não aconteceu nada disso, porque a assembleia não participou e o coro tão pouco creio que estivesse a sentir e a viver aquilo que estava a cantar. A música não era delas, não era das suas vidas, com tudo o que ela comporta de lágrimas de dor e alegria, e ainda que lhe tenham dedicado bastantes horas de ensaio. Pelo que nos resta um desafio comunitário, a cada comunidade que celebra e em cada celebração, relativamente à animação musical e ao cântico.
São Tomás diz que para uma obra ser bela, ser verdadeiramente arte, necessita possuir várias características como a harmonia, o equilíbrio, a proporção, e outras mais que neste momento e onde estou não consigo ter presentes. Também no canto litúrgico elas devem imperar, mas conjuntamente com elas não podemos deixar de ter presente o decoro, essa sensibilidade para perceber a partir de onde o belo se transforma em horror, a partir de onde o especial se torna inacessível e indiferente.
O cântico e a música litúrgica não são um espectáculo, mas um meio artístico para nos animar e congregar a todos no louvor mais perfeito e mais belo de Deus.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    O texto que partilha connosco e que intitulou “Entre o Coro e o decoro” e que tão belamente ilustrou fez-me sorrir. Como diz “algumas vezes o silêncio é muito mais rico e animador que aquilo que estamos a ouvir ao coro que quer animar a celebração da Eucaristia.”
    A música e a poesia litúrgica são um “estado de oração”, uma forma de beleza. Por vezes, precisamos de inspiração, de uma Musa que nos ensine o canto, como dizia Sophia de Mello B Andresen.
    Obrigada pela partilha.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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  2. Frei José Carlos,
    Quero regozijar-me com a sua vivência de Canto Gregoriano num espaço tão carismático como é a Abadia de Silos ao mesmo tempo que me deleito com a sua partilha em que encontro eco por empatia de sentimentos. Realmente o aspecto formal das celebrações têm o dom de "nos animar e congregar a todos no louvor mais perfeito e mais belo de Deus",o que acontece nos actos litúrgicos do Convento de São Domingos. Por outro lado, a sua partilha faz-me recuar ao tempo da minha adolescência e juventude, em grande parte vividas num colégio religioso em que me embevecia com as vozes cristalinas e angelicais das Irmãs, durante a Liturgia de Laudes,que num ondular de brancura me envolviam "no louvor mais perfeito e mais belo de Deus". Era com satisfação, ainda que consciente da falta por desobediência, que me esgueirava para o coro alto ao nível dos dormitórios, antes da Eucaristia, para partilhar da beleza e da harmonia que me enchiam o coração da presença divina.
    Tenha uma santa noite,
    GVA

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