domingo, 29 de abril de 2012

Homilia do IV Domingo do Tempo Pascal

No Evangelho de São João, que escutamos este domingo, por duas vezes Jesus se apresenta como o bom Pastor, “Eu Sou o Bom Pastor”. Tal afirmação e reiteração supõe que existem maus pastores, e sobretudo que os ouvintes de Jesus os podiam identificar, os podiam contrastar com ele próprio de modo a aferir da bondade e da maldade presente em cada um.
Esta identificação dos maus pastores por parte dos ouvintes e discípulos era possível em virtude da profecia de Ezequiel, profecia que apontava os defeitos e maus comportamentos daqueles que deveriam ser os pastores do povo de Israel, aqueles que o Senhor Deus tinha chamado a conduzir o povo.
Nessa profecia (Ex 34) podemos apreciar a crítica feita aos dirigentes do povo, a condenação da exploração do povo, simbolicamente representado no rebanho que deve ser conduzido, cuidado, alimentado. Os pastores faziam exactamente o contrário e alimentavam-se das ovelhas, exploravam-nas e conduziam-nas ao desespero face à Aliança estabelecida com Deus.
Ao afirmar-se como Bom Pastor Jesus apresenta o modelo e o projecto de Deus, o amor daquele que é chamado e enviado para conduzir o rebanho e o povo entregando a sua própria vida, fazendo-se servo de todos, garantindo a vida àqueles que foram entregues ao seu cuidado.
E é ao referir esta entrega da vida que Jesus desencadeia a crítica e a rejeição daqueles que o escutam e cujos ecos encontramos nos versículos seguintes àqueles que lemos. Jesus apresenta-se como candidato ao trono de Israel e como Messias, mas de uma forma que se distancia da concepção tradicional, pois se o Messias e o rei eram desejados e esperados era para garantirem o bem estar do povo, a sua vitória e glória, era para viverem e não para perderem a vida.
A imagem pela qual Jesus é percebido é uma imagem de fraqueza, de insanidade, uma imagem que não vai ao encontro da concepção tradicional, uma concepção triunfalista de eleição que conduziu à separação do povo e à inviabilidade da missão outorgada por Deus na celebração da Aliança. O povo eleito, que devia ter conduzido os outros povos à Aliança de Deus, tinha-se refugiado na sua eleição e deixado de cumprir a missão.
Por isso Jesus não deixa de referir, e desta forma assumir a concepção universal da Aliança, que havia outras ovelhas que não eram daquele rebanho e que necessitavam ser reunidas num só rebanho e sob um só pastor. Todos os homens e todos os povos deviam participar do único rebanho que Deus Pai desejava e a sua missão era levar a cabo essa unidade.
Outro elemento extremamente significativo da afirmação de Jesus é a liberdade, a liberdade com que o pastor assume a sua missão, pela qual não só é capaz de entregar a própria vida como retomá-la. Jesus assume essa liberdade e capacidade como o mandamento que recebeu do Pai, ou seja, como a missão que livremente assume levar a cabo. Jesus Bom Pastor existe e move-se na liberdade da vontade do Pai, e por isso não só é amado pelo Pai como é capaz de amar todos os homens, de os conduzir ao rebanho da filiação divina.
Ao concluir-se hoje a Semana de Oração pelas Vocações com referências claras à necessidade de pastores para conduzir o povo de Deus, tornam-se significativas esta liberdade de que fala Jesus e este projecto de um só rebanho, de um só povo de reis profetas e sacerdotes.
Neste sentido, não podemos esquecer que nenhuma vocação é possível sem liberdade e necessita da liberdade para crescer e desenvolver-se. A liberdade permite a resposta consciente bem como a responsabilização face a essa resposta. A liberdade permite o movimento da relação com Deus, a partilha da sua intimidade, sem qualquer preconceito ou temor, uma vez que se sabe, se percebe, que a opção tomada é uma resposta de amor a outro amor que a precedeu.
Por outro lado, a vocação de cada um, vivida livremente, constitui-se uma pedra viva na construção do templo de Deus, uma força que dinamiza a construção da unidade representada num só rebanho. Cada um, cada vocação na sua singularidade está chamada a viver a unidade que deriva da filiação divina que Jesus nos alcançou pela sua resposta livre ao amor do Pai, está chamada a ser a voz que apela a seguir o único e verdadeiro Bom Pastor.
Que o Senhor Jesus pela força do Espírito Santo nos faça crescer na consciência da nossa liberdade de filhos de Deus e na responsabilidade de trabalharmos em conjunto pela unidade de todos os homens.

Ilustração: “Bom Pastor”, Recolha de desenhos, Biblioteca Nacional de França, Cota: Etíope 389, fólio 1 verso.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Ao recordar-nos a passagem do Evangelho de São João que escutámos no IV Domingo do Tempo Pascal no qual Jesus se apresenta como o bom Pastor, “Eu Sou o Bom Pastor”, o texto da Homilia que teceu começa por dizer-nos-nos que tal afirmação tem como pressuposto a existência de maus pastores, identificáveis ...” por parte dos ouvintes e discípulos (…) em virtude da profecia de Ezequiel, profecia que apontava os defeitos e maus comportamentos daqueles que deveriam ser os pastores do povo de Israel, aqueles que o Senhor Deus tinha chamado a conduzir o povo”, (…) para falar-nos da maravilhosa alegoria do Bom Pastor e das suas características.
    Como Frei José Carlos salienta, …” Ao afirmar-se como Bom Pastor Jesus apresenta o modelo e o projecto de Deus, o amor daquele que é chamado e enviado para conduzir o rebanho e o povo entregando a sua própria vida, fazendo-se servo de todos, garantindo a vida àqueles que foram entregues ao seu cuidado. (…)
    (…) Jesus Bom Pastor existe e move-se na liberdade da vontade do Pai, e por isso não só é amado pelo Pai como é capaz de amar todos os homens, de os conduzir ao rebanho da filiação divina.”…
    E ao concluir-se neste IV Domingo do Tempo Pascal a Semana de Oração pelas Vocações, em que vivemos tempos nos quais é manifesta a falta de vocações sacerdotais e religiosas para realizar o projecto de Deus, Frei José Carlos, lembra-nos que…” não podemos esquecer que nenhuma vocação é possível sem liberdade e necessita da liberdade para crescer e desenvolver-se. A liberdade permite a resposta consciente bem como a responsabilização face a essa resposta. A liberdade permite o movimento da relação com Deus, a partilha da sua intimidade, sem qualquer preconceito ou temor, uma vez que se sabe, se percebe, que a opção tomada é uma resposta de amor a outro amor que a precedeu.”…
    Façamos nossa a oração de Frei José Carlos e peçamos ao … “Senhor Jesus que pela força do Espírito Santo nos faça crescer na consciência da nossa liberdade de filhos de Deus e na responsabilidade de trabalharmos em conjunto pela unidade de todos os homens.”
    Obrigada, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, profunda, ilustrada com um desenho tão belo e ilustrativo, em que figurativamente alguns de nós se sentem representados na ovelha protegida por Jesus com ternura, por recordar a responsabilidade de cada um de nós, como comunidade cristã, na criação de condições para que surjam novas vocações para conduzir-nos no seguimento de Jesus, o Bom Pastor. Peçamos ao Senhor que o ilumine e abençõe.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe um poema de Frei José Augusto Mourão, OP

    salmo

    Senhor, nós te cantamos porque és bom/e cantar-te reergue o nosso instante//

    tu reconstróis a vida que se perde/e dás força ao corpo que vacila//

    à tua portas e sentam os teus pobres/porque libertas do medo e do poder//

    és tu que levantas o oprimido/e afundas o opressor na sua trama//

    celebremos o nome do Senhor/cantemo-lo com todos os sentidos//

    é Deus a água fresca a que se vai/nós somos o lameiro do Senhor//

    és tu quem faz crescer o que se alcança/e as raras flores que vingam no deserto//

    és tu que dás o ferro ao nosso braço/e o fogo do combate à nossa mão//

    Deus que em nossa areia te figuras/e em nosso rio sugeres salmos de água//

    Fica em nossas tendas uma noite/a pausa breve do dom e da alegria


    (In, “O nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)

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