domingo, 22 de junho de 2014

Homilia da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

As entradas das nossas cidades, em alguns pontos das auto-estradas, estão povoadas de painéis publicitários, e uma boa parte deles oferecem-nos comida, apresentam-nos restaurantes a visitar, determinados pratos típicos a experimentar.
Seremos nós capazes de imaginar um painel em que nos é oferecida uma mesa posta para nos acolher, uma mesa na qual está um pão que não é necessário pagar e um vinho que nos faz viver eternamente?
Ainda que não encontremos este painel em qualquer via-rápida ou auto-estrada em que viajemos, a verdade é que ele está todos os dias exposto, patente para quem quiser olhar para ele, é-nos apresentado todos os dias em cada igreja, às suas portas nos horários quotidianos de cada celebração da Eucaristia.
E quando nos damos conta das ofertas publicitárias que procuram satisfazer o nosso desejo de eternidade, expresso em paisagens paradisíacas, corpos perfeitos, em jogos cujas vidas se podem repetir indefinidamente, podemos e certamente devemos interrogar-nos porque a nossa oferta não é dita em conta, porque as nossas igrejas se encontram vazias à hora da celebração da Eucaristia.
Como um elemento mais para reflexão, é interessante notar que a Festa do Corpus Christi, a solenidade que hoje celebramos, nasceu num momento em que a fé na presença real de Jesus no pão e no vinho consagrados era colocada em causa. Contudo, esta festa não foi uma resposta da hierarquia, uma imposição doutrinal, mas a resposta viva do povo, dos crentes, que conduziu a uma veneração das realidades visíveis do mistério, como são o pão e o vinho consagrados.
Assim, e face à perda do gosto pelo pão dos anjos, à perda do desejo desse vinho da salvação, a uma certa repetição do momento histórico fundacional desta festa da Igreja, não é de todo descabido olhar e pensar à luz das leituras bíblicas desta celebração o que significa a Eucaristia, porque nos reunimos cada dia para a celebrar este mistério que não é mais que o dom supremo que Jesus deixou aos seus discípulos.
A leitura do Livro do Deuteronómio que escutámos é um convite a recordar as acções de Deus para com o povo eleito durante a sua caminhada no deserto. Também a Eucaristia é um recordar das acções de Jesus, é uma resposta ao pedido de Jesus na última ceia para que se fizesse memória daquele momento e daqueles gestos, da sua vida entregue.
Contudo, tanto para o texto do Livro do Deuteronómio, como para o pedido de Jesus, fazer memória não significa apenas recordar o passado, os gestos e actos passados, não é fazer história, mas é fazer presente o agente dessa história e os resultados das acções desenvolvidas. Deus continua presente e continua a agir e a acompanhar o homem na sua história. A Eucaristia é a tomada de consciência dessa realidade activa, se assim se pode falar.
A leitura do Livro do Deuteronómio coloca também diante de nós a experiência do deserto, numa imagem metafórica a nossa experiência de vida com as suas limitações e dificuldades, com o seu sofrimento e desafios. Experiência que não é estranha a Deus, à qual ele não é indiferente, e por isso mesmo se faz presente, ora como nuvem protectora, ora como desafio normativo, como alimento caído do céu e como água que brota do rochedo.
A Eucaristia é também esta presença substancial e protectora de Deus no nosso caminhar, uma presença que descobrimos não já nos grandes gestos, nas manifestações teofânicas, mas no interior do coração, numa força e numa luz que nos impelem para a batalha, que nos fortalecem para os desafios e combates. O pão e o vinho consagrados, corpo e sangue de Jesus, são o alimento que nos é oferecido para enfrentar essas realidades com outra força e sabedoria.
O corpo e o sangue de Jesus têm no entanto uma outra missão para além da nutrição espiritual, uma vez que desenvolvem em nós uma outra realidade muito mais significativa, mais radical, como é a da nossa transfiguração. Tal como bem disse Santo Agostinho, quando nós comungamos somos transformados naquilo que comungamos, somos assumidos por aquele que comungamos.
A comunhão do corpo e sangue de Jesus é a comunhão da sua realidade divina na proporção em que a sua encarnação foi a comunhão da nossa realidade humana. Aquele que se fez carne como nós ao gerar no seio de Maria faz-nos filhos de Deus como ele ao alimentar-nos do seu corpo. Ele que vive e permanece no Pai permite pela comunhão da sua carne e do seu sangue que vivamos e permaneçamos também no Pai.
A Eucaristia é assim a oportunidade da experiência da eternidade, de entrarmos na intimidade da vida divina, uma vez que nos deixamos assumir pelo Corpo de Cristo que comungamos. A Eucaristia é a acção que nos permite construir a unidade, construir a Igreja, uma vez que pela comunhão somos membros vivos do mesmo corpo glorioso de Jesus.
Assim sendo, não deveríamos necessitar de qualquer painel publicitário para nos convidar à Eucaristia, não deveríamos necessitar de qualquer apelo dos sacerdotes, os simples desejos de fraternidade, de um mundo melhor, de felicidade eterna nos deveriam arrastar.
A Eucaristia responde aos nossos desejos e anseios mais profundos e por isso hoje cantamos e louvamos por esse dom tão maravilhoso que Deus nos fez.

 
Ilustração:
1 – “Cristo com a Hóstia”, de Paolo de San Leocádio, Museu Nacional de Poznan.
2 – “A Comunhão”, de Alexey Venetsianov, Museus Russos.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Agradeço-lhe esta maravilhosa Homilia da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo,tão rica de sentido para todos nós e tão profunda,que nos ajuda à nossa reflexão e pela beleza da sua ilustração.Obrigada,Frei José Carlos,pelas palavras partilhadas,pois como nos diz no texto ...A Eucaristia responde aos nossos desejos e anseios mais profundos e por isso hoje cantamos e louvamos por esse dom tão maravilhoso que Deus nos fez.Que o Senhor o ilumine o abençoe e o ajude.Continuação de uma boa semana com paz e alegria.Desejo-lhe uma boa noite.Bem-haja.
    Um abraço fraterno.
    AD

    ResponderEliminar