segunda-feira, 13 de junho de 2011

Homilia da Festa de Santo António de Lisboa

Ben-Sirá diz-nos que o homem que medita na lei do Altíssimo será cheio do Espírito de inteligência, e as suas obras de verdade e de justiça farão com que seja louvado no meio da assembleia, que tenha uma memória que não desaparecerá.
Santo António de Lisboa, que hoje celebramos, é a encarnação mais perfeita destas palavras do sábio bíblico, pois passados quase oitocentos anos sobre a sua morte, ocorrida em 1231, a sua memória mantém-se presente entre os homens e de uma forma extraordinária em quase todos os lugares do mundo. Santo António é dos santos mais populares, se não mesmo o mais popular.
Mas, se esta memória se mantém é porque, como nos diz Ben-Sirá, Santo António viveu uma vida em que a meditação da Palavra de Deus lhe alcançou uma sabedoria e uma inteligência que depois se traduziu nas obras que praticou. Mendicante e pregador não se permitiu instalar-se num local nem num conjunto de conhecimentos intelectuais, mas bem pelo contrário, em razão desse mesmo conhecimento alcançado pela meditação da Palavra, sentiu a urgência e a necessidade de anunciar a todos os homens a bondade de Deus.
Como nos diz o Evangelho de São Mateus, como lâmpada acesa ou cidade situada sobre um monte não se pôde esconder nem deixar de brilhar, mas percorrendo os caminhos dos homens foi brilhando e iluminando aqueles com quem se encontrava, mesmo aqueles que pela força persuasiva da sua palavra muitas vezes se recusavam a escutá-lo.
O caso da pregação aos peixes é aquele que mais rapidamente nos vem à memória, e no qual percebemos como a sua palavra temida e recusada pelos pecadores e hereges foi substituída pela acção, por uma obra um tanto ou quanto descabida, mas por isso mesmo significativa e fecunda de interpelação.
Neste sentido a sua acção, e este exemplo milagroso, apela-nos a uma atenção à palavra com que hoje em dia queremos anunciar aos outros homens a Boa Nova de Jesus Cristo, uma palavra que muitas vezes não ultrapassa as barreiras da desconfiança e do preconceito. Temos assim que procurar uma palavra de verdade, uma palavra alicerçada na experiência humana, na nossa dimensão humana, mas que depois é contrastada e iluminada pela Palavra de Deus.
Não podemos partilhar a Boa Nova de Jesus, anunciá-la, se não tivermos em conta a condição humana, e muito particularmente a condição daquele que será o nosso interlocutor. Jamais podemos esquecer que a Palavra de Deus se incarnou, se fez vida e carne e experiência humana, e só a partir daí foi perceptível clara e distintamente aos ouvidos e aos olhos dos homens.
E, complementando esta incarnação, e tendo presente o gesto extravagante de Santo António se dirigir aos peixes face às barreiras humanas, não podemos também esquecer a dimensão prática, testemunhal da nossa vida e das nossas obras como garante da verdade da palavra de Boa Nova que queremos anunciar. Obras que por vezes podem parecer estranhas, extravagantes, mas se forem alicerçadas na verdade da fé, da esperança e do amor que nos move serão certamente significativas e interpeladoras.
Num mundo cada vez mais sistematizado, cada vez mais uniformizado, em que nos sentimos cada vez mais escravos de uma máquina produtiva sem sentido e sem recompensa, em que parece que desapareceu o encanto e a alegria de viver, em que desapareceu o sonho de construir, somos interpelados por Santo António a provocar e a desconcertar com a alegria de uma esperança, com o sonho de uma bondade que todos nós transportamos mas que ocultamos por medo e por vergonha.
Num mundo cinzento, infecto de abismos de aniquilação, Santo António interpela-nos e convida-nos a uma atitude esperançosa, alegre, vivificante, porque de facto fomos feitos para a vida e não para a morte, somos homens e mulheres de palavra, de relação e comunicação, e não ilhas mudas e abandonadas no profundo oceano da solidão.
Tarefa ingrata esta, e inegavelmente difícil, face à complexidade social, política e económica em que nos encontramos, mas também por isso mais necessária, e até certo ponto exequível na medida em que, como Santo António, adoptamos a pobreza por companheira, por realidade que nos liberta e nos coloca mais disponíveis uns para os outros.
Necessitamos recuperar na nossa dimensão humana e social a consciência de que necessitamos muito pouco para viver, de que a nossa qualidade de vida não depende tanto das coisas que temos mas daquilo que somos e daqueles com quem vivemos e nos relacionamos no sentido da construção de um mundo melhor para todos.
Santo António adoptou a pobreza franciscana para estar mais livre para a pregação e para os irmãos, para brilhar sem peias nem teias; de alguma forma também nós necessitamos adoptá-la para estarmos mais livres uns para os outros e brilharmos com a esperança que nos anima da bondade dos irmãos e do amor de Deus para com todos.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    O texto da Homilia da Festa de Santo António de Lisboa que partilha connosco é profundo, de grande riqueza e que fará reflectir os pregadores da Palavra de Deus e todos nós cristãos, também anunciadores da Boa Nova de Jesus. Como nos diz “Santo António é dos santos mais populares, se não mesmo o mais popular” que “viveu uma vida em que a meditação da Palavra de Deus lhe alcançou uma sabedoria e uma inteligência que depois se traduziu nas obras que praticou”.
    Mas como o Frei José Carlos reconhece se a vida de Santo António deve ser fonte de inspiração e seguimento pelas razões que aponta, o dar testemunho da Palavra de Deus dessa forma, revestiu-se sempre e particularmente hoje, de toda a sorte de dificuldades, numa sociedade em que o ser pouco ou nada interessa, em que somos julgados pelo ter, pelas aparências, em que a desconfiança relativamente a cada um de nós e ao nosso próximo se instalou. Por vezes, o gesto mais espontâneo e de genuína fraternidade é recebido com reticências (inclusivé a palavra que dirigimos ou o tempo de escuta com o nosso próximo é mal compreendida). E passo a citá-lo.
    …”Tarefa ingrata esta, e inegavelmente difícil, face à complexidade social, política e económica em que nos encontramos, mas também por isso mais necessária, e até certo ponto exequível na medida em que, como Santo António, adoptamos a pobreza por companheira, por realidade que nos liberta e nos coloca mais disponíveis uns para os outros.
    Necessitamos recuperar na nossa dimensão humana e social a consciência de que necessitamos muito pouco para viver, de que a nossa qualidade de vida não depende tanto das coisas que temos mas daquilo que somos e daqueles com quem vivemos e nos relacionamos no sentido da construção de um mundo melhor para todos.”…
    Nas fases da vida em que nos sentimos abatidos e próximos de desistir, de prosseguir o combate por um mundo melhor, mais humano e fraterno, recordemo-nos como nos salienta que …” Num mundo cinzento, infecto de abismos de aniquilação, Santo António interpela-nos e convida-nos a uma atitude esperançosa, alegre, vivificante, porque de facto fomos feitos para a vida e não para a morte, somos homens e mulheres de palavra, de relação e comunicação, e não ilhas mudas e abandonadas no profundo oceano da solidão.” …
    Obrigada Frei José Carlos por esta partilha que nos desinstala e que nos exorta a alimentar a chama que há em cada um de nós, … “com a esperança que nos anima da bondade dos irmãos e do amor de Deus para com todos”. Bem haja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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